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Qualis Capes Quadriênio 2017-2020 - B1 em medicina I, II e III, saúde coletiva
Versão on-line ISSN: 1806-9804
Versão impressa ISSN: 1519-3829

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Perfil de gestantes e crianças acompanhadas por exposição ao Toxoplasma gondii num centro de referência: O que mudou 10 anos depois?

Janer Aparecida Silveira Soares1; Ana Paula Ferreira Holzmann2; Bárbara Bispo da Silva Alves3; Caio Fagundes Quadros Lima4; Antônio Prates Caldeira5

DOI: 10.1590/1806-9304202300000225 e20220225

RESUMO

OBJETIVOS: caracterizar o perfil de gestantes e neonatos acompanhadas em um centro de referência em doenças infecto-parasitárias, após exposição ao Toxoplasma gondii, estabelecendo comparações em relação a estudo prévio, no mesmo local, há dez anos.
MÉTODOS: trata-se de estudo de coorte retrospectivo, com seguimento de quatro anos (2016 a 2019), servindo o estudo prévio realizado de 2002 a 2010 como comparativo para as variáveis estudadas. Foram incluídas mães que apresentaram durante o pré-natal exames sugestivos soroconversão para a doença e seus respectivos conceptos, acompanhados ao longo de um ano. Utilizou-se o teste qui-quadrado, assumindo-se nível de significância de 5% para a comparação dos grupos nos dois períodos.
RESULTADOS: durante o período de 2016 a 2019, foram estudados 79 binômios, enquanto no período anterior foram acompanhados 58 binômios. Comparando-se os dois períodos, em relação às mães, registraram-se menores proporções de adolescentes (p<0,001), de baixa escolaridade (p<0,001), baixa realização de testes sorológicos (p<0,001) e com diagnóstico tardio ou pós-natal (p<0,001). Em relação às crianças, verificaram-se menores proporções de alterações de fundoscopia (p<0,001), estrabismo (p=0,002), hepatomegalia (p=0,026) e qualquer sequela (p<0,001).
CONCLUSÃO: observou-se um avanço em relação aos cuidados para o binômio mãe-filho acometido pelo T. gondii, com redução de desfechos negativos sobre a criança. Todavia, ainda existem desafios para o diagnóstico e adequado manejo da doença.

Palavras-chave: Transmissão vertical de doenças infecciosas, Toxoplasmose, Toxoplasmose congênita, Assistência pré-natal

ABSTRACT

OBJECTIVES: to characterize the profile of pregnant women and newborns accompanied at a reference center for infectious-parasitic diseases, after the exposure of T. gondii, establishing comparisons with a previous study, in the same location, ten years ago.
METHODS: this is a retrospective cohort study, with a follow-up of four years (2016 to 2019), using the previous study carried out from 2002 to 2010 as a comparative for the variables assessed. Mothers who presented tests suggestive of seroconversion for the disease during prenatal care and their respective concepts, followed up over a year, were included. The chi-square test was used, assuming a significance level of 5% for the comparison of the groups in the two periods.
RESULTS: during the period from 2016 to 2019, 79 binomials were studied, whereas 58 binomials were accompanied in the previous period. Comparing both periods, the findings showed lower proportions of adolescents (p<0.001), with low schooling (p<0.001), with low serological testing (p<0.001) and with late or postnatal diagnosis (p<0.001). As to the children, the findings showed fewer changes in fundoscopy (p<0.001), strabismus (p=0.002), hepatomegaly (p=0.026) and any sequelae (p<0.001).
CONCLUSION: a positive advance was observed regarding the care provided for the mother-child binomial affected by T. gondii, with a reduction in negative outcomes for the child. However, there are still challenges concerning the diagnosis and proper management of the disease.

Keywords: Vertical transmission of infectious diseases, Toxoplasmosis, Congenital toxoplasmosis, Prenatal care

Introdução

A toxoplasmose é considerada uma doença negligenciada e que ainda representa um importante desafio para serviços e profissionais de saúde. 1,2 Desde fevereiro de 2016 a toxoplasmose gestacional e congênita passou a configurar na lista de doenças de notificação compulsória no Brasil. 2 A doença, quando ocorre em gestantes, assume relevância pelo risco de transmissão vertical e acometimento fetal com um amplo espectro de manifestações, variando desde formas assintomáticas ou oligossintomáticas, lesões subclínicas com posterior reativação e até lesões graves e permanentes com especial tropismo para órgãos do sistema nervoso. 3-5

Nos últimos anos, as publicações científicas têm destacado como a assistência pré-natal de qualidade, com atenção ao diagnóstico precoce e tratamento da doença é determinante para o desfecho favorável da gestação. 6,7 Adicionalmente, as medidas de triagem neonatal, tratamento e seguimento multidisciplinar das crianças acometidas, mesmo na ausência de tratamento materno durante a gestação, têm sido associadas a menores taxas recorrência de doença e menos sequelas. 8

A literatura registra lacunas em relação ao comportamento longitudinal da toxoplasmose gestacional e congênita em uma mesma região. No ano 2012, foi publicado um estudo caracterizando o perfil das gestantes e crianças tratadas em um centro de referência para toxoplasmose no norte do estado de Minas Gerais, num período de oito anos. 9 Retornar aos indicadores pesquisados anteriormente, é uma oportunidade para se revelar um cenário novo ou mesmo nuances ainda não estudadas, em face dos novos conhecimentos adquiridos ao longo do tempo sobre o parasita, o comportamento da doença e o manejo adequado dos pacientes envolvidos nesse contexto. Adicionalmente, pode-se vislumbrar novas perspectivas de abordagens.

O objetivo do presente estudo foi de caracterizar o perfil de gestantes e neonatos acompanhadas em um centro de referência em doenças infecto-parasitárias, após exposição ao Toxoplasma gondii, estabelecendo comparações em relação a um estudo previamente realizado no mesmo local há dez anos.


Métodos

Trata-se de um estudo desenvolvido em duas fases, na primeira, foi conduzido um estudo de coorte retrospectivo, com seguimento de quatro anos (2016 a 2019); na segunda fase, foi realizada uma análise comparativa das variáveis estudadas com estudo prévio realizado nos anos 2002 a 2010, no mesmo local. 9 O estudo foi conduzido na cidade de Montes Claros, ao norte de Minas Gerais. Com população estimada em cerca de 417 mil habitantes,a cidade representa um importante polo regional e sua abrangência na assistência à saúde alcança mais de cem municípios na região.

No ano 2012 a população era de cerca de 370 mil habitantes, com cinco hospitais gerais, sete policlínicas, 14 Centros de saúde e 59 equipes de Estratégias de Saúde da Família (ESF), com seis mil nascimentos, em média, a cada ano. Em 2020, a assistência ambulatorial municipal acontecia em quatro policlínicas e 142 unidades da ESF, três maternidades, todas conveniadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), que registram, em média, sete mil nascimentos de crianças por ano.

O Centro de Referência em Doenças Infecciosas (CERDI), localizado em uma das policlínicas do município, recebe as crianças oriundas das maternidades com exposição às doenças de transmissão vertical para o seguimento pós alta hospitalar, da própria cidade ou de cidades vizinhas.

A população-alvo deste estudo foi composta por crianças e mães encaminhadas pelas maternidades com registro de toxoplasmose, segundo protocolo do município. Foram incluídas crianças cujas mães apresentaram durante o pré-natal exames sugestivos de soroconversão para a doença: IgM e IgG positivos, ou IgM e/ou IgA positivos, ou mães inicialmente suscetíveis para a doença que positivaram IgM e/ou IgG (títulos ascendentes) durante a gravidez. Foram também incluídas mães com sorologia positiva (IgM) por ocasião do parto e que não tinham sorologias prévias. Foram excluídas mães com sorologia sugestiva de aquisição de imunidade prévia à atual gestação e mães que tiveram evidências de falso positivo de IgM, isto é, aquelas, que não fizeram soroconversão de IgG, mesmo após 30 dias do exame de IgM inicial.

Para a avaliação das crianças, seguiram-se consultas mensais nos primeiros seis meses de vida e, a seguir, trimestrais, desde que a criança não estivesse em tratamento. Se as crianças estivessem em tratamento, as visitas aconteciam mensalmente até o primeiro ano de vida. As crianças alocadas foram acompanhadas por, pelo menos, um ano, com conclusão do diagnóstico baseado na persistência ou ausência dos títulos de IgG para toxoplasmose. Foram realizadas fundoscopias por ocasião do nascimento, aos três e seis meses. Naquelas com diagnóstico de doença, os intervalos ficaram na dependência das alterações encontradas e do parecer da clínica oftalmológica, bem como avaliação neurológica e realização de tomografia computadorizada de segmento cefálico.

Foram realizadas dosagens de IgM e IgG, na primeira consulta e mensalmente nos primeiros seis meses (para certificar da diminuição e/ou ascensão dos títulos de IgG). A dosagem de IgA, sempre que possível, foi coletada após o décimo dia até o terceiro mês de vida da criança. Foram priorizados os exames realizados por uma mesma técnica sorológica e coletas num mesmo laboratório. Sempre que possível a coleta da sorologia materna para pareamento com o primeiro exame da criança também foi realizada.

A coleta de dados foi conduzida prospectivamente, diretamente dos prontuários, a partir de formulários especialmente construídos, constando de variáveis sobre características maternas (idade, escolaridade, início do pré-natal, número de consulta, orientações profiláticas, hábitos alimentares, presença de animais no peridomicílio), exames realizados durante o pré-natal (sorologias, amniocentese com estudo do líquido amniótico), tratamento, se realizado durante a gestação (tempo de tratamento, esquema medicamentoso utilizado, período de uso, reações adversas), dados do nascimento (peso, perímetro cefálico, índice de Apgar, presença de alterações clínicas e/ou laboratoriais, avaliação oftalmológica, ultrassom transfontanela ou tomografia de crânio, estudo do líquor, tratamento e presença de sequelas) e dados do seguimento até conclusão do diagnóstico. Tanto no estudo recente, como no anterior uma única profissional (JASS) foi a responsável pela coleta de dados e seguimento das crianças, com uso do mesmo formulário de coleta de dados em ambos os estudos.

Após codificação específica, os dados foram registrados no software IBM SPSS versão 22 (Armonk, NY; USA). As variáveis foram avaliadas a partir da distribuição de frequências absolutas e percentuais. Para as análises comparativas entre os estudos realizados em 2002-2010 e 2016-2019, utilizou-se o teste qui-quadrado de Pearson, assumindo o nível de significância de 5% (p<0,05).

O projeto foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES) sob parecer Nº: 2.341.969 e CAAE: 73134517.9.0000.5146.


Resultados

Durante o período de 2016 a 2019, foram estudados 79 binômios (mãe-filho). A população estudada era predominantemente urbana (83,5%), e procedente do município onde o estudo foi conduzido. O percentual de mães adolescentes foi de 17,7% e escolaridade igual ou inferior a oito anos (ensino fundamental completo) foi registrada para 11,4% das mães. A Tabela 1 apresenta os resultados que caracterizam o grupo estudado, de forma comparativa entre os dois períodos.

 



Em relação à faixa etária das mães assistidas houve mudança significativa, como aumento de mães acima de 30 anos (35,4%) e redução da proporção de mães adolescentes (17,7%). Também em relação à escolaridade registrou-se redução significativa na proporção de mães que possuíam oito anos ou menos de estudo.

Em relação ao pré-natal, 66 mães (83,5%) fizeram mais de seis consultas, sendo que 60 delas (75,9%) iniciaram o pré-natal no primeiro trimestre e 55 (68,4%) não receberam orientações profiláticas para toxoplasmose. Em relação aos hábitos alimentares, 42 mães (53,2%) informaram ter ingerido alimentos crus (tais como: leite, hortaliças, frutas) e o consumo de carnes cruas ou mal passadas foi referido por 18 mulheres (22,8%). Quanto à presença de animais no domicílio e peri-domicílio 39 respondentes (49,4%) afirmaram possuir gatos, 10 (12,7%) possuíam outros animais de criação além de gatos (cães, galinhas, aves, caprinos ou bovinos) e 11 (13,9%) praticaram jardinagem sem luvas durante a gravidez.

A maior parte das mães foram testadas para T. gondii, na gestação, sendo que apenas duas não realizaram nenhuma sorologia. Comparativamente ao período anterior, a Tabela 1 registra aumento significativo na proporção de mães que realizaram testes sorológicos durante a gestação (p=0,007). Também se observou aumento do número de exames específicos para toxoplasmose realizados durante a gestação e redução da proporção de mães que não realizaram nenhuma sorologia (p<0,001). A proporção de diagnósticos mais recentes foi também significativamente maior para o grupo de mães do período de mais recente, de 2016-2019 (p<0,001).

Para 33 mães (41,8%) a dosagem de IgG e IgM para Toxoplasmose aconteceu três ou mais vezes durantes a gestação e em relação à dosagem de IgA 68 mães (86,1%) não realizaram nenhuma dosagem. O teste de avidez de IgG foi solicitado para 40 gestantes (50,6%); desses, 15 (19%) foi realizado até a 16ª semana de gestação. Entre os testes de avidez realizados, 28 (35,4%) estavam acima do ponto de corte estabelecido pela técnica, configurando alta avidez. Apenas seis gestantes (7,6%) foram submetidas à amniocentese e exame do líquido amniótico, com resultado positivo em apenas uma delas.

O tratamento foi oferecido para 46 gestantes (58,2%), distribuídos entre os três trimestres da gravidez, algumas por ocasião do diagnóstico, outras após encaminhamento às unidades de pré-natal de alto risco. O tempo de tratamento variou muito, desde 4 dias até 224 dias, com média em 43,7 dias. A espiramicina (S) foi o medicamento mais prescrito, tendo sido utilizado por 33 gestantes (41,8%), seguidos dos esquemas sulfadiazina (SD), pirimimetamina (P), ácido folínico (AF), prescrito para sete gestantes (8,9%) e a associação intercalada SD+P+AF/S para seis (7,6%). A Figura 1 apresenta o fluxograma do manejo das mães com suspeita de infecção pelo T. gondii, a condução terapêutica e o desfecho na criança.


 



De 2016 a 2019, foram acompanhados 79 binômios, sendo que a maioria das crianças assistidas se apresentava assintomática (82,3%). Houve leve predomínio do sexo masculino (54,4%) e 69 dos neonatos (87,3%) tinham o peso apropriado (superior a 2.500g) por ocasião do nascimento. Observou-se que elevado percentual das crianças acompanhadas nasceu prematuramente (82,3%), o que representou um aumento significativo, em relação ao percentual registrado no período anterior. 9 Em relação ao estudo anterior também se registrou maior proporção de crianças do sexo masculino. A Tabela 2 apresenta as características das crianças acompanhadas, de forma comparativa ao grupo avaliado anteriormente. Quanto aos aspectos clínicos, observou-se menor proporção de alterações de fundoscopia, estrabismo, hepatomegalia e presença de sequelas no grupo mais recentemente acompanhado, com diferenças estatisticamente significantes. As características das oito gestações com esse desfecho final são apresentadas na Tabela 3.


 







IO exame físico ao nascimento apresentava-se com alguma anormalidade para 12 crianças (15,2%), com registro de sobreposição de algumas manifestações. A hepatomegalia estava presente em cinco delas (6,3%), estrabismo em três (3,8%), microcefalia em duas (2,5%), distúrbios respiratórios em cinco (6,3%) e septicemia neonatal em oito (10,1%).

O exame oftalmológico foi realizado em 68 crianças (86,1%) ao nascimento, 11 delas (13,9%) só o realizaram o exame após iniciado o seguimento ambulatorial. Para sete crianças (8,9%) foi identificado alguma lesão ocular até o terceiro mês de vida, sendo a retinocoroidite bilateral a mais comum delas, presente em quatro pares de olhos.

Em relação à investigação do sistema nervoso central, 32 crianças (40,5%) realizaram ultrassom transfontanela, apresentando alterações em quatro deles (12,5%): uma microcefalia, uma calcificação, uma hemorragia intravascular e uma hidrocefalia. A tomografia computadorizada de segmento cefálico foi realizada em 27 crianças (34,2%), registrando alterações em seis delas (22,2%): microcefalia em dois pacientes, calcificações em dois pacientes, calcificações e hidrocefalia em dois pacientes. Dezessete lactentes (21,5%) se submeteram à punção lombar com estudo do líquor, sendo a alteração mais comum a hiperproteinorraquia, presente em três exames (3,8%).

Para 54 crianças (69,0%) a negativação completa da IgG aconteceu até o sexto mês de vida e oito crianças (10,1%) tiveram o diagnóstico confirmado da doença, sendo que sete delas (88%) apresentaram pelo menos uma sequela.

Discussão

Ao comparar os dois estudos, é possível perceber um avanço positivo em relação aos cuidados para o binômio mãe-filho acometido pelo T. gondii. A comparação de características maternas nos dois períodos registra que não existem diferenças entre a procedência e local de residência. Todavia, a idade materna registra menor número de gestantes adolescentes com a doença e aumento do número de mulheres acima de 30 anos infectadas pelo toxoplasma, o que já é registrado pela literatura. 10 Os resultados mostram que o serviço está ganhando visibilidade, com um aumento no rastreio durante o pré-natal, considerando o número maior de pacientes em quatro anos, comparativamente ao número registrado nos oito anos do estudo anterior.

O maior número de mães rastreadas, com diferenças significativas também em relação ao número de exames durante o pré-natal levou a um maior número de mães sendo diagnosticadas. Em relação ao período do diagnóstico, os dados revelam uma tendência de diagnóstico mais precoce, mas ainda existe uma demora para o reconhecimento e tratamento da mãe infectada. É possível que essa demora seja decorrente da dificuldade de acesso para marcação dos exames ou retornos das pacientes com os exames solicitados.

Não foram identificados estudos nacionais que avaliam evolutivamente o manejo da toxoplasmose na gestação, considerando períodos tão distintos. No Rio de Janeiro, entre 2014 e 2017, o acompanhamento de um grupo de mulheres grávidas infectadas revelou que ainda existem importantes barreiras no enfrentamento ao problema, como o encaminhamento tardio a serviços especializados, manejo inadequado nos serviços de pré-natal além das questões sociais que envolvem a ocorrência persistente de casos de toxoplasmose congênita. 11 Achados semelhantes também foram encontrados num estudo em Minas Gerais, onde percebeu-se maior prevalência relacionada com piores índices de higiene, dificuldade de acesso aos cuidados de saúde, piores desempenhos escolares das gestantes, reiterando a necessidade de ampla vigilância da doença e aos fatores de risco associados. 4

Não obstante o aumento na testagem sorológica para toxoplasmose na gestação, observou-se que a maioria das mães foi testada menos de duas vezes, número inferior ao preconizado pelo Ministério da Saúde. 2 Observou-se ainda que não é hábito do profissional de saúde a solicitação de outros marcadores indicativos de fase aguda. A dosagem de IgA para a doença foi ocasional e pouquíssimas gestantes a fizeram associadas a dosagem de IgM. Essa associação poderia melhorar a sensibilidade dos marcadores de fase aguda, em predizer infecção recente e favorecer o tratamento mais precoce. 12,13 É relevante destacar que o teste de avidez é um bom marcador de fase aguda e, quando realizado até a 16ª semana de gestação pode indicar o período de possível contaminação materna, mas ele não é realizado pelo SUS no município do estudo. Muitas vezes, tempo entre o pedido dos primeiros exames e entrega dos resultados ultrapassam as 16 semanas de gestação. Ainda, não é possível descartar o desconhecimento da validade desse exame por parte dos profissionais da saúde municipal.

Quanto à realização de amniocentese e estudo do líquido amniótico houve uma menor realização dos exames em comparação ao estudo anterior. Um exame de PCR negativo não afasta o diagnóstico de toxoplasmose, porém positivo, tem um alto valor preditivo positivo, próximo a 100%, para definir acometimento fetal. 5,14 Cabe aqui uma ressalva, devido a questões logísticas e de custo, embora a coleta do exame seja realizada pelo SUS nos serviços de alto risco das maternidades do município, o exame só pode ser realizado via Fundação Ezequiel Dias - Belo Horizonte. Adicionalmente, esse exame esteve restrito à rede particular de laboratórios no período 2017-2019.

Embora a rede de ESF do município onde o estudo foi realizado, tenha sido ampliada em mais de três vezes em relação ao estudo anterior, uma parcela significativa de gestantes não recebeu nenhuma orientação profilática sobre a doença. Essa é uma medida relativamente simples e de potencial impacto. Países onde existe uma abordagem sistematizada para a doença, como a França e a Bélgica, chegam a relatar diminuição do risco para a infecção em até 63% com medidas de educação em saúde. 15,16

Estudo multicêntrico recente conduzido na França ressaltou haver uma tendência a menor transmissão da doença ao feto quando a gestante era tratada com o esquema Sulfadiazina/Pirimetamina em relação à Espiramicina. 7 Neste estudo, assim como no anterior, o número de gestantes não tratadas ainda é elevado. Parece haver desconhecimento por parte dos profissionais ou resistência na prescrição do esquema combinado, uma vez que as drogas atravessam a barreira placentária e tratam o feto. 16 Registra-se que o esquema combinado exige supervisão cuidadosa pelos riscos de eventos adversos. 7,17

Em relação às crianças acompanhadas, observou-se um número proporcionalmente maior de bebês prematuros e embora a própria doença aumente o risco para a prematuridade5, apenas quatro das dez crianças prematuras (28,6%) apresentaram o diagnóstico final de toxoplasmose congênita. Talvez por outros motivos obstétricos ou intercorrências próprias das gestantes o número de recém-nascidos prematuros tenha aumentado, mas essa é uma particularidade que foge ao escopo deste estudo.

Como registrado em outros estudos, encontrou-se que a maioria das crianças era assintomática ao nascimento. Registrou-se também menor proporção de crianças acometidas com alguma sequela em relação ao estudo realizado há dez anos, o que representou uma queda de cerca de 75%. Ainda comparativamente ao grupo de crianças do primeiro estudo, registrou-se menor proporção de hepatomegalia, estrabismo e alterações do exame de fundo de olho. 9 Trata-se de um achado relevante. Embora nesse estudo não tenha sido registrada diferença estatisticamente entre os grupos tratados, observou-se que o número de crianças acometidas entre as mães não tratadas era duas vezes maior que no de mães tratadas durante a gestação, o que pode, indiretamente, retratar uma melhoria dos cuidados de manejo das gestantes expostas ao T. gonddi. Existe consenso acerca dos benefícios da introdução precoce do tratamento materno, ocorrendo ausência de acometimento fetal ou pelo menos quadros de menor gravidade. 7,17-19

Das lesões oculares, a retinocoroidite bilateral prevaleceu em ambos os estudos, e a visão subnormal se instalou em torno de 50% das crianças acometidas. Esse resultado é compatível com a literatura no que refere sobre a presença de lesões oculares mais graves e mais frequentes no Brasil quando comparada à Europa. 20

Uma limitação para o estudo reside no processo de alocação das crianças acompanhadas. Embora tenham sido incluídas todas as crianças referenciadas ao CERDI-Montes Claros, único centro regional para acompanhamento de crianças com doenças infecciosas, é possível que algumas delas não tenham comparecido para acompanhamento, devido ao fato de não existir um controle no fluxo entre as maternidades e o serviço especializado. Ainda há o fato de muitas gestantes virem à Montes Claros exclusivamente para o parto e não retornarem para acompanhamento, dificultando a notificação das crianças acometidas pela doença. Em outras palavras, é possível que o grupo avaliado represente apenas em parte a realidade, uma vez que em boa parcela dos pacientes o diagnóstico só se estabelece no seguimento da criança e para as famílias muitas vezes é difícil compreender a possibilidade de uma doença latente, diante de um bebê aparentemente "normal". Outra limitação do estudo está no fato de que ainda não se encontra estabelecido junto às maternidades a obrigatoriedade da testagem para toxoplasmose por ocasião do parto, para as gestantes que se mantiveram suscetíveis à doença durante a gravidez.

Apesar das limitações, este esse estudo demonstrou que o serviço de referência tem conseguido, aos poucos, sensibilizar os agentes assistenciais em saúde primária no manejo da toxoplasmose gestacional. Registrou-se um aumento do número e casos acompanhados entre os dois períodos, o que traduz um maior destaque e reconhecimento do serviço. No primeiro estudo, desconhecia-se a realidade da doença no município, a partir de então, o serviço apresentou crescimento, tornou-se referência para o atendimento dessas crianças e a partir dos últimos cinco anos são oferecidas oficinas educativas para os profissionais de saúde da ESF e hospitais sobre a doença. O fato de uma mesma profissional conduzir a coleta de dados e seguimento das crianças nos dois períodos estudados representa também um aspecto positivo do estudo, assegurando maior confiabilidade aos dados registrados.

Os resultados representam um alerta aos gestores e profissionais de saúde. Ainda existe um longo caminho para tornar a toxoplasmose uma doença de conhecimento comum da população. Nesse sentido, a meta dos gestores de saúde deve compreender medidas como intensificar ações profiláticas nas comunidades, ampliar a compreensão da doença entre profissionais da saúde, agentes da vigilância em saúde e mesmo profissionais de setores administrativos e educadores. Essas medidas têm o potencial de evitar os desfechos desfavoráveis da doença e melhorar a qualidade da assistência aos binômios (mãe-filho) infectados.

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Recebido em 16 de Junho de 2022
Versão final apresentada em 18 de Setembro de 2022
Aprovado em 21 de Setembro de 2022

Editor Associado: Alex Sandro Rolland

Contribuição dos autores: Soares JAS: concepção e execução do projeto, coleta, análise e interpretação dos dados, redação do manuscrito. Holzmann APF, Alves BBS e Lima CFQ: concepção do projeto, análise e interpretação dos dados, apoio à redação do manuscrito. Caldeira AP: coordenação, concepção e execução do projeto, coleta, análise e interpretação dos dados, redação do manuscrito.

Os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.

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