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Qualis Capes Quadriênio 2017-2020 - B1 em medicina I, II e III, saúde coletiva
Versão on-line ISSN: 1806-9804
Versão impressa ISSN: 1519-3829

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Os transtornos mentais dos cuidadores podem estar associados a comportamentos alimentares obesogênicos na infância?

Paulinia Leal do Amaral1; Karen Jansen2; Suelen de Lima Bach3; Amanda Neumann Reyes4; Thais Martins-Silva5; Ricardo Azevedo da Silva6; Janaina Vieira dos Santos Mota7; Fernanda Pedrotti Moreira8

DOI: 10.1590/1806-9304202300000143 e20220143

RESUMO

OBJETIVOS: avaliar associação entre transtornos mentais do cuidador e comportamento alimentar obesogênico de escolares.
MÉTODOS: estudo transversal com amostra de crianças da rede pública de ensino e seu cuidador principal. Episódio depressivo atual e transtorno de ansiedade generalizada (TAG) do cuidador foi avaliado pela Mini-International Neuropsychiatric Interview (MINI). Comportamentos alimentares obesogênicos das crianças foi avaliado pelas subescalas resposta à comida (FR) e sobreingestão emocional (EOE) Children's Eating Behaviour Questionnaire (CEBQ). Análise bivariada foi realizada por meio de teste-T, ANOVA e correlação de Pearson. Modelo de regressão linear ajustado (incluiu variáveis cuidadores: sexo, idade, indicador econômico e escolaridade; escolares: sexo e estado nutricional).
RESULTADOS: foram avaliadas 596 díades crianças-cuidadores (309 meninos e 287 meninas). Entre os cuidadores, 24,7% apresentaram episódio depressivo atual, 38,7% episódio depressivo passado e 17,2% TAG. Observamos, após análise ajustada, que ter um cuidador em episódio depressivo atual aumenta o comportamento obesogênico dos escolares, em 0,235 pontos para FR (β=0,235; IC95%=0,022-0,449) e em 0,337 pontos para EOE (β=0,337; IC95%=0,162-0,512).
CONCLUSÃO: episódio depressivo atual do cuidador foi associado a maiores médias de comportamentos alimentares obesogênicos dos escolares, tanto no consumo de alimentos palatáveis mesmo sem fome (FR) quanto aumento da ingestão alimentar em resposta a emoções negativas (EOE).

Palavras-chave: Transtornos mentais, Comportamentos obesogênicos, Alunos, Cuidadores, Comportamento alimentar

ABSTRACT

OBJECTIVE: to assess the association between caregivers' mental disorders and schoolchildren's obesogenic eating behavior.
METHODS: cross-sectional study used a public school-based sample of children and their primary caregivers. Caregivers had to report depressive episodes or generalized anxiety disorder (GAD) during the Mini-International Neuropsychiatric Interview (MINI). Children's obesogenic eating behavior were assessed using food responsiveness (FR) and emotional overeating (EOE) subscales of the Children's Eating Behaviour Questionnaire (CEBQ). Bivariate analysis was conducted using the t-test, ANOVA, Pearson correlation, and adjusted linear regression model was used (including variables caregivers: sex, age, economic indicator, and schooling; schoolchildren: sex and nutritional status).
RESULTS: study includes 596 children-caregiver dyads (309 boys and 287 girls). Among caregivers, 24.7% had experienced current depressive episodes, 38.7% had past depressive episodes, and 17.2% had GAD. We observed, after adjusted analysis, that having a caregiver in a current depressive episode, increases schoolchildren's obesogenic behavior of, for FR at 0.235 points (β=0.235; CI95%=0.022-0.449;) and EOE at 0.337 points (β=0.337; CI95%=0.162-0.512).
CONCLUSION: caregivers' current depressive episodes were associated with higher averages of obesogenic eating behavior (caregiver-reported), both in consuming palatable food without feeling hungry (FR) and in increasing food intake in response to negative emotions (EOE).

Keywords: Mental disorders, Obesogenic behavior, Schoolchildren, Caregivers, Eating behavior

Introdução

Os comportamentos alimentares são definidos como atitudes e fatores psicossociais relacionados à seleção e decisão sobre quais alimentos comer e, também, são o resultado de uma combinação de fatores genéticos, biológicos, culturais e ambientais. 1,2 Os comportamentos alimentares que predispõem um indivíduo a comer por outros motivos que não a fome foram descritos como obesogênicos e implicados na etiologia da obesidade infantil. 3,4 Os comportamentos alimentares obesogênicos incluem: sobreingestão emocional (EOE), caracterizados pelo aumento da ingestão de alimentos para satisfazer as necessidades emocionais, especialmente em resposta a emoções negativas, e resposta à comida (FR), que se refere ao desejo de comer ao cheirar, ver ou saborear alimentos palatáveis, mesmo sem fome. 3,4 Ambos foram positivamente associados ao ganho de peso excessivo e maior índice de massa corporal (IMC) ao longo da vida. 1,5,6

A obesidade infantil e o comportamento alimentar infantil são multifatoriais,2,7 e o ambiente familiar é fundamental no desenvolvimento do comportamento alimentar de escolares. 1,8 A qualidade emocional da relação pais-filhos pode desempenhar um papel importante no que é transmitido à criança no contexto familiar, principalmente no que se refere à alimentação. 9 Nesse contexto, as práticas alimentares utilizadas pelos pais são relevantes. Pesquisa realizada por Lindsay et al. 10 identificaram que estilos de alimentação não envolvidos e permissivos, práticas de alimentação usando alimentação instrumental (por exemplo, uso de alimentos como recompensa) e pressionar as crianças a comer, foram consistentemente associados a sintomas depressivos. Sendo que os sintomas depressivos maternos foram associados a práticas familiares não envolvidas e permissivas nas refeições. 10 Vale destacar que as crianças são suscetíveis aos efeitos dos transtornos mentais dos pais,11 e os transtornos depressivos e ansiosos estão entre os transtornos mentais mais prevalentes na população geral. 12 A presença de transtornos mentais contribui para um ambiente familiar mais caótico,13 o que pode refletir na construção de comportamentos alimentares obesogênicos. 5 Um estudo de base populacional que examinou padrões de comportamentos alimentares de 4 a 10 anos descobriu que os filhos de mães com mais sintomas de psicopatologia eram mais propensos a ter um padrão crescente de EOE. 5 No entanto, a FR não foi consistentemente associada aos sintomas de psicopatologia materna ou paterna. 5

Compreender a etiologia do comportamento alimentar infantil e identificar os fatores modificáveis é de extrema relevância para o planejamento de intervenções de combate à obesidade infantil, principalmente entre as idades de 4 e 10 anos, pois os padrões de comportamento alimentar se solidificam nesse período e são suscetíveis a diversos fatores. 5 A relação entre obesidade infantil e saúde mental dos pais tem sido amplamente identificada na literatura. 14,15 Além disso, a respeito dos transtornos mentais, a relação entre os comportamentos alimentares das crianças e os transtornos alimentares das mães já foi investigada. 16 Embora a maioria dos estudos avalie os pais, principalmente as mães, também é importante avaliar a percepção do cuidador principal, seja mãe, pai, avó ou tia. Compreende-se que os cuidadores desempenham um papel semelhante ao das mães e são muito importantes no desenvolvimento das crianças com excesso de peso, pois geralmente passam a maior parte do tempo com as crianças.17 No entanto, poucos estudos visam compreender a relação entre os transtornos mentais dos cuidadores, principalmente a depressão e a ansiedade, e o comportamento alimentar obesogênico das crianças. Portanto, entender a influência da saúde mental dos cuidadores é crucial. Sendo assim, o objetivo deste estudo foi avaliar a associação entre os transtornos mentais dos cuidadores e o comportamento alimentar obesogênico de escolares.


Métodos

Foi realizado estudo transversal entre agosto de 2015 e novembro de 2016, utilizando uma amostra de base escolar em uma cidade do sul do Brasil. Avaliamos alunos de escola pública e um de seus cuidadores principais (responsável pelo cuidado da criança na maioria das vezes, não necessariamente o pai ou a mãe).

A seleção da amostra foi realizada por amostragem probabilística tendo como unidades primárias as escolas públicas municipais de ensino fundamental. Vinte escolas foram selecionadas por amostragem aleatória sistemática de um total de 40 escolas da área urbana de Pelotas-RS, Brasil. Os critérios de inclusão foram que os escolares tivessem 7 ou 8 anos e estivessem regularmente matriculados na escola. Este estudo fez parte de um estudo maior no qual foi avaliado o desempenho cognitivo de escolares; para isso, era necessário já ter 8 anos ou completar 8 anos no ano em que os dados foram coletados. Para os cuidadores, era necessário ser o principal responsável pelo cuidado dos escolares e ser maior de 18 anos. O critério de exclusão foi a incapacidade de compreender ou responder aos instrumentos devidos a qualquer condição clínica ou deficiência grave dos escolares ou seus cuidadores. A coleta de dados envolveu as seguintes etapas: (1) contato com os diretores das escolas identificadas e apresentação do projeto; (2) foram listados os escolares elegíveis para o estudo; (3) o consentimento informado por escrito foi enviado aos cuidadores para autorizar sua participação (foram assinados dois termos, um para eles e outro para as crianças); (4) os escolares autorizados foram avaliados no ambiente escolar durante o horário escolar; e (5) os cuidadores foram entrevistados em suas residências. Os entrevistadores eram estudantes da área da saúde que realizaram as avaliações após treinamento com profissionais experientes. Ao identificar problemas de saúde mental e/ou nutricionais, os entrevistados recebiam imediatamente um documento com encaminhamento para os serviços públicos de saúde.

Episódios depressivos atuais e passados e transtorno de ansiedade generalizada (TAG) em cuidadores foram avaliados usando o Mini International Neuropsychiatric Interview (MINI), uma breve entrevista diagnóstica padronizada com base nos critériosdo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 4ª edição (DSM- IV). 18 As características psicométricas da versão brasileira do MINI comparadas ao Structured Clinical Interview for DSM Disorders (SCID) foram satisfatórias (episódio depressivo maior: kappa=0,84, sensibilidade=0,96, especificidade=0,88; GAD: kappa=0,70, sensibilidade=0,91, especificidade=0,86). 19 O MINI está organizado em módulos de diagnóstico independentes, projetados para otimizar a sensibilidade do instrumento, apesar de um possível aumento de falsos positivos. 18 Cada módulo avalia um conjunto de sintomas por meio de perguntas como: "Nas duas últimas semanas, você se sentiu triste, desanimado, deprimido, a maior parte do dia, quase todos os dias?"; "Ao longo de sua vida, você teve períodos de duas semanas ou mais em que se sentiu deprimido ou desinteressado pela maioria das coisas e durante os quais teve os problemas de que falamos?"; "Durante os últimos seis meses, você se sentiu excessivamente preocupado, inquieto, ansioso com vários problemas da vida cotidiana (trabalho/escola, casa, família/amigos), ou teve a impressão ou alguém disse que você se preocupava demais com tudo?". 18 Foi realizada uma entrevista clínica pessoal e presencial. Todas as variáveis foram classificadas como 'não' ou 'sim'.

O Children's Eating Behavior Questionnaire (CEBQ) foi criado para estudar o comportamento alimentar de crianças, de 3 a 13 anos, em contexto de obesidade ou risco. Também pode ser indicado para a investigação de estilos alimentares em crianças saudáveis ou com comportamentos alimentares atípicos. O CEBQ é uma medida psicométrica relatada pelos pais de oito traços apetitivos para distinguir diferenças no comportamento alimentar que podem contribuir para o alto ou baixo peso e é uma ferramenta de 35 itens amplamente utilizada. 4 O CEBQ foi validado em diferentes populações, traduzido e validado para uma amostra de crianças portuguesas com boas propriedades psicométricas (presposta à comida, α=0,88; sobreingestão emocional, α=0,77). 20 Para avaliar os estilos alimentares relacionados ao risco de obesidade, as escalas do CEBQ incluídas neste estudo foram FR (cinco itens, por exemplo, meu filho comeria a maior parte do tempo se tivesse a chance) e EOE (quatro itens, por exemplo, meu filho come mais quando preocupado). O questionário utilizou uma escala Likert de cinco pontos (nunca, raramente, às vezes, frequentemente e sempre; variando de 1 a 5). Os escores médios foram calculados para cada escala, com escores médios mais altos indicando uma maior expressão desse comportamento.

Questionários estruturados foram utilizados para coletar dados sociodemográficos. Foram coletadas as seguintes características dos escolares: sexo (masculino ou feminino) e idade (anos). Adicionalmente, para avaliação do IMC, foram obtidas as medidas antropométricas de estatura e peso dos escolares da seguinte forma: os escolares foram pesados e medidos descalços, com roupas leves, e suas estaturas na posição ortostática com estadiômetro Cardiomed (precisão de 1mm) com uma cabeceira horizontal facilmente móvel que pode ser colocada em contato com a parte mais superior da cabeça. O peso foi obtido em balança digital Tanita devidamente calibrada (precisão de 100g), considerando um dígito decimal de precisão. As medidas antropométricas foram coletadas por estudantes da área da saúde devidamente treinados. O IMC foi calculado de acordo com os parâmetros da OMS, que consideram o peso, altura, sexo e idade da criança para gerar os z-scores de IMC. 21

As características dos cuidadores foram autorreferidas e incluíram sexo (masculino ou feminino), idade (anos), escolaridade (≤8, 9-11 ou ≥12 anos), relação com os escolares (mãe/pai biológico ou adotivo/avós/outro), vivendo com companheiro (não ou sim), trabalhando atualmente (não ou sim) e indicador econômico. O indicador econômico foi medido pelo Indicador Econômico Nacional (IEN) que permite o cálculo de pontuações (referidas como quintis de renda) para os domicílios com base em informações sobre a propriedade de um conjunto de bens, características do domicílio e escolaridade do chefe do domicílio. Entretanto, neste estudo, foram utilizados tercis (inferior, intermediário ou superior) sendo o primeiro grupo (inferior) referente aos menos favorecidos economicamente e o terceiro (superior) aos mais favorecidos economicamente. 22 Além disso, avaliamos o IMC dos cuidadores (kg/m2), calculado com base em dados de altura e peso auto-relatados.

As análises foram pré-especificadas e realizadas no Statistical Package for the Social Sciences versão 21.0 (SPSS 21.0). A análise bivariada foi realizada por meio do teste t, Análise de Variância (ANOVA) e correlação de Pearson para descrever as médias dos comportamentos alimentares (FR e EOE) de acordo com as variáveis de exposição das crianças e cuidadores. A análise de regressão linear múltipla foi utilizada para verificar o ajuste para possíveis fatores de confusão. As premissas de distribuição normal e homogeneidade dos resíduos foram asseguradas e ambas foram analisadas graficamente (gráfico de probabilidade normal e gráficos de resíduos). O teste de Levene foi utilizado para avaliar a homogeneidade. Para o teste t de Student, utilizado para comparar as médias amostrais de dois grupos independentes quando as variâncias eram heterogêneas, foi utilizado o valor de p corrigido para homogeneidade. A suposição de independência residual foi verificada pelo teste de Durbin-Watson. A suposição da inexistência de multicolinearidade entre as covariáveis foi garantida através dos valores das correlações entre as covariáveis de r<0,70. Os outliers foram identificados graficamente, com base nas informações da estatística descritiva dos resíduos. Após a eliminação dos outliers, também foram garantidos os pressupostos da regressão linear múltipla, descritos anteriormente, resultando nos dados finais disponíveis neste artigo. As análises ajustadas incluíram as variáveis com p<0,20 na análise bivariada. Assim, o modelo inicial incluiu variáveis sobre cuidadores (sexo, idade, indicadores econômicos, escolaridade e IMC) e características dos escolares (sexo e IMC). 23 O modelo final foi obtido por meio de análise stepwise backward de cada variável com p<0,05.

Este estudo faz parte de um grande projeto intitulado "Infância Saudável em Contexto: Uma Investigação Multidisciplinar", aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Católica de Pelotas, Brasil, sob protocolo número 843.526 e CAAE 27696014.00005339.


Resultados

Um total de 723 escolares foram considerados elegíveis para inclusão neste estudo. Destes, 34 (5%) não compareceram à escola nos dias de avaliação, 80 (11%) tiveram sua participação recusada por seus cuidadores e 13 (1,8%) não foram localizados ou se recusaram a participar do estudo. Assim, 596 díades foram incluídas nesta análise.

Entre os escolares avaliados, 24,0% estavam obesos, 51,9% eram meninos com idade média de 7,5 anos e IMC médio de 18,27 kg/m2. Entre os cuidadores avaliados, 91,1% eram do sexo feminino, com média de idade de 35 anos, ec 50,9% tinham até oito anos de escolaridade. Além disso, 53,1% trabalhavam atualmente, 73,1% viviam com companheiro, 91,1% eram mães/pais biológicos dos avaliados e apresentavam IMC médio de 27,47kg/m2. Em relação aos transtornos mentais entre os cuidadores, 24,7% apresentaram episódio depressivo atual, 38,7% episódio depressivo passado e 17,2% TAG (Tabela 1).

 



Na análise bruta, observou-se correlação positiva entre FR e Escore-Z IMC (r=0,297, p<0,001). Em relação às variáveis dos cuidadores, a FR foi associada à escolaridade (p=0,008) e ao indicador econômico (p=0,017). A EOE esteve associada a duas variáveis entre os escolares: sexo e escore-z IMC. Maiores médias de EOE foram observadas entre as meninas (p=0,031) e uma correlação positiva foi observada entre EOE e escore-z IMC (r=0,270, p<0,001). Em relação às variáveis dos cuidadores, observou-se correlação negativa entre os escores da EOE e a idade dos cuidadores (r=-0,097, p=0,019). A EOE também se associou à escolaridade dos cuidadores (p=0,019) e ao indicador econômico (p=0,022) (Tabela 2).

 



Em relação aos transtornos mentais, maiores médias de FR (p=0,014) e EOE (p<0,001) foram observadas em escolares cujos cuidadores vivenciaram episódios depressivos atuais. Os escolares cujos cuidadores apresentavam TAG ou episódio depressivos passado não diferiram quanto ao FR ou EOE (Figura 1).

 



Na análise ajustada (regressão linear múltipla), o modelo incluiu sexo, idade, indicador econômico, escolaridade, IMC e escore-z IMC conforme apresentado na Tabela 3. TAG não foi associado a FR e EOE. No entanto, verificamos que episódios depressivos atuais em cuidadores permaneceram associados à FR (β=0,235; IC95%=0,022-0,449; p=0,032) e EOE (β=0,337; IC95%=0,162-0,512; p<0,001), mesmo após o ajuste para possíveis fatores de confusão. Assim, ter cuidadores em um episódio depressivo atual aumenta o comportamento obesogênico dos estudantes para FR em 0,235 pontos e EOE em 0,337 pontos.

 



Discussão

Este estudo investigou a associação entre transtornos mentais de cuidadores e o comportamento alimentar obesogênico de escolares. Encontramos uma relação entre a saúde mental dos cuidadores e o comportamento alimentar dos escolares. O episódio depressivo atual dos cuidadores foi associado a maiores médias de comportamentos alimentares obesogênicos: FR, que se refere a maior suscetibilidade dos escolares a aspectos externos da alimentação, como a aparência dos alimentos, consequentemente aumentando o consumo alimentar mesmo sem fome; e EOE que se refere ao aumento da ingestão alimentar em resposta a emoções negativas como raiva e ansiedade em escolares.

Um corpo substancial da literatura visou compreender a influência das práticas alimentares dos cuidadores no comportamento alimentar das crianças24 e relaciona comportamentos alimentares específicos do cuidador à autorregulação alimentar da criança.25 No entanto, pouco se sabe sobre a relação entre os transtornos mentais dos cuidadores e comportamento alimentar das crianças. Este é um dos primeiros estudos a compreender a relação entre a saúde mental dos cuidadores e o comportamento obesogênico.

Nossos achados mostraram que episódios depressivos atuais dos cuidadores estiveram associados à FR em escolares. Em um estudo australiano com crianças de 2 a 5 anos, a FR foi prevista apenas pelo estresse dos pais, não pela depressão ou ansiedade. 26 Em contraste, Derks et al. 5 descobriram que os sintomas de psicopatologia materna, mas não paterna, estavam associados ao aumento da FR. A depressão dos cuidadores pode gerar um ambiente estressante e podendo não ser responsivo às demandas da criança. 11 Isso pode interferir na interação com a criança em diversos âmbitos, inclusive na relação com a comida, principalmente na formação do comportamento alimentar. O estresse no início da vida pode moldar o desenvolvimento de certos comportamentos alimentares obesogênicos durante a infância, o que pode ser um mecanismo que liga a exposição ao estresse no início da vida à obesidade infantil. 27 Além disso, episódios depressivos atuais foram associados à EOE. Derks et al. 5 também identificaram preditores parentais de padrões emocionais de sobreingestão emocional da prole: filhos de mães com mais sintomas psicopatológicos eram mais propensos a ter padrões emocionais de sobreingestão emocional. Cuidadores que enfrentam dificuldades emocionais podem usar a comida como uma estratégia para gerenciar as emoções negativas das crianças. 28 Ao contrário da maioria dos outros traços apetitivos que têm fortes bases genéticas, um estudo com gêmeos mostrou que a variação individual na EOE na infância foi amplamente explicada por influências ambientais, sugerindo que o EOE é amplamente aprendido no início da vida e que os efeitos genéticos desempenham um papel menor em comparação com o ambiente. 29

Derks et al. 5 encontraram padrões distintos de FR e EOE ao longo da infância, sugerindo que, apesar da continuidade e estabilidade na maioria das crianças, seus padrões de desenvolvimento podem não ser uniformes e que FR e EOE são comportamentos dinâmicos nos primeiros anos de vida, o que pode mudar após a idade pré-escolar. Nesse estudo, os autores avaliaram crianças de 4 a 10 anos. 5 Em nossa amostra, os escolares foram avaliados na faixa etária de 7 a 8 anos; portanto, conforme Derks et al. ,5 as crianças pertencentes a essa faixa etária ainda eram consideradas instáveis quanto à consolidação dos comportamentos alimentares. 5 Assim, o comportamento alimentar das crianças pode ser suscetível à influência de diversos fatores, como os transtornos mentais dos cuidadores.

A maioria dos estudos incluiu a mãe como cuidadora principal, embora tenhamos incluído outros cuidadores (pais, avós, outros); mesmo assim, a maioria dos cuidadores avaliados era do sexo feminino, e a maioria poderia ser mãe biológica. 17 As mães são majoritariamente e historicamente envolvidas no cuidado de seus filhos, o que se soma a outras atribuições, gerando elevada sobrecarga. 30 Diante disso, a destaca-se a importância da avaliação em saúde mental, bem como a implementação de políticas públicas voltadas ao atendimento dessa demanda.

Este estudo apresenta as seguintes limitações: o desenho transversal apresenta limitação quanto à inferência causal, pois não é possível verificar se os comportamentos alimentares avaliados foram determinantes ou consequências do excesso de peso. A não inclusão de escolas particulares na amostra limita a comparação. A maioria das escolas consideradas está localizada em áreas de maior vulnerabilidade social. Esse fator está fortemente associado a uma maior prevalência de transtornos mentais. O CEBQ, questionário validado em uma amostra de crianças portuguesas, mas não brasileiras, foi respondido pelos cuidadores principais; portanto, está sujeito à percepção do cuidador e pode estar sujeito a um viés de desejabilidade social. Ressalta-se que cuidadores que vivenciam um episódio depressivo podem ter uma percepção mais negativa do comportamento alimentar das crianças devido aos sintomas do transtorno mental. Por fim, foram avaliados apenas os transtornos mentais de um cuidador. Como ponto forte, destacase o fato de o estudo apresentar achados inovadores quanto à relação entre a saúde mental dos cuidadores e o comportamento alimentar de escolares, principalmente quanto ao comportamento obesogênico. Além disso, os achados podem ser representativos de escolares da rede pública de 7 a 8 anos para uma população com características semelhantes à cidade de Pelotas.

Em conclusão, a presença de transtornos mentais em cuidadores foi associada ao comportamento alimentar dos escolares. O episódio depressivo atual foi associado ao aumento dos comportamentos alimentares obesogênicos, tanto no consumo de alimentos palatáveis mesmo sem fome, quanto no aumento da ingestão alimentar em resposta às emoções negativas. Como dito, esses são comportamentos alimentares obesogênicos e estão relacionados ao maior status de peso em crianças. A obesidade prejudica a saúde física e emocional, tanto na infância, quanto a longo prazo.Assim, fica evidente que é importante incluir a avaliação da saúde mental dos cuidadores no manejo de comportamentos alimentares que reflitam ações de prevenção da obesidade infantil.


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Recebido em 19 de Abril de 2022
Versão final apresentada em 17 de Outubro de 2022
Aprovado em 31 de Outubro de 2022

Editor Associado: Lygia Vanderlei

Contribuição dos autores: Amaral PL, Mota JVS e Moreira FP: concepção e desenho do trabalho; a aquisição, análise e interpretação dos dados, redação e revisão do manuscrito. Martins-Silva T e Jansen K: revisão crítica do conteúdo. Bach SL, Reyes AN e Silva RA: aquisição e análise dos dados. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.

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