, Maria Beatriz Trindade de Castro
, Camila Benaim
, Ilana Eshriqui
, Thatiana de Jesus Pereira Pinto
, Camilla Medeiros Macedo da Rocha
, Ana Amélia Freitas-Vilela
Maria Beatriz Trindade de Castro1; Camila Benaim2; Ilana Eshriqui3; Thatiana de Jesus Pereira Pinto4; Camilla Medeiros Macedo da Rocha5; Ana Amélia Freitas-Vilela6; Gilberto Kac7; Ana Beatriz Franco-Sena8
DOI: 10.1590/1806-9304202300000239
e20210239
RESUMO OBJETIVOS: avaliar a associação entre o índice de massa corporal pré-gestacional e pós-parto e a densidade de macronutrientes da dieta com o sub-relato de energia da dieta na gestação.
Palavras-chave:
Gravidez, Índice de massa corporal, Sub-relato, Obesidade, Ingestão de energia
ABSTRACT OBJECTIVES: to evaluate the association of pre-pregnancy and current body mass index and the density of dietary macronutrients on underreporting of energy intake at pregnancy.
Keywords:
Pregnancy, Body mass index, Underreporting, Obesity, Energy intake
Obesidade e conteúdo de proteína e gordura na dieta estão associados ao sub-relato do consumo energético na gravidez
MÉTODOS: análise transversal com 327 puérperas da cidade de Mesquita, no Rio de Janeiro. Aplicou-se o questionário de frequência alimentar na primeira semana após o parto tendo como base o consumo dos dois últimos trimestres gestacionais. O balanço energético foi calculado a partir da divisão da ingestão de energia pela taxa metabólica basal (sub-relato<1,35). Adotou-se a regressão logística multivariada para analisar as associações entre os índices de massa corporal e a densidade dos macronutrientes da dieta (proteína, carboidratos e lipídios) com o balanço energético (sub-relato ou não).
RESULTADOS: a ingestão média de energia foi de 2.894 kcal e 25% das mulheres foram classificadas com sub-relato. Mulheres obesas no pós-parto tiveram maiores chances (OR=1,90; IC95%=1,09-3,33) de sub-relato de energia na gravidez e gestantes com balanço energético <1,35 apresentaram dieta com maior densidade de proteína (OR=2,37; IC95%=1,37-4,09) e menor densidade de gordura (OR=1,81; IC95%=1,04-3,15).
CONCLUSÃO: a obesidade no pós-parto foi associada ao sub-relato de energia na gravidez e o balanço energético associou-se a densidade dos macronutrientes da dieta
METHODS: cross-sectional analysis of 327 postpartum women from the city of Mesquita, in Rio de Janeiro. A food frequency questionnaire was administered at maternity ward having the last six months of the pregnancy as the time frame. Energy balance was considered as the outcome, and it was calculated as the division of energy intake by basal metabolic rate (underreport <1.35). Multivariate logistic regression was applied to test the associations between body mass index (pre-gestational and postpartum) on energy balance (underreport or not). Dietary density of protein (4th quartile), carbohydrate (1st quartile) and fat intake (1st quartile) were tested.
RESULTS: mean energy intake was 2,894 kcal and near of 25% of the women were considered as underreported during pregnancy. Obese women had higher chance (OR=1.90; CI95%=1.09-3.33) of being underreported at pregnancy. Underreported women presented greater chance of report dietary intake with higher contents of protein (OR=2.37; CI95%=1.37-4.09) and lower density of fat (OR= .81; CI95%=1.04-3.15).
CONCLUSION: underreported pregnant womenhad higher chance of report great and lower amounts of protein and fat dietary densities.
O sub-relato do consumo alimentar é comum em estudos de epidemiologia nutricional, mesmo quando são utilizados diferentes métodos de avaliação, como questionários de frequência alimentar, recordatórios de 24 horas e registros alimentares.1-5 Não existe a definição do melhor método para avaliação do consumo alimentar, uma vez que a acurácia dos mesmos depende do objetivo da avaliação: alimentos, nutrientes, padrões alimentares entre outros objetivos.
Embora o registro alimentar seja considerado o método mais preciso para estimar o consumo alimentar habitual, todos os métodos têm limitações metodológicas que podem influenciar ou classificar erroneamente os relatores e confundir a direção das associações.1-3 Viés de memória, variação aleatória e sistemática da ingestão alimentar, variação sazonal, a percepção do tamanho da porção do alimento e a lista de alimentos utilizada são algumas das questões que devem ser consideradas.2-5 O índice de massa corporal (IMC) tem sido considerado o principal preditor de sub-relato. A maioria dos estudos sobre esse tema foi realizada com adultos e indica que a relação do IMC com a subnotificação pode ser mais forte em mulheres do que em homens.1-3
Poucos estudos foram realizados durante o período gestacional e descreveram a associação entre IMC e sub-relato do consumo alimentar.6-9 Gestantes obesas tendem a interpretar erroneamente o consumo alimentar, e, na maioria das vezes, omitem ou sub-relatam o tamanho das porções quando comparadas com gestantes com menor IMC. A depressão e o comportamento alimentar têm sido considerados preditores independentes do sub-relato.6,7
Estudos têm mostrado uma ampla variação na prevalência de subnotificação de energia durante a gravidez.6-9 Além disso, o aumento da prevalência do sub-relato de ingestão de energia ao longo da gravidez não é um consenso.6,7,9 McGowan e McAuliffe8 avaliaram 248 gestantes irlandesas saudáveis e verificaram que 44% eram subnotificadoras potenciais, enquanto 10,9% foram classificadas com sub-relato de fato. Winkvist et al.9 realizaram um estudo longitudinal com gestantes da Indonésia e mostraram prevalências de 29,7%, 16,2% e 17,6% de sub-relato no primeiro, segundo e terceiro trimestres, respectivamente. De acordo com Moran et al.6 38,0% e 59,7% das gestantes foram classificadas como subnotificadoras do consumo energético no início do estudo e com 36 semanas de gestação, respectivamente.
A ingestão dietética durante a gravidez deve ser avaliada com atenção porque a ingestão insuficiente ou alta de energia e inadequada em nutrientes pode ter efeito deletério no ganho de peso materno e, consequentemente, no resultado gestacional.10-12 Além disso, gestantes que costumam sub-relatar o consumo alimentar aderem menos às recomendações dietéticas,8 o que pode prejudicar o adequado desenvolvimento gestacional. A literatura tem mostrado que macronutrientes específicos como proteína e gordura, outros nutrientes como cálcio e produtos alimentícios são frequentemente sub-relatados.1,8,12 Observou-se que adultos que sub-relatam tendem a relatar menor ingestão de gordura8,13 e doces13 e maior consumo de proteína.8 É necessária uma melhor compreensão da proporção de subnotificação de "alimentos saudáveis", como frutas e verduras, e da densidade de nutrientes da dieta.
Considerando que poucos estudos foram realizados com gestantes e a importância da avaliação nutricional adequada desse grupo populacional para alcançar resultados maternos e fetais desejáveis, é importante investigar as características maternas, bem como os fatores dietéticos, que possivelmente estão associados à subnotificação do consumo alimentar durante a gestação. Dessa forma, pode ser viabilizada uma melhor triagem de gestantes que subnotificam o consumo alimentar e, adicionalmente, pode ser possível minimizar o viés em estudos futuros, ajustando as análises por covariáveis de confusão. Assim, o objetivo do presente estudo foi avaliar a associação do IMC pré-gestacional e das densidades dietéticas de macronutrientes com a subnotificação do consumo energético.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal com 327 mães que tiveram seus filhos na maternidade do Hospital Municipal Leonel de Moura Brizola (HMLMB) em Mesquita, município do Estado do Rio de Janeiro. O estudo faz parte de um projeto maior intitulado 'Efeito dos determinantes nutricionais, sociodemográficos e reprodutivos na variação de peso pós-parto e no desenvolvimento de comorbidades'. Mulheres que tiveram seus filhos entre fevereiro de 2009 e fevereiro de 2011 foram convidadas a participar, de acordo com os seguintes critérios de elegibilidade: ter entre 18 e 45 anos, apresentar gravidez única e sem doenças crônicas pré-existentes, exceto obesidade. Das 338 mulheres recrutadas, 334 (98,8%) aceitaram participar e 7 (2,1%) foram excluídas da análise porque relataram consumo energético acima de 6.000 kcal, o que foi considerado implausível.14,15
Questionários estruturados foram aplicados na maternidade na primeira semana após o parto para obter informações sobre as condições sociodemográficas. Nutricionistas treinados foram responsáveis pela coleta de dados e pela aferição das medidas antropométricas, que foi realizada de acordo com o protocolo de Lohman.16 Foram coletadas informações sobre as seguintes variáveis sociodemográficas: idade (anos), escolaridade (anos), renda familiar (dolar) , cor da pele (preta e parda ou branca e outra), casado ou união estável (sim ou não) e paridade (número de filhos).
O desfecho do presente estudo foi o balanço energético (BE). Essa variável foi calculada dividindo-se a ingestão energética (IE) pela taxa metabólica basal (TMB). O cálculo da TMB foi baseado na equação de Harris-Benedict que considera peso (kg), altura (cm) e idade (anos).17 Valores de BE menores que 1,35 foram usados para classificar o sub-relato do consumo alimentar.18
O consumo alimentar foi obtido por meio da aplicação de um Questionário de Frequência Alimentar (QFA) com 81 alimentos na maternidade, tendo como recorte temporal os últimos seis meses da gravidez. O QFA foi previamente validado por Sichieri e Everhart.19 O QFA continha porções descritas como medidas caseiras segundo Pinheiro et al.20 e nove frequências de consumo que variavam entre: nunca ou quase nunca; uma a três vezes por mês; uma vez por semana; duas a quatro vezes por semana; cinco ou seis vezes por semana; uma vez por dia; duas ou três vezes ao dia; mais de três vezes ao dia. Em seguida, as informações foram convertidas em frequências diárias por meio de um programa desenvolvido por Sichieri21 no pacote estatístico Statistical Analysis System versão 9.3. A Tabela Brasileira de Composição de Alimentos22 foi utilizada como principal banco de dados de composição nutricional para a conversão dos alimentos em macronutrientes (proteína, gordura e carboidrato e energia). A densidade do consumo alimentar (gramas/energia) foi calculada para cada macronutriente e, a seguir, uma variável binária foi criada considerando o quartil da ingestão: densidade de proteína (4º quartil versus outros); densidade de carboidrato (1º quartil versus outros); e densidade de gordura (1º quartil versus outros).
Peso pré-gestacional (PPG), índice de massa corporal pré-gestacional (IMCPG), índice de massa corporal (IMC) atual no pós-parto imediato e ganho de peso gestacional (GPG) foram as variáveis antropométricas avaliadas. A informação do PPG foi obtida do cartão de pré-natal, se aferido antes da 13ª semana gestacional. Se não disponível, foi considerado autorrelatado. O peso (kg) e a altura (m) pós-parto foram aferidos na maternidade na primeira semana após o parto, usando uma balança digital Tanita® (Tanita Inner Scan, Tanita Corporation of America, Inc., Illinois, EUA) e estadiômetro portátil Altura Exata®, respectivamente. Para as medidas antropométricas, os participantes usaram roupas leves e tiraram os sapatos. IMCPG e IMC atual foram calculados pela fórmula: IMC= peso (kg)/altura (m2). IMC ≥ 25 kg/m2 e IMC ≥ 30 kg/m2 foram adotados como pontos de corte para classificação de sobrepeso e obesidade no período pré-gestacional.23 O IMC atual foi categorizado apenas para classificar mulheres como obesas (ou não).
Inicialmente, o estado nutricional (IMCPG, IMC, PPG e GPG), consumo energético (kcal), densidades dietéticas de macronutrientes (proteína, carboidrato e gordura) e características sociodemográficas [idade materna (anos), paridade (n), escolaridade (anos), renda familiar (dólar americano), estado civil (casada e união estável ou solteira e outras) e cor da pele (preta e parda ou branca e outras) das 327 puérperas foram comparadas segundo o estado de BE (≥1,35 ou <1,35 ) usando o teste t de Student para analisar diferenças entre médias ou teste qui-quadrado para proporções. Após isso, todas as variáveis foram estratificadas de acordo com IMCPG (≥ ou <25 kg/m2) e status do BE (≥ ou <1,35).
O modelo de regressão logística múltipla foi usado para estimar o efeito do IMCPG [obeso (1) ou não obeso (0); sobrepeso (1) ou sem sobrepeso (0)] com o BE [≥1,35 (1) ou <1,35 (0)]. O ajuste do modelo considerou o histórico disponível na literatura científica e as covariáveis que foram consideradas confundidoras (ancestral ao desfecho e exposição pela metodologia DAGitty (versão 3.0). Os modelos múltiplos para cada preditor foram ajustados para idade materna e cor da pele. Todas as análises foram realizadas no SAS.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Medicina Social da UERJ (número do protocolo: CAAE 0178.0.314.000-10). O contexto, procedimentos e objetivos do estudo foram explicados às gestantes e as que aceitaram participar voluntariamente deram seu consentimento informado após todos os esclarecimentos terem sido feitos. A metodologia esteve em conformidade com as diretrizes STROBE.24
Resultados
As gestantes entrevistadas no pós-parto apresentaram um IMCPG médio (DP) de 23,6 kg/m2 (4,64) e idade materna de 24,8 (5,53) anos. Dentre as 327 mulheres avaliadas, 83 (25,4%) foram classificadas com sub-relato de energia e a maioria delas reportou densidades (Figura 1) maiores de proteína [42,3 g/kcal (7,80) versus 38,8 g/kcal (8,28); p=0,001] e menores de gordura [25,2 g/kcal (5,67) versus 27,0 g/kcal (6,30); p=0,021] da dieta quando comparadas com gestantes sem sub-relato de energia (Tabela 1).
Ademais, mulheres com excesso de peso reportaram maiores quantidades da densidade de proteína na dieta (p=0,002) do que mulheres sem excesso de peso e com BE≥1,35 (Tabela 2).
De acordo com os modelos de regressão logística múltipla mulheres com obesidade atual (IMC ≥ 30 kg/m2) apresentaram maiores chances (OR=1,90; IC95%=1,09-3,33; p=0,024) de serem classificadas com sub-relato de energia. Nota-se na Tabela 3, que mulheres com sub-relato reportaram maiores densidade de proteína dietética (OR=2,37; IC95%=1,37-4,09; p=0,002) e menores densidades de gordura (OR=1,81; IC95%=1,04-3,15; p=0,036) do que mulheres com o BE adequado.
Discussão
O principal achado do estudo foi que gestantes que sub-relataram o consumo energético tenderam a informar maiores e menores densidades de proteína e gordura, respectivamente. Além disso, as mulheres com obesidade atual apresentaram maiores chances de serem classificadas como mulheres sub-relatoras de energia quando comparadas às mulheres com peso normal. Aproximadamente 25,0% das mulheres do estudo foram classificadas como sub-relatoras de energia e, dentre elas, mais de um terço foi classificada com excesso de peso.
Segundo a literatura científica, o IMC parecer ser o preditor mais consistente para o sub-relato do consumo alimentar,25,26 no entanto a idade atual, renda e escolaridade26 também são, comumente, citados como importantes preditores. Em uma amostra de 248 gestantes, avaliadas por McGowan & McAuliffe,8 a prevalência total de sub-relato foi de até 45%. Este estudo apresentou uma elevada prevalência de sub-relato com o aumento do IMC, semelhante aos nossos resultados. Winkvist et al.9 avaliaram o consumo alimentar de gestantes por meio de seis recordatórios de 24 horas repetidos em cada trimestre gestacional e os autores verificaram uma redução da prevalência de sub-relato do primeiro para o terceiro trimestre gestacional. No entanto, os autores não estratificaram as análises segundo o IMC. Ainda, as diferenças nas proporções de sub-relatos em estudos com gestantes podem ser devido aos diferentes pontos de corte que definem esse desfecho que tem sido utilizado frequentemente na literatura.
Estudos anteriores descreveram associação entre estado nutricional e o sub-relato do consumo alimentar. O sub-relato do consumo energético varia em função do IMC pré-gestacional e entre gestantes obesas.6,7 Segundo Ravelli e Schoeller,27 indivíduos obesos estão mais propensos a sub-relatar o consumo de energia em mais 7,0% do que indivíduos com IMC adequado. Os autores mencionaram a associação do sub-relato e o peso do indivíduo.
Mais especificamente, durante a gestação, em um estudo coorte8 que avaliou 248 irlandesas entre 12 e 20 semanas gestacionais, foi identificado que a maior categoria de IMC (≥ 25 kg/m2) foi associado com elevados OR de sub-relato de energia (OR=4,40; IC95%=2,48-7,67) quando comparados com gestantes de peso normal (<25 kg/m2). No estudo de Winkvist et al.,9 o IMC do início da gestação foi significantemente associado ao elevado risco de sub-relato em todos os trimestres gestacionais. Os resultados desses estudos anteriores, conduzidos com amostras de adultos e gestantes estão de acordo com os nossos resultados, que mostraram uma associação inversa entre IMC pré-gestacional e balanço energético.
Outra questão importante é a direção do relato incorreto e o viés em que o erro sistemático não controlado poderia introduzir nas interpretações levando a conclusões errôneas. Gestantes podem relatar sua ingestão alimentar de forma desejável do ponto de vista social de da saúde, conforme observado por Scagliusi et al.28 entre 38 mulheres saudáveis. Em nosso estudo, foi observado que as gestantes com maior IMC subestimaram o consumo de gordura e superestimaram o consumo de proteína na dieta. Essa direção desigual das quantidades de ingestão de macronutrientes foi descrita por Johansson et al.13 Os autores observaram entre 193 entrevistados suecos que os subnotificadores reportaram uma dieta com densidade significativamente maior em proteína e menor em gordura. Assim como os resultados do presente estudo, não foi observada diferença de relato normal ou subestimado em relação à ingestão de carboidratos. De acordo com Ravelli e Schoeller,27 a ingestão de proteínas é sub-relatada em uma porcentagem menor do que carboidratos e gorduras. McGowan e McAuliffe8 observaram diferença significativa do percentual médio de ingestão de proteína (maior) e de gordura (menor) entre os grupos de relatos do consumo energético.
As limitações do presente estudo são relacionadas principalmente ao desenho do estudo. Estudos transversais não permitem assunções de temporalidade, uma vez que ambas as medidas são avaliadas em um único momento no tempo. A impossibilidade de medir a taxa metabólica basal (BMR) ou o gasto energético total usando métodos padrão-ouro, como a água duplamente marcada, também pode ser considerada uma limitação. Na ausência do método padrão-ouro, pesquisadores têm utilizado a relação IE/TMB proposta por Goldberg et al.29 e considerado valores inferiores a 1,35 para classificar o sub-relato. Durante a gestação é necessária uma taxa constante entre a ingestão e o gasto energético, pois taxas menores não suportam o ganho de peso corporal ao longo da gestação. Além disso, o viés de memória é inerente à avaliação retrospectiva da ingestão alimentar, mas podemos tê-lo minimizado usando um QFA validado.
Apesar destas limitações, inerentes aos estudos transversais, é importante destacar que nossa hipótese foi cuidadosamente desenhada considerando estudos anteriores que já descreveram a sua plausibilidade temporal. Avaliamos variáveis sociodemográficas, que também representam potenciais fatores de confusão. Assim, selecionamos os fatores de confusão com base na plausibilidade biológica a partir do emprego do DAG.
Nossos resultados foram baseados em medidas válidas amplamente utilizadas em estudos epidemiológicos, passíveis de serem coletadas para rastreamento de subgrupos na atenção nutricional. O instrumento utilizado para medir a ingestão alimentar foi previamente validado19 e outros pesquisadores relataram boa validade e reprodutibilidade desse método quando usado durante os períodos gestacional e pós-parto.15
A escolha do ponto de corte para definir BE considerou o fato do QFA ter como recorte temporal os últimos seis meses de gestação. A IE insuficiente nesse período seria incompatível com GPG durante a gestação. Além disso, de acordo com revisão realizada por Livingstone e Black,30 foi demonstrado que a correlação de IE e gasto energético medido por diferentes avaliações dietéticas pode variar de 0,76 a 1,24 usando técnicas precisas como água duplamente marcada.
Por fim, ressaltamos que mais estudos devem ser realizados para entender o risco do sub-relato na gravidez. Em nosso estudo verificou-se que a probabilidade de sub-relato é maior à medida que o IMC aumenta, assim como o maior risco de relatar dietas com altos teores de proteína e baixa densidade de gordura. Métodos que contabilizam a subestimativa ou superestimativa da IE auto-relatada com requisitos de energia plausíveis a partir de múltiplos da taxa metabólica de repouso recomendados por Goldberg et al.,29 aumentam a validade da informação excluindo das análises pessoas com relatos errôneos.
Resumidamente, nossos dados corroboram com estudos anteriores que avaliaram a associação entre o IMC e o sub-relato do consumo alimentar. Identificamos que essa associação também ocorreu quando as mulheres no pós-parto imediato relataram o consumo alimentar durante a gestação. Ainda, ser uma puérpera obesa foi associada ao sub-relato na gravidez, apontando que o estado nutricional deve ser considerado para identificar mulheres que potencialmente sub-relatam sua ingestão alimentar durante a gestação. Além do sub-relato, observou-se que os macronutrientes da dieta não foram relatados na mesma direção. Ser classificada como gestante sub-relatadora aumentou a chance de relatar uma dieta com maior densidade de proteína e menor de gordura.
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Recebido em 13 de Agosto de 2021
Versão final apresentada em 22 de Novembro de 2022
Aprovado em 7 de Fevereiro de 2023
Editor Associado: Sheila Morais
Contribuição dos autores: Castro MBT: conceitualizou o estudo e coletou os dados, realizou a análise estatística e a interpretação dos dados, redigiu e revisou o manuscrito. Franco-Sena AB: realizou a interpretação dos dados, redigiu e revisou o manuscrito. Freitas-Vilela AA, Pinto TJP, Rocha CMM, Benaim C e Eshriqui I: redigiram e revisaram o manuscrito. Kac G: revisou o manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesses.