A eclâmpsia permanece como uma das emergências mais temidas da obstetrícia. Embora o uso do sulfato de magnésio (MgSO
2) para tratar crises eclâmpticas seja descrito desde o início do século XX,
1 foram as padronizações dos pesquisadores, Pritchard, 1950, e Zuspan, 1960, que sistematizaram esquemas terapêuticos reprodutíveis de ataque e manutenção.
2,3A evidência clínica sólida foi definitivamente consolidada em 1995 com a publicação do
Eclampsia Trial, demonstrando superioridade do MgSO
2 sobre diazepam e fenitoína na prevenção de recorrências e na redução de desfechos graves.
4 Na sequência, três revisões sistemáticas publicadas na biblioteca Cochrane reforçaram a efetividade e a segurança do MgSO
2 em eclâmpsia, estabelecendo-o como padrão de cuidado.
5-7Apesar disso, falhas persistem: atrasos na administração, doses incorretas, ausência de monitorização e até não reconhecimento de indicações. Uma revisão recente de mortes maternas na África do Sul mostrou que, mesmo em mulheres com indicação óbvia, o MgSO
2 não foi administrado em parte dos casos e, em outros, foi usado de forma incorreta, com dose de ataque ou manutenção inadequadas. Essas falhas, somadas aos atrasos da assistência e à falta de vigilância, resultaram em mortes evitáveis e reforçam o abismo entre a evidência consolidada e a prática.
8É nesse cenário que se insere o mnemônico
ABCDEFG, proposto em 2011 por Amorim & Katz e amadurecido em cursos nacionais e internacionais. Inspirado na lógica do
Advanced Trauma Life Support (ATLS),
9 ele organiza a avaliação primária de forma rápida e repetitiva, porém adaptada à fisiologia e à ética do binômio materno-fetal: primeiro estabilizar a mãe (A–E), só então avaliar feto e gestação (F–G). A força do acrônimo não está nas letras, mas no que elas tornam possível à beira-leito: reduzir ruído, ordenar prioridades, distribuir papéis e impedir que o essencial seja esquecido em contextos de estresse elevado.
O ABCDEFG, passo a passo (Tabela 1):
A — Ajuda/Airway (vias aéreas). Acionar a equipe multiprofissional, distribuir papéis e proteger a via aérea. Posicionar em decúbito lateral, aspirar secreções, usar cânula orofaríngea quando indicado e observar critérios para via aérea avançada.
B — Breathing (respiração). Monitorar frequência respiratória (FR) e saturação periférica de oxigênio (SpO
2) desde a admissão. Oferecer oxigênio titulado em máscara não reinalante com meta ≥95% e escalonar suporte ventilatório se necessário.
C — Circulation (circulação). Garantir dois acessos venosos calibrosos, hidratação cautelosa e vigilância da perfusão. Instalar sonda vesical e perseguir diurese ≥0,5 mL/kg/h, evitando sobrecarga hídrica.
D — Disability/Dano (neurológico). Núcleo do manejo: sulfato de magnésio intravenoso (IV), ataque e manutenção, monitorização de reflexos, respiração, diurese e antídoto à cabeceira. Redose se convulsão recorrente; escalonar para hidantoína e via aérea avançada se refratária.
E — Emergência hipertensiva/Exames. Tratar imediatamente pressão arterial sistólica (PAS) ≥160 mmHg e/ou pressão arterial diastólica (PAD) ≥110 mmHg. Alvo: redução de 15–25% e manutenção entre PAS entre 130–150 e PAD entre 80–100 mmHg. No Brasil: nifedipina via oral (VO) de liberação imediata e hidralazina IV. Solicitar exames prioritários sem atrasar terapêutica.
10F — Feto. Avaliação fetal somente após estabilização materna. Alterações pós-convulsão são geralmente transitórias; duração de bradicardia fetal >10–15 min sugere descolamento prematuro de placenta normalmente inserida (DPPNI) e exige decisão obstétrica imediata.
11G — Gestação. Interrupção é mandatória, mas não imediata ou intempestiva. Sempre que possível, aguardar pelo menos uma hora após a última crise e evitar retirar o feto no acme da acidose. Parto vaginal preferível quando viável;
12 cesariana para sofrimento fetal persistente, DPPNI, hemorragias graves ou inviabilidade de indução.
Cultura de segurança que sustenta o acrônimoO ABCDEFG só funciona integrado à práticas de segurança: comunicação em alça fechada, com ordens explícitas e confirmação obrigatória; simulação
in situ, para transformar protocolo em comportamento automático; e auditoria contínua, com indicadores como tempo porta-magnésio, porta-controle pressórico e taxa de cesarianas motivadas por traçados transitórios.
Publicação e compromissoA RBSMI publica, neste volume, o artigo especial
13 que detalha o mnemônico ABCDEFG, com fluxos, algoritmos e quadros operacionais. Este editorial apresenta sua arquitetura e seu sentido clínico. O desafio não é inventar algo novo, mas transformar evidências já estabelecidas em rotinas confiáveis e universais. O que propomos é simples e exigente: adotar uma linguagem comum para a eclâmpsia, capaz de reduzir variabilidade assistencial e encurtar tempos críticos. O ABCDEFG não é um fim, mas um começo — um convite à disciplina clínica, à comunicação clara e à implementação que salva.
Referências1. Sibai BM. Diagnosis, prevention, and management of eclampsia. Obstet Gynecol. 2005; 105 (2): 402–10.
2. Pritchard JA. The use of the magnesium ion in the management of eclamptogenic toxemias. Surg Gynecol Obstet. 1955; 100 (2): 131-40.
3. Zuspan FP. Treatment of severe preeclampsia and eclampsia. Clin Obstet Gynecol. 1966; 9: 954-72.
4. The Eclampsia Trial Collaborative Group. Which anticonvulsant for women with eclampsia? Evidence from the Collaborative Eclampsia Trial. Lancet. 1995; 345 (8963): 1455-63.
5. Duley L, Henderson Smart DJ. Magnesium sulphate versus diazepam for eclampsia. Cochrane Database Syst Rev. 2010; (12): CD000127.
6. Duley L, Henderson Smart DJ. Magnesium sulphate versus phenytoin for eclampsia. Cochrane Database Syst Rev. 2010; (10): CD000128.
7. Duley L, Gülmezoglu AM, Chou D. Magnesium sulphate versus lytic cocktail for eclampsia. Cochrane Database Syst Rev. 2010; (9): CD002960.
8. Khan ZL, Balie GM, Chauke L. Hypertensive Disorders of Pregnancy Deaths: A Four Year Review at a Tertiary/Quaternary Academic Hospital. Int J Environ Res Public Health. 2025; 22 (7): 978.
9. American College of Surgeons (ACS). Committee on Trauma. Advanced Trauma Life Support (ATLS
®) Student Course Manual. 11
th ed. Chicago (IL): ACS; 2025.
10. ACOG Committee Opinion No. 767. Emergent therapy for acute onset, severe hypertension during pregnancy and the postpartum period. Obstet Gynecol. 2019; 133 (2): e174–80.
11. Ambia AM, Wells CE, Yule CS, McIntire DD, Cunningham FG. Fetal heart rate tracings associated with eclamptic seizures. Am J Obstet Gynecol. 2022; 227 (4): 622.e1–622.e6.
12. Seal SL, Ghosh D, Kamilya G, Mukherji J, Hazra A, Garain P. Does route of delivery affect maternal and perinatal outcome in women with eclampsia? A randomized controlled pilot study. Am J Obstet Gynecol. 2012 Jun; 206 (6): 484.e1–484.e7.
13. Amorim MMR, Albuquerque MA, Brito JC, Carneiro ACMC, Katz L. O ABCDEFG da Eclâmpsia (Suporte Avançado de Vida na Eclâmpsia). Rev Bras Saúde Mater Infant. 2025. [artigo especial;
Epub ahead of print].
À convite da Editora Chefe: Lygia Vanderlei