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Qualis Capes Quadriênio 2017-2020 - B1 em medicina I, II e III, saúde coletiva
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Paracetamol, autismo e a panaceia presidencial: quando a bravata encontra a evidência (e perde)

Melania Maria Ramos de Amorim1

DOI: 10.1590/1806-9304202500000327 e20250327

O episódio mais recente do melodrama anticientífico não surpreende: Donald Trump voltou ao centro do palco ao afirmar que o paracetamol usado na gestação "levaria" ao autismo e, de quebra, acenar com o ácido folínico (leucovorina) como "cura" para o transtorno do espectro do autismo (TEA).1,2 A mistura é perfeita para manchetes: um vilão cotidiano, um bode expiatório conveniente — as mães — e a promessa de redenção farmacológica. O que falta é o detalhe que sustenta a prática clínica: evidência robusta, obtida por método adequado e interpretada com senso de proporção.

A peça-chave desse debate é o estudo populacional sueco publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) em 2024, com quase 2,5 milhões de nascimentos e análise entre irmãos biológicos.3 Em modelos convencionais, o uso de paracetamol pareceu associar-se levemente ao transtorno do espectro autista (TEA) e ao transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH). Esse "sinal" — associação estatística de pequena magnitude, sem comprovação causal — desapareceu quando os autores compararam irmãos discordantes de exposição. Esse desenho atenua confundimento por genética e ambiente familiar, as razões de risco aproximam-se da nulidade e não há gradiente dose–resposta.3 Em linguagem simples: quando se mede direito, o efeito some.

Não por acaso, as recomendações de órgãos técnicos permaneceram estáveis. A European Network of Teratology Information Services (ENTIS) mantém o paracetamol como primeira escolha na gestação quando clinicamente indicado, na menor dose eficaz e pelo menor tempo necessário.4 Em 23 de setembro de 2025, a European Medicines Agency (EMA) reafirmou que nada mudou na União Europeia quanto ao uso de paracetamol na gravidez.5 No mesmo sentido, o American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) reiterou que o paracetamol segue como opção mais segura para dor e febre na gravidez, desde que empregado com critério clínico.6

Dor e febre na gestação não são detalhes cosméticos; são problemas frequentes que interferem na qualidade de vida e, quando negligenciados, pioram desfechos. Lombalgia e dor pélvica são altamente prevalentes e tendem a intensificar-se no terceiro trimestre; meta-análise recente confirma a magnitude do problema e o impacto funcional que exige abordagem ativa.7 A febre materna não tratada também preocupa, sobretudo em quadros infecciosos. O manejo responsável, portanto, é parte do cuidado — não um luxo.5,6

Se o paracetamol fosse banido no impulso das manchetes, restaria às gestantes um cardápio de alternativas mais arriscadas justamente nas fases mais sensíveis do desenvolvimento fetal. Os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) apresentam riscos conhecidos: a Food and Drug Administration (FDA) alerta para oligoâmnio a partir da 20ª semana e para constrição do ducto arterial no fim da gestação.8 A dipirona (metamizol) possui histórico regulatório heterogêneo, é formalmente contraindicada no terceiro trimestre por fetotoxicidade e já foi associada a oligoâmnio e constrição do ducto arterial com uso prolongado no final do segundo trimestre; se inevitável nessa janela, recomenda-se uso breve e monitorização ultrassonográfica.9,10 Além disso, não é aprovada nos Estados Unidos da América (EUA) devido ao risco de agranulocitose.11 Nesse cenário comparativo, o paracetamol preserva o lugar de primeira linha: indicado quando há necessidade clínica, na menor dose eficaz e pelo menor tempo possível.4-6

Por que, então, seguimos vendo manchetes que insinuam causalidade entre um analgésico onipresente e desfechos complexos de neurodesenvolvimento? Uma parte importante da resposta é metodológica. Estudos observacionais de exposições ubíquas capturam mais o contexto familiar e de saúde — genética, condições socioeconômicas, comorbidades e práticas de cuidado — do que um efeito farmacológico isolado. Gestantes com enxaqueca, infecções, dor crônica, ansiedade ou depressão usam mais analgésicos; essas mesmas condições, independentemente do medicamento, relacionam-se a desfechos neuropsiquiátricos na prole.3 Sem controle adequado de confundimento, a estatística tende a fabricar miragens.

Há também uma razão cultural e política para a persistência de falsas certezas: a velha retórica da culpa materna. Sempre que o assunto é neurodesenvolvimento, a responsabilidade escorre para a mãe. Essa narrativa desloca o peso da falha para o corpo feminino e perpetua vigilância sobre as escolhas reprodutivas. É um reflexo de estruturas patriarcais que historicamente transformam incerteza estatística em culpa moral: o útero vira o lugar presumido do erro, e a mulher, a suspeita permanente.12 O processo deseduca, fere e silencia, desviando o olhar dos determinantes reais — genética, ambiente, condições sociais e acaso biológico — para o mito da mãe onipotente e eternamente culpada.12

Em saúde pública, esse moralismo não apenas piora desfechos como perpetua desigualdades de gênero. Ao fragilizar a autonomia das mulheres, legitima práticas de violência simbólica e esvazia a clínica de seu compromisso com o cuidado. Reconhecer a autonomia informada das gestantes é, portanto, também um ato feminista — e condição para práticas verdadeiramente emancipatórias.12 O que a boa clínica precisa cultivar é método e escuta qualificada; o que deve rejeitar é a tentação de converter incerteza em julgamento moral.

Os efeitos sociais dessa retórica se somam a uma economia da desinformação que se mostrou lucrativa. Desde a fraude de Andrew Wakefield, cuja retração oficial em 2010 não conteve a onda antivacinas, associações espúrias com autismo viraram negócio.13 O roteiro é conhecido: cria-se um risco cotidiano e, na sequência, vendem-se "soluções" milagrosas. Multiplicam-se dossiês malfeitos, "protocolos detox", ozonioterapia e outras terapias sem base científica, com promessas grandiloquentes e resultados modestos ou inexistentes.13 A indústria do medo prospera explorando angústias, culpabilizando mães e prometendo atalhos; o custo real recai sobre famílias, serviços de saúde e políticas públicas.13

E o ácido folínico, erigido a "cura" de ocasião? Ensaios clínicos randomizados de pequeno porte sugerem benefícios em subgrupos muito específicos de crianças autistas, especialmente aquelas com autoanticorpos contra o receptor de folato alfa, com ganhos de linguagem e melhora modesta em escores globais.14,15 Ainda assim, amostras reduzidas, curta duração de seguimento, desfechos em parte subjetivos e análises de subgrupos frágeis limitam a interpretação. Lidos com ceticismo — como convém a resultados preliminares — esses achados não sustentam recomendações clínicas generalizadas nem autorizam narrativas de "cura".14,15

No manejo concreto da dor e da febre durante a gestação, o caminho responsável continua o de sempre: avaliar indicação, dose e tempo. O paracetamol permanece a primeira escolha quando clinicamente indicado; usar a menor dose eficaz pelo menor tempo necessário.4-6 Os AINE devem ser evitados, como anteriormente comentado, a partir de 20 semanas e, sobretudo, no final da gestação, quando o risco de constrição do ducto arterial é maior; se absolutamente indispensáveis em janela intermediária, a decisão precisa ser individualizada e o uso, restrito.8 Quanto à dipirona, manter a contraindicação no terceiro trimestre e, se um cenário clínico excepcional impor seu uso no final do segundo trimestre, limitar a duração e monitorizar por ultrassonografia, evitando o risco de oligoâmnio e constrição do ducto arterial.9,10 Lembrar, por fim, que o fármaco não é aprovado nos EUA por risco de agranulocitose.11

No fim das contas, a pergunta "paracetamol causa autismo?" foi abordada com um desenho capaz de separar associação de causa, e a resposta, até aqui, é negativa.3 Órgãos regulatórios e sociedades científicas, cujo ofício é pesar riscos e benefícios em saúde pública, mantiveram suas recomendações.4-6 A tentação de decidir a priori — pelo palanque, pelo algoritmo ou pelo clique — custa caro em confiança social e em sofrimento de famílias; decidir com método científico dá trabalho, mas devolve previsibilidade ao cuidado e dignidade às pessoas.

Em suma, a boa prática não precisa de heróis, precisa de pesquisas. Ao resistir à culpabilização materna e à sedução de soluções miraculosas, reafirmamos a tríade que sustenta a medicina responsável — método científico, medida e responsabilidade — e garantimos que o cuidado em obstetrícia continue a ser, antes de tudo, uma defesa da autonomia informada. É menos barulhento que um comício, mas infinitamente mais útil para mães e bebês.


Referências

1. Mason J, Aboulenein A, Steenhuysen J. Trump links autism to Tylenol and vaccines, claims not backed by science. BusinessLIVE (Reuters). [Internet]. [acesso em 2025 Set 23]. Disponível em: https://www.reuters.com/business/healthcare-pharmaceuticals/trump-expected-link-autism-with-tylenol-experts-say-more-research-needed-2025-09-22/

2. Devlin H, Sample I. Is Tylenol the same as paracetamol, and should you take it in pregnancy? The Guardian 24 set 2025; [Internet]. [acesso em 2025 Set 24]. Disponível em: https://www.theguardian.com/society/2025/sep/23/is-paracetamol-safe-during-pregnancy-and-does-it-have-links-to-autism

3. Ahlqvist VH, Sjöqvist H, Dalman C, Karlsson H, Stephansson O, Johansson S, et al. Acetaminophen Use During Pregnancy and Children's Risk of Autism, ADHD, and Intellectual Disability. JAMA. 2024; 331 (14): 1205-14.

4. European Network of Teratology Information Services (ENTIS). Position statement on acetaminophen (paracetamol) in pregnancy. ENTIS; 3 out 2021. [acesso em 2025 Set 23]. Disponível em: https://www.entis-org.eu/wp-content/uploads/2021/10/ENTIS-position-statement-on-acetaminophen-3.10.2021.pdf

5. European Medicines Agency (EMA). Use of paracetamol during pregnancy unchanged in the EU. [Internet]. [acesso em 2025 Set 23]. Disponível em: https://www.ema.europa.eu/en/news/use-paracetamol-during-pregnancy-unchanged-eu

6. American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG). Acetaminophen Use in Pregnancy and Neurodevelopmental Outcomes. Practice Advisory Set 2025. [Internet]. [acesso em 2025 Set 23]. Disponível em: https://www.acog.org/clinical/clinical-guidance/practice-advisory/articles/2025/09/acetaminophen-use-in-pregnancy-and-neurodevelopmental-outcomes

7. Salari N, Mohammadi A, Hemmati M, Hasheminezhad R, Kani S, Shohaimi S, et al. The global prevalence of low back pain in pregnancy: a comprehensive systematic review and meta-analysis. BMC Pregnancy Childbirth. 2023; 23: 830.

8. U.S. Food and Drug Administration (FDA). Nonsteroidal anti-inflammatory drugs (NSAIDs) — Drug Safety Communication: avoid use in pregnancy at 20 weeks or later. FDA; 15 Out 2020. [Internet]. [acesso em 2025 Set 23]. Disponível em: https://www.fda.gov/safety/medical-product-safety-information/nonsteroidal-anti-inflammatory-drugs-nsaids-drug-safety-communication-avoid-use-nsaids-pregnancy-20

9. European Medicines Agency (EMA). Metamizole-containing medicinal products — Article 31 referral. EMA; 14 Dez 2018; atualizado 28 Mar 2019. [Internet]. [acesso em 2025 Set 23]. Disponível em: https://www.ema.europa.eu/en/medicines/human/referrals/metamizole-containing-medicinal-products

10. Dathe K, Padberg S, Hultzsch S, Meixner K, Beck E, Schaefer C. Fetal adverse effects following NSAID or metamizole exposure in the 2nd and 3rd trimester: Embryotox cohort. BMC Pregnancy Childbirth. 2022; 22: 666.

11. National Institutes of Health, NIDDK. LiverTox: Metamizole (Dipyrone). [Atualizado em 10 Ago 2025]. [Internet]. [acesso em 2025 Set 23]. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK604194/

12. Ricard J, Medeiros J. Using misinformation as a political weapon: COVID-19 and Bolsonaro in Brazil. Harvard Kennedy School - Misinformation Review. 2020; 1 (2). [acesso em 2025 Set 23]. Disponível em: https://misinforeview.hks.harvard.edu/wp-content/uploads/2020/04/ricard_misinformation_weapon_brazil_20200417.pdf

13. Eggertson L. Lancet retracts 12-year-old article linking autism to MMR vaccines. CMAJ. 2010; 182 (4): E199–200.

14. Frye RE, Slattery J, Delhey L, Furgerson B, Strickland T, Tippett M, et al. Folinic acid improves verbal communication in children with autism and language impairment: randomized double-blind placebo-controlled trial. Mol Psychiatry. 2018; 23 (2): 247–56.

15. Panda PK, Sharawat IK, Pradhan S, Singh A, Sharawat A, Bhriguvanshi A, et al. Efficacy of oral folinic acid supplementation in children with autism spectrum disorder: randomized double-blind, placebo-controlled trial. Eur J Pediatr. 2024; 183 (11): 4827–35.

Contribuição do autor
A autora realizou a concepção do artigo e declara não haver conflito de interesse.

Recebido em 30 de Setembro de 2025
Versão final apresentada em 1 de Outubro de 2025
Aprovado em 2 de Outubro de 2025

À convite da Editora Chefe: Lygia Vanderlei
*Nota da autora: Melania Amorim é autista e mãe de autistas, além de médica, cientista e feminista — vivências que motivam a defesa intransigente da neurodiversidade e a crítica à culpabilização materna.

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