A mortalidade materna continua sendo um dos indicadores mais sensíveis da qualidade dos sistemas de saúde, da equidade social e do respeito aos direitos reprodutivos. No contexto global, é um marcador inequívoco das desigualdades estruturais que permeiam países e regiões. Em 2023, estima-se que aproximadamente 700 mulheres tenham morrido diariamente por causas evitáveis relacionadas à gravidez e ao parto — o que equivale a uma morte a cada dois minutos.
1 Aproximadamente 95% desses óbitos ocorreram em países de baixa e média renda, sendo a África Subsaariana respondendo por cerca de 70% do total mundial.
2Apesar de certo declínio, a redução global da mortalidade materna tem sido insuficiente para atingir a meta dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que prevê reduzir a razão de mortalidade materna (RMM) para menos de 70 por 100 mil nascidos vivos até 2030.
3 Globalmente, a RMM ainda mantém patamares elevados em regiões vulneráveis, revelando lacunas persistentes na cobertura de serviços essenciais de saúde reprodutiva.
4Em Angola, a RMM estimada em 2023 foi de 183 mortes por 100 mil nascidos vivos, uma melhora em relação ao índice de 202 mortes por 100 mil em 2019, mas ainda distante das metas globais.
1,5 Essa redução pode ter ocorrido devido a políticas públicas implementadas para garantir direitos reprodutivos e reduzir desigualdades, melhorando esse indicadores. Após décadas de conflitos e fragilidade institucional, a saúde da mulher é hoje uma prioridade estratégica, embora ainda persista um conjunto significativo de desafios.
5 O governo angolano tem desenvolvido e implementado diversas estratégias para promover a saúde da mulher, dentre as quais destacam-se:
5,6• Estratégia Nacional de Saúde Materna e Neonatal 2023–2027: visa ampliar o acesso a cuidados obstétricos de qualidade, reduzir a mortalidade materna e infantil e fortalecer o pré-natal e a atenção pós-parto;
• Plano Nacional de Saúde Reprodutiva: enfoca a promoção do planejamento familiar, prevenção de infecções sexualmente transmissíveis, a assistência segura ao parto e combate à mortalidade materna evitável;
• Programas de Educação e Empoderamento Feminino: promovem o acesso à informação sobre direitos reprodutivos, saúde sexual e prevenção de violência contra a mulher;
• Fortalecimento da Atenção Primária à Saúde: expansão de centros de saúde, capacitação de profissionais e melhoria de infraestrutura em áreas remotas.
Porém, apesar dos esforços, persitem múltiplos determinantes que contribuem para a vulnerabilidade da saúde reprodutiva: fatores políticos internos, como desigualdades territoriais profundas, escassez de profissionais qualificados, fragilidade nas redes de referência e contrarreferência, infraestrutura precária e limitações no financiamento da Saúde;
7 fatores externos, como crises econômicas, deslocamentos populacionais e redução de ajuda internacional que agravam as vulnerabilidades existentes; e fatores socioculturais, como elevado índice de gravidez na adolescência, baixa escolaridade feminina e barreiras culturais.
5As principais causas de morte materna — hemorragia pós-parto, hipertensão grave (pré-eclâmpsia/eclâmpsia), sepse puerperal e complicações decorrentes de abortos inseguros —permanecem amplamente evitáveis.
7,8 A prevenção dessas condições requer intervenções relativamente simples, mas dependentes de estrutura adequada: assistência qualificada ao parto, disponibilidade de sangue e derivados, acesso a medicamentos essenciais como ocitocina e sulfato de magnésio, antibióticos de amplo espectro e serviços obstétricos de emergência especializados em gestações de alto risco.
8O fortalecimento da atenção pré-natal é igualmente essencial, com foco na identificação precoce de riscos, promoção da saúde reprodutiva e planejamento familiar. Isso não apenas melhora a segurança materna como também contribui para reduzir custos e otimizar recursos no sistema de saúde.
9 Além disso, a reorganização da atenção primária e a regionalização dos serviços de saúde são estratégias cruciais decisivas para mitigar essas desigualdades, conforme já apontado por Oliveira e Artmann
10 e reafirmado em relatórios recentes do Ministério da Saúde de Angola.
5,6Persistem desafios, como a distribuição desigual de recursos humanos em saúde; concentração de profissionais em áreas urbanas; ausência de incentivos para fixação em regiões remotas; deficiências no transporte sanitário; e desigualdades de acesso a cuidados obstétricos.
5 Enfretá-los, requer políticas públicas integradas e intersetoriais, que integrem: expansão da cobertura e melhoria da qualidade dos cuidados obstétricos essenciais; capacitação contínua e valorização dos profissionais de saúde com foco na equidade territorial; fortalecimento dos sistemas de vigilância e informação em saúde maternal; e ações conjuntas em educação feminina, saneamento básico e segurança alimentar.
11Tais medidas demandam investimentos sustentáveis, comprometimento político e mecanismos transparentes de monitoramento. A mortalidade materna não é apenas uma questão de saúde — é também um desafio de direitos humanos, justiça social e desenvolvimento econômico,
12 pois cada morte evitável representa perda significativa de capital humano, impacto negativo na renda familiar e fragilização do tecido social.
13A redução da mortalidade materna é uma escolha ética e política que requer engajamento contínuo. Angola avançou, mas ainda enfrenta desafios estruturais que exigem ação coordenada e investimentos contínuos. Reforça-se que a mortalidade materna é reflexo das desigualdades estruturais e responsabilidade compartilhada entre Estado, sociedade e sistema de Saúde.
Garantir que nenhuma mulher morra ao dar à luz transcende fronteiras e se configura como um imperativo civilizatório. O compromisso com essa agenda é uma responsabilidade coletiva que requer engajamento científico, político e comunitário.
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https://openknowledge.worldbank.org/server/api/core/bitstreams/2e73bf74-b72b-5b36-bf92-0d42a6e4cc23/contentÀ convite da Editora Chefe: Lygia Vanderlei