RESUMO
INTRODUÇÃO: a pandemia de COVID-19 produziu forte impacto na saúde materna, ampliando vulnerabilidades biológicas e sociais e evidenciando desigualdades regionais. No Brasil, gestantes e puérperas apresentaram risco elevado de complicações e morte, especialmente nas regiões com menor capacidade de resposta assistencial. O objetivo deste estudo foi descrever o perfil clínico e assistencial das mortes maternas por COVID-19 em Recife-PE, entre 2020 e 2021.
DESCRIÇÃO: foram analisados 18 casos de mortes maternas por COVID-19, com base em registros do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Sistema Único de Saúde (SIM/SUS) e do Comitê Municipal de Mortalidade Materna (CMMM) da cidade do Recife. A maioria das mulheres tinha entre 20 e 35 anos, era parda e apresentava comorbidades, sobretudo síndromes hipertensivas (60,9%) e obesidade (33,3%). Dispneia e tosse seca foram os sintomas mais frequentes. A cesariana predominou como via de parto (61,1%), e 83,3% necessitaram de unidade de terapia intensiva, com ventilação mecânica em 94,4% dos casos. O CMMM considerou 72,2% dos óbitos evitáveis, sendo as causas básicas mais comuns a síndrome respiratória aguda grave e o choque séptico.
DISCUSSÃO: os achados revelam gravidade clínica elevada e fragilidades persistentes na rede obstétrica, expressas em transferências tardias e óbitos evitáveis. As mortes maternas por COVID-19 refletem desigualdades estruturais e reforçam a urgência de fortalecer a vigilância epidemiológica, qualificar os registros e ampliar o acesso a cuidados obstétricos intensivos e oportunos.
Palavras-chave:
Mortalidade materna, COVID-19, Infecções por coronavírus, Saúde materna, Gravidez
ABSTRACT
INTRODUCTION: the COVID-19 pandemic has had a strong impact on maternal health, amplifying biological and social vulnerabilities and highlighting regional inequalities. In Brazil, pregnant and postpartum women showed a high risk of complications and death, particularly in regions with limited health system response capacity. This study aimed to describe the clinical and care profile of maternal deaths due to COVID-19 in Recife, Brazil, between 2020 and 2021.
DESCRIPTION: eighteen cases of maternal deaths due to COVID-19 were analyzed, based on records from the Mortality Information System of the Brazilian Unified Health System (SIM/SUS) and the Municipal Committee on Maternal Mortality (CMMM) of the city of Recife. Most women were 20-35 years old, of mixed race, and had comorbidities, mainly hypertensive syndromes (60.9%) and obesity (33.3%). Dyspnea and dry cough were the most common symptoms. Cesarean section was the predominant delivery route (61.1%), and 83.3% required intensive care, with mechanical ventilation used in 94.4% of cases. The CMMM classified 72.2% of the deaths as preventable, and the most frequent underlying causes were acute respiratory distress syndrome and septic shock.
DISCUSSION: the findings reveal high clinical severity and persistent weaknesses in obstetric care, reflected in delayed transfers and a high proportion of preventable deaths. Maternal deaths from COVID-19 expose structural inequalities and reinforce the need to strengthen epidemiological surveillance, improve data recording, and expand access to timely and qualified obstetric intensive care.
Keywords:
Maternal mortality, COVID-19, Coronavirus infections, Maternal health, Pregnancy
IntroduçãoA doença causada pelo SARS-CoV-2, denominada COVID-19, provocou impacto expressivo na saúde materna em todo o mundo. No Brasil, gestantes e puérperas configuraram um grupo de risco, apresentando aumento da mortalidade materna.
1-3 A presença de comorbidades, como síndromes hipertensivas e obesidade, potencializa a gravidade da infecção.
4,5 A inclusão tardia de gestantes e puérperas no Plano Nacional de Vacinação contra a COVID-19 contribuiu para a gravidade observada.
6 Descrever o perfil dessas mortes permite identificar fragilidades assistenciais e subsidiar estratégias de prevenção. O objetivo deste estudo é relatar a série de casos de mortes maternas por COVID-19 em Recife-PE entre 2020 e 2021, destacando aspectos clínicos e assistenciais.
DescriçãoForam incluídos 18 casos confirmados de morte materna por COVID-19, ocorridos em Recife-PE entre 2020 e 2021. Os dados foram obtidos do Sistema de Informações sobre Mortalidade e do Comitê Municipal de Mortalidade Materna, conforme o Boletim Epidemiológico da Secretaria de Saúde do Recife.
7 A maioria das mulheres tinha entre 20 e 35 anos, era parda e casada, com ensino médio completo e ocupação remunerada. Dispneia (83,3%) e tosse seca (77,7%) foram os sintomas mais prevalentes, e as síndromes hipertensivas foram a comorbidade mais frequente (60,9%). A obesidade esteve presente em um terço das pacientes, e o tabagismo e etilismo foram pouco frequentes.
A maioria dos óbitos ocorreu no puerpério (77,8%), com idade gestacional mediana de 33,6 semanas. A cesariana foi a via de nascimento predominante (61,1%), 83,2% das mulheres realizaram pré-natal, mas apenas 44,4% fizeram mais de seis consultas e apenas uma mulher havia sido vacinada contra a COVID-19 (Tabela 1).
Durante a internação, 83,3% das pacientes necessitaram de UTI e 94,4% de ventilação mecânica, frequentemente por mais de 24 horas. Cerca de dois terços foram transferidas entre unidades hospitalares, evidenciando fragilidades na rede de atenção. Os antibióticos foram utilizados em 88,9% dos casos, corticoterapia em 77,8% e anticoagulantes em 66,7%. Em 72,2% dos casos, os óbitos foram classificados como evitáveis (Tabela 2). As causas básicas mais frequentes foram síndrome respiratória aguda grave e choque séptico, com informações complementadas pelos Boletins Epidemiológicos da Secretaria de Saúde do Recife e do Ministério da Saúde.
7,8 DiscussãoOs achados desta série revelam padrão de gravidade elevado, com predominância de óbitos no puerpério e alta demanda por cuidados intensivos. A associação entre COVID-19 grave e comorbidades pré-existentes, especialmente síndromes hipertensivas e obesidade, tem sido amplamente documentada e reforça essa sinergia que se associa a piores desfechos maternos.
4,5O número expressivo de transferências e a baixa disponibilidade de exames indicam falhas na rede de atenção obstétrica, seja no acesso ao pré-natal, na chegada às unidades de saúde ou na prestação de cuidados adequados - aspectos descritos no modelo dos "três atrasos" de Thaddeus e Maine.
9 A interrupção de rotinas do pré-natal durante 2020 e a inclusão tardia de gestantes/puérperas na vacinação também podem ter contribuído para a gravidade observada.
6 Em conjunto, esses elementos sustentam a interpretação de que a pandemia potencializou vulnerabilidades estruturais previamente existentes no cuidado obstétrico. Relatos nacionais e internacionais apontam que a pandemia expôs desigualdades estruturais na assistência materna, afetando desproporcionalmente mulheres em contextos vulneráveis.
7,8,10A elevada proporção de óbitos classificados como evitáveis reforça a necessidade de fortalecer protocolos de manejo da insuficiência respiratória, qualificar equipes e ampliar o acesso a leitos obstétricos de UTI. O investimento em vigilância e integração entre a atenção básica e os serviços especializados é fundamental para reduzir mortes evitáveis em futuras emergências sanitárias.
10-13A mortalidade materna por COVID-19 resulta de um conjunto de fatores que extrapola a ação direta do vírus, envolvendo vulnerabilidades biológicas, desigualdades sociais e fragilidades estruturais da rede de atenção obstétrica. As mortes registradas no Recife refletem o cenário nacional, caracterizado por assimetrias regionais e limitada capacidade de resposta em situações de crise.
Os achados reforçam a necessidade de aprimorar a vigilância epidemiológica, qualificar o preenchimento das fichas e declarações de óbito e investir na capacitação contínua das equipes e no fortalecimento dos Comitês de Prevenção da Mortalidade Materna. Recomenda-se ampliar as investigações em nível estadual e interestadual, comparando óbitos maternos relacionados e não relacionados à COVID-19, a fim de orientar políticas públicas que assegurem cuidado obstétrico oportuno, vigilância ativa e justiça reprodutiva.
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Disponibilidade de DadosTodo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
Recebido em 6 de Outubro de 2024
Versão final apresentada em 15 de Outubro de 2025
Aprovado em 16 de Outubro de 2025
Editor Associado: Alex Sandro Souza