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Qualis Capes Quadriênio 2017-2020 - B1 em medicina I, II e III, saúde coletiva
Versão on-line ISSN: 1806-9804
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Endometriose, autoimunidade tireoidiana e reserva ovariana: nota de pesquisa

Alex Sandro Rolland Souza1; Maria Eduarda Rodrigues Ferreira2; Rafaella Carvalho Gomes2; Sofia Valença Rios2; Victor de Oliveira Chacon2; Maria Alice Bastos Viana 3; Adriana Leal Griz Notaro4

DOI: 10.1590/1806-9304202520240276 e20240276

RESUMO

OBJETIVOS: avaliar a reserva ovariana de mulheres com endometriose em idade reprodutiva, com e sem anticorpos antitireoidianos positivos.
MÉTODOS: estudo transversal retrospectivo realizado em clínicas de reprodução assistida em Recife, Pernambuco, entre fevereiro de 2017 a agosto de 2021. Foram incluídas mulheres de 18 a 49 anos, com diagnóstico de endometriose e dosagem registrada de anticorpos antitireoidianos (anticorpos anti-tireoperoxidase – anti-TPO e antitireoglobulina – anti-Tg), hormônio anti-mulleriano (HAM) e contagem de folículos antrais (CFA). Foram excluídas outras causas de baixa reserva ovariana. As variáveis numéricas foram comparadas pelo teste de Mann-Whitney (grupos com e sem anticorpos), considerando p<0,05. Resultados: foram analisados 48 prontuários de mulheres elegíveis com prevalência de 29,2% de mulheres com anticorpos antitireoidianos positivos e 70,8% negativos. A mediana do HAM foi de 0,66 ng/mL no grupo positivo e 1,37 ng/mL no grupo negativo (p=0,09), e a CFA foi de 7,5 e 10,0, respectivamente (p=0,41).
CONCLUSÃO: observou-se uma alta prevalência de anticorpos antitireoidianos positivos em mulheres com endometriose, sem diferença estatisticamente significativa nos marcadores de reserva ovariana, embora com tendência a menores valores de HAM entre as soropositivas. Estudos futuros com amostras ampliadas poderão confirmar ou modificar estes achados.

Palavras-chave: Tireoidite autoimune, Doença de Hashimoto, Reserva ovariana, Fertilidade, Endometriose, Autoimunidade

ABSTRACT

OBJECTIVES: to assess ovarian reserve in women with endometriosis according to the presence of antithyroid antibodies.
METHODS: retrospective cross-sectional study conducted in assisted reproduction clinics in Recife, Brazil, from February 2017 to August 2021. Women aged 18-49 years with endometriosis and recorded measurements of anti-TPO and/or anti-Tg, anti-Müllerian hormone (AMH), and antral follicle count (AFC) were included. Women with other causes of diminished ovarian reserve were excluded. Numerical variables were compared using the Mann-Whitney test, with p<0.05 considered significant.
RESULTS: of 83 eligible women, 48 were analyzed: 14 (29.2%) antibody-positive and 34 (70.8%) negative. Age and body mass index were similar between groups. No significant differences were found in TSH or free T4 levels. Median AMH was 0.66 ng/mL in the positive group and 1.37 ng/mL in the negative group (p=0.09), and AFC was 7.5 vs. 10.0, respectively (p=0.41).
CONCLUSIONS: among women with endometriosis, a high prevalence of thyroid autoantibodies was observed. There were no statistically significant differences in ovarian reserve markers between groups, although a trend toward lower AMH values was seen among antibody-positive participants. Future studies with larger samples may confirm or modify these findings.

Keywords: Hashimoto disease, Autoimmune thyroiditis, Ovarian reserve, Fertility, Endometriosis, Autoimmunity

Introdução

A endometriose é uma doença inflamatória crônica e estrogênio-dependente que afeta cerca de 10% das mulheres em idade reprodutiva e está associada à infertilidade, dor pélvica e comprometimento da qualidade de vida.1,2 Além de mecanismos locais, há crescente evidência de que alterações imunológicas e inflamatórias sistêmicas participam da sua fisiopatologia.3,4

Entre essas alterações, destaca-se a possível relação entre endometriose e distúrbios autoimunes, especialmente os da tireoide.5,6 A presença de anticorpos antitireoidianos [anticorpo anti-tireoperoxidase (anti-TPO) e anticorpos anti-tireoglobulina (anti-Tg)] é comum em mulheres com endometriose, podendo representar um estado autoimune subclínico que afeta a função ovariana.7,8 No entanto, a literatura mostra resultados conflitantes sobre o impacto da autoimunidade tireoidiana na reserva ovariana, estimada por marcadores como o hormônio antimülleriano (HAM) e a contagem de folículos antrais (CFA).9,10

Diante dessas incertezas, este estudo teve como objetivo avaliar a reserva ovariana em mulheres com endometriose, de acordo com a positividade de anticorpos antitireoidianos.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal retrospectivo conduzido em clínicas de reprodução assistida da cidade do Recife, Pernambuco (PE), Brasil, entre fevereiro de 2017 e agosto de 2021. Foram incluídas mulheres de 18 a 49 anos com diagnóstico de endometriose confirmado por ultrassonografia ou laparoscopia e registros laboratoriais de hormônio antimülleriano (HAM), contagem de folículos antrais (CFA) e anticorpos antitireoidianos (anti-TPO e/ou anti-Tg).

Foram excluídas participantes com histórico de cirurgia ovariana, quimioterapia, radioterapia pélvica, uso recente de anticoncepcionais hormonais, menopausa precoce ou doenças endócrinas conhecidas que pudessem interferir na reserva ovariana. As variáveis clínicas incluíram idade, índice de massa corporal (IMC) e dosagens séricas de hormônio tireoestimulante (TSH) e tiroxina (T4) livre.

Os valores de HAM e CFA foram comparados entre os grupos com e sem positividade para autoanticorpos. A análise estatística foi realizada no software SPSS versão 20.0, utilizando o teste de Mann–Whitney para variáveis numéricas e qui-quadrado para categóricas, considerando p<0,05 como significativo.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição sob CAAE 66226122.5.0000.5201 e parecer no. 5.971.732 de 29 de março de 2023.

Resultados

Das 83 mulheres inicialmente elegíveis, 48 atenderam aos critérios de inclusão, conforme descrito no fluxograma de seleção (Figura 1). Destas, 14 (29,2%) apresentaram positividade para anticorpos antitireoidianos e 34 (70,8%) resultados negativos.
 



As características clínicas e hormonais gerais estão apresentadas na Tabela 1. As idades médias foram de 34,7±5,8 e 35,2±6,1 anos, respectivamente, sem diferença significativa entre os grupos (p=0,72). O índice de massa corporal também foi semelhante (23,4±2,7 vs. 23,1±3,0 kg/m²; p=0,68).
 



Não se observaram diferenças significativas nos níveis séricos de TSH (2,1±0,7 vs. 2,3±0,9 µUI/mL; p=0,54) e T4 livre (1,1±0,2 vs. 1,2±0,3 ng/dL; p=0,41). Os marcadores de reserva ovariana mostraram medianas de HAM de 0,66 ng/mL no grupo com autoanticorpos e 1,37 ng/mL no grupo negativo (p=0,09) e de CFA de 7,5 e 10,0, respectivamente (p=0,41), conforme apresentado na Tabela 2.
 



Observou-se tendência a valores menores de HAM entre as mulheres com autoimunidade tireoidiana, sem alcançar significância estatística. Nenhuma correlação relevante foi encontrada entre níveis de TSH e HAM (r= –0,11; p=0,39).

Discussão

A associação entre endometriose e distúrbios autoimunes, especialmente os tireoidianos, tem sido relatada por diferentes estudos, sugerindo que processos inflamatórios sistêmicos e alterações imunes podem estar envolvidos em ambas as condições.1-4 A presença de anticorpos antitireoidianos, como anti-TPO e anti-Tg, reflete atividade autoimune que pode interferir na esteroidogênese e na foliculogênese, afetando indiretamente a reserva ovariana.5,6

Nesta amostra de mulheres com endometriose, a prevalência de autoimunidade tireoidiana foi alta (29,2%), mas não se observaram diferenças significativas em HAM e CFA entre os grupos positivos e negativos. Esses achados estão em consonância com os relatados por Osuka et al.7 e Notaro et al.,8 que também não encontraram associação estatisticamente significativa entre autoanticorpos tireoidianos e diminuição da reserva ovariana.

Estudos com amostras maiores, entretanto, apontam que níveis discretamente mais baixos de HAM podem ocorrer em mulheres com positividade para autoanticorpos, sugerindo possível dano folicular mediado por inflamação ou apoptose induzida por citocinas.9-11 Tais diferenças podem depender do estágio da doença, idade reprodutiva e critérios laboratoriais utilizados para definir a positividade.

As principais limitações deste estudo incluem o delineamento retrospectivo, o tamanho amostral reduzido e a ausência de controle para potenciais confundidores, como tempo de diagnóstico da endometriose e uso prévio de hormônios. Ainda assim, a consistência dos resultados com a literatura reforça que a autoimunidade tireoidiana isolada pode não exercer impacto clinicamente relevante sobre a reserva ovariana em mulheres com endometriose.12-14

A coexistência de endometriose e autoimunidade tireoidiana reforça a complexidade da interface entre inflamação, imunidade e fertilidade feminina. Embora não se tenha observado diferença estatisticamente significativa nos marcadores de reserva ovariana, a tendência a menores níveis de HAM nas mulheres soropositivas sugere possível influência subclínica da autoimunidade sobre a função ovariana. Pesquisas prospectivas, com maior poder amostral e padronização de critérios diagnósticos e laboratoriais, serão essenciais para esclarecer o papel da autoimunidade tireoidiana na fisiopatologia reprodutiva e no manejo clínico da endometriose.

Agradecimentos

Agradecemos ao Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP), Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio financeiro.

Referências

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Contribuições dos autores
Souza ASR e Notaro LG: construção e idealização do estudo, coleta e análise de dados, redação e revisão do manuscrito. Ferreira MER, Gomes RC, Rios SV, Chacon VO e Viana MAB: coleta de dados, interpretação e redação das versões iniciais e revisão do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflitos de interesses.

Disponibilidade de Dados
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Recebido em 19 de Outubro de 2024
Versão final apresentada em 9 de Outubro de 2025
Aprovado em 10 de Outubro de 2025

Editor Associado: Leila Katz

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