RESUMO
OBJETIVOS: compreender a vivência do luto nos pais a partir do diagnóstico de malformação fetal no período pré-natal.
MÉTODOS: pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva, realizada no ambulatório de medicina fetal de um hospital público terciário de Fortaleza, Ceará. A coleta foi realizada entre maio e julho de 2019, por meio de entrevistas semiestruturadas. Participaram oito pessoas, sendo seis gestantes e dois pais. O material foi submetido à análise de conteúdo categorial à luz do modelo teórico das transições psicossociais do luto em diálogo com a psicologia perinatal.
RESULTADOS: a partir da confirmação do diagnóstico, os participantes atravessaram momentos distintos das fases do luto pela perda do bebê imaginário, que se mostrou não de forma linear, mas, sobretudo, com alternância de sentimentos. Mesmo com o diagnóstico de malformação fetal, o vínculo afetivo dos pais com o bebê permaneceu presente. A religiosidade, a rede sociofamiliar, a comunicação e o apoio mútuo entre o casal foram as principais estratégias de enfrentamento relatadas.
CONCLUSÃO: o luto diante do diagnóstico de malformação fetal não se limitou à perda física, mas à perda de expectativas e a necessidade de redefinição do papel parental frente às incertezas sobre o futuro do bebê. Reforça-se a importância de se incluir serviços psicológicos como parte do cuidado pré-natal.
Palavras-chave:
Luto, Pais, Anormalidades congênitas, Diagnóstico pré-natal
ABSTRACT
OBJECTIVES: to understand how parents experience grief after being diagnosed with fetal malformation during the prenatal period.
METHODS: this was a qualitative, exploratory, and descriptive study conducted in the fetal medicine outpatient clinic of a tertiary public hospital in Fortaleza, Ceará. Data were collected between May and July 2019 using semi-structured interviews. Eight subjects participated, six pregnant women and two parents. The material was subjected to categorical content analysis in light of the theoretical model of psychosocial transitions of bereavement in dialogue with perinatal psychology.
RESULTS: after the diagnosis was confirmed, the participants went through different stages of bereavement for the loss of their imaginary baby, which were not shown as linear, but with alternating feelings. Even with the diagnosis of fetal malformation, the parents' emotional attachment to the baby remains present. The main coping strategies reported were religiosity, social and family networks, communication, and mutual support between the couple.
CONCLUSION: the grief at the diagnosis of fetal malformation extends beyond physical loss, encompassing the loss of expectations and the need to redefine the parent's role amidst uncertainties regarding the baby's future. This underscores the importance of incorporating psychological services as an integral part of prenatal care.
Keywords:
Bereavement, Parents, Congenital abnormalities, Prenatal diagnosis
IntroduçãoO processo de gravidez e o decorrente envolvimento dos pais para a preparação da chegada do recém-nascido formam, sem demora, a idealização de um filho saudável e um parto sem complicações. Intrínsecos a esse período, vários sentimentos são mobilizados, tais como alegria, insegurança e medo do desconhecido. Em meio a isso, um conjunto de concepções envolto em sonhos, planos e expectativas acerca do bebê é formado no psiquismo dos pais. Dessa forma, a constatação da existência de uma malformação fetal simboliza, para os genitores, a perda do filho idealizado.
1As malformações congênitas fetais são defeitos estruturais ou funcionais de órgãos, células ou componentes celulares surgidos durante o desenvolvimento do feto que se manifestam antes do nascimento.
2,3 Qualquer que seja a alteração no decorrer do desenvolvimento embrionário pode originar malformações que variam no seu nível de comprometimento, que podem ter consequências médicas, sociais ou estéticas para a pessoa afetada.
3A confirmação de um diagnóstico de malformação fetal pode despertar nos pais pensamentos de incapacidade e sentimentos de culpa, raiva, frustração, revolta, tristeza e angústia, além de isolamento social e impactos negativos na autoestima.
4,5 Essas reações podem ser consideradas comuns a qualquer processo de luto, evento que envolve uma gama de respostas biopsicossociais esperadas diante de uma perda significativa e que inclui, no seu processo de elaboração, a transformação e a ressignificação da relação com o que foi perdido.
6 Nesse sentido, o período de adaptação ao diagnóstico de malformação fetal revela-se, aos genitores, como um momento marcado por desafios singulares e exigentes, com repercussões diversas nos âmbitos emocional, conjugal e familiar.
7,8Foi a partir da atuação profissional das autoras deste estudo em uma unidade de terapia intensiva neonatal e da aproximação da intensa vivência dos pais diante da internação tão precoce de seus filhos devido a casos de prematuridade, malformação e necessidade de cirurgia, que o tema aqui exposto despertou a atenção. Assim, com o interesse de aprimorar o olhar a respeito das repercussões emocionais provocadas pela notícia de malformação e de ampliar a sensibilidade para o cuidado a essas famílias, objetivou-se compreender a vivência do luto nos pais a partir do diagnóstico de malformação fetal no período pré-natal.
MétodosTrata-se de uma pesquisa qualitativa, de natureza exploratória e descritiva, realizada no ambulatório de medicina fetal de um hospital público terciário localizado em Fortaleza, Ceará, que é referência no acompanhamento de gestações de fetos diagnosticados com anomalias congênitas. Pontua-se que, apesar de haver, na literatura médica, uma discriminação dos termos malformação fetal, anomalia congênita e síndrome, neste estudo, não foram adotadas essas distinções.
Os dados foram coletados entre maio e julho de 2019, por meio de entrevistas semiestruturadas que, além de levantarem dados sociodemográficos dos participantes, abordaram tópicos a respeito do planejamento para a gestação, da reação inicial ao diagnóstico, do entendimento e dos sentimentos em relação à condição do filho, e dos sentimentos dos pais pelo bebê. As entrevistas foram realizadas individualmente em sala reservada do próprio ambulatório e gravadas para posterior transcrição.
O recrutamento dos participantes foi realizado por conveniência, quando gestantes e pais foram abordados enquanto aguardavam atendimento da consulta de pré-natal, e convidados a participar do estudo segundo os seguintes critérios de inclusão: ter recebido diagnóstico de malformação fetal no pré-natal da gestação atual; ser maior de dezoito anos; permitir a gravação da entrevista; ter condições cognitivas para responder ao instrumento proposto. O fechamento do número de participantes se deu pelo critério de saturação teórica, isto é, quando se verificou que as informações fornecidas já não contribuíam significativamente para o aperfeiçoamento da reflexão teórica, foi suspensa a inclusão de novos participantes.
9Durante a coleta, apesar de terem sido realizadas dez entrevistas, duas gestantes solicitaram a suspensão da gravação durante o procedimento. Essas entrevistas foram, então, excluídas, uma vez que a interrupção impossibilitou a transcrição integral, comprometendo a precisão da análise. Dessa forma, ao final, foram considerados somente os relatos de oito participantes, sendo seis gestantes e dois pais, que eram companheiros de duas das gestantes entrevistadas.
O material obtido pelas entrevistas foi examinado a partir da análise de conteúdo, que representa um conjunto de técnicas de análise de comunicações que, a partir de métodos sistemáticos e objetivos de descrição dos conteúdos dos relatos, permite a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção e recepção dessas mensagens.
10 A modalidade de análise de conteúdo seguida foi a categorial. O
corpus da pesquisa foi sujeito às três etapas propostas pelo método (pré-análise, exploração do material e análise dos dados adquiridos) e discutidos à luz do modelo teórico das transições psicossociais do luto
6,11 em diálogo com conceitos da psicologia perinatal.
4,12,13O modelo das transições psicossociais do luto, proposto por Parkes,
6,11 oferece uma estrutura robusta para entender o luto como um processo dinâmico, caracterizado por reações emocionais e ajustes psicossociais diante da perda. Embora, inicialmente, proposto à morte de um ente querido, esse modelo é amplamente aplicável a outras formas de perda, como a simbólica ou a potencial, representada, neste estudo, pelo diagnóstico de malformação fetal. O luto parental, nesse contexto, pode ser visto como uma resposta à perda das expectativas e dos sonhos relacionados ao futuro da criança.
Parkes
6,11 afirma que a experiência da perda desafia o
mundo presumido, ou seja, a construção interna individual sobre o que esperamos da vida, de nós mesmos e dos outros. No caso da malformação fetal, o luto envolve tanto a perda do bebê idealizado quanto a necessidade de reorganização dessas perspectivas pessoais para incorporar a nova realidade. Dessa maneira, o luto não é apenas sobre a ausência do que foi perdido, mas sobre a reconstrução de uma nova visão de mundo.
14Por sua vez, a psicologia perinatal oferece uma abordagem fundamental para compreender o vínculo emocional que os pais começam a formar com o bebê ainda durante a gestação e como esse vínculo é confrontado pelo diagnóstico.
4,12,13 Tal situação pode desencadear uma crise emocional significativa, afetando os pais durante a gestação e, possivelmente, na vida pós-natal, dependendo da gravidade da malformação.
Neste artigo, excertos de falas foram expostos visando ilustrar os achados. A fim de manter o anonimato, os participantes foram identificados por letras e números na sequência em que as entrevistas ocorreram, sendo as mães gestantes identificadas pela letra "M", e os pais pela letra "P". Reforça-se que os pais entrevistados foram encaminhados ao psicólogo vinculado ao serviço de medicina fetal sempre que necessidades emocionais foram identificadas, garantindo acesso ao suporte psicológico.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do próprio hospital sob o CAAE 11654919.7.0000.5041.
Resultados e DiscussãoA respeito do perfil dos entrevistados, todos residiam em municípios da Região Metropolitana de Fortaleza e tinham idades entre 21 e 41 anos. Todos eram alfabetizados, sendo o nível médio completo a maior escolaridade apresentada. As gestantes estavam com idades gestacionais entre 23 e 36 semanas. O número total de gestações, considerando a atual, variou de uma a quatro. Somente uma mulher apresentou histórico de aborto, e outra relatou história prévia de natimorto relacionado à anomalia fetal. Na Tabela 1 estão discriminadas as características sociodemográficas e biológicas de cada participante a fim de oferecer uma visão mais detalhada acerca das pessoas entrevistadas.

A partir da análise realizada, foram identificadas três categorias temáticas principais: 1) Bebê imaginário e vínculo pais-filho; 2) Processo de luto a partir do diagnóstico de malformação fetal; e 3) Estratégias de enfrentamento utilizadas pelos pais. Essas categorias, inicialmente orientadas pelo marco teórico da pesquisa, foram refinadas e enriquecidas pelos dados emergentes das entrevistas. Na Tabela 2, apresenta-se um quadro sinóptico com a sumarização das categorias temáticas e os recortes das falas mais significativas que as representam, as quais sustentaram as discussões subsequentes.
Bebê imaginário e vínculo pais-filhoOs relatos dos participantes revelaram diferentes histórias quanto à presença ou ausência de planejamento da gestação e o desejo de ter um filho. Dos oito entrevistados, somente uma gestante afirmou ter planejado a gravidez. Apesar dessa comum ausência de planejamento, todos demonstraram o desejo em prosseguir com a gestação depois que tomaram conhecimento dela. Além do mais, foi possível identificar algumas das expectativas depositadas na figura do bebê e nos projetos de maternidade e paternidade, bem como a preparação para a chegada do filho, expressados com o planejamento do enxoval e a arrumação do quarto da criança.
No decorrer do período gravídico, coexistem três gestações no psiquismo dos pais: a do bebê fantasmático, a do bebê imaginário e a do bebê real. O bebê fantasmático é aquele presente desde o princípio da existência dos pais, surgido pelas vivências primitivas de cada um dos genitores. O bebê imaginário representa o conjunto de construções formadas durante a gestação mental do concepto, é fruto dos sonhos e desejos pela maternidade/paternidade.
1,15 A formação do bebê real vai se intensificando no decorrer do terceiro trimestre de gravidez, a partir da acentuação da movimentação do feto que assinala a sua real existência, assim como pelo uso de tecnologias que permitem visualizá-lo.
4Nesse sentido, a criança começa a existir na mentalidade dos genitores muito antes do nascimento, sempre e quando os pais são capazes de imaginá-la. Esse movimento auxilia na formação de laços precoces e fundamentais que possibilitam aos pais, desde o princípio, investirem nos cuidados e no afeto à criança. O desejo de conhecer o sexo do bebê, a escolha do nome e as características físicas e comportamentais idealizadas pelos pais integram a formação do bebê imaginário.
A construção do filho imaginário vai preparando os genitores para a chegada do bebê real.
16 É por via das consultas de pré-natal, das auscultas dos batimentos cardíacos e dos diversos exames realizados, que informações acerca do desenvolvimento do feto são fornecidas aos pais, auxiliando-os na transição para o bebê real. O uso de tecnologias de imagem possibilita, também, diagnósticos cada vez mais precisos sobre a existência de alguma anormalidade na gestação, o que pode levar a uma confrontação da figura construída do bebê imaginário com a do bebê real, que se mostra destoante das representações dos pais.
Cada gestação tem um significado único relacionado à história pessoal da gestante e do pai, das circunstâncias que envolvem esse período e da rede de apoio presente. Estes e outros fatores influenciam o processo de formação do vínculo, entendido como o laço que une pais e filhos e pode ser identificado a partir de aspectos comportamentais, cognitivos e afetivos que indicam ligação, preocupação e interação com o feto, além de cuidados com a saúde da gestante.
12,17O conjunto dos relatos levantados, nesta pesquisa, apontou para a presença do vínculo afetivo com o bebê, com manifestações de contentamento pela chegada do novo filho, ainda que houvesse a presença de malformação fetal. Tais dados estão de acordo com o estudo realizado por Borges e Petean,
17 que identificaram a persistência da formação do vínculo materno-fetal, mesmo depois do diagnóstico de malformação congênita. Esses autores ressaltam, ainda, a importância deste laço afetivo como facilitador da expressão de melhores respostas emocionais das gestantes ao diagnóstico pré-natal e ao enfretamento da gravidez.
Processo de luto a partir do diagnóstico de malformação fetal Ao analisar as falas dos participantes, observou-se como o processo de luto parental diante do diagnóstico de malformação fetal é permeado por dinâmicas emocionais complexas. Tais dinâmicas variam desde o choque inicial até a aceitação gradual e a reorganização das expectativas.
Parkes
6 afirma que o luto não pode ser considerado enquanto um estado, mas sim como um processo dinâmico, que envolve não somente um conjunto de sintomas que tem início com a perda, mas também uma gama de reações que se mesclam e se substituem. Cada estágio possui suas características próprias, e há diferenças consideráveis nas expressões de uma pessoa para a outra, tanto no que se refere à duração quanto à forma que se apresenta cada fase. O autor adverte que em qualquer processo de luto, raramente fica claro, com exatidão, o que foi perdido.
A perda significativa tratada nesta pesquisa é aquela desencadeada a partir da constatação da malformação fetal, isto é, a perda do bebê imaginário, idealizado como saudável e sem complicações no seu desenvolvimento e nascimento. As reações emocionais, cognitivas e comportamentais desencadeadas pelo diagnóstico podem ser observadas a partir das fases comuns em processos de luto: choque e negação, frente à perda; anseio e busca pelo que foi perdido; desorganização e desespero, com manifestação de tristeza, raiva e ansiedade; reorganização e recuperação, com aceitação da realidade, ajuste de expectativas e equilíbrio emocional, ainda que o sofrimento não seja completamente eliminado.
6,12,14,18,19 Tais fases podem ocorrer durante distintos momentos da gestação, e não necessariamente se apresentam nesta ordem.
6,13,18,19Nos relatos, a manifestação do choque, fase marcada pela desordem abrupta das emoções, acompanhada de sentimento de desamparo, choro ou mesmo desejo de fugir,
5,13 emergiu logo após a comunicação do diagnóstico. Nesse estágio, a negação pode ocorrer de maneira mais sutil, quando os pais ou a gestante procuram por outros profissionais ou exames que possam contradizer o diagnóstico, ou de forma mais expressa, quando, apesar de todas as evidências, há uma recusa em abordar o assunto ou se ignora a existência da malformação.
13Em algumas falas dos participantes, foi notória a presença de sentimentos de intensa tristeza, medo, raiva e ansiedade. Outros relatos, por sua vez, foram marcados pela busca por explicações e soluções, além de um forte desejo de que a condição do bebê mudasse ou melhorasse, ainda que o diagnóstico fosse irreversível. Essas expressões deram indicações a respeito da forma de como os pais estavam lidando com o diagnóstico e atravessando o processo de luto.
Com a progressiva redução da ansiedade e das reações emocionais intensas, a aceitação e a adaptação vão se instalando, representando a fase de reorganização e equilíbrio.
5,6,13 Os sentimentos de confusão emocional vão se suavizando e, gradualmente, os pais se sentem mais confortáveis dentro da situação e passam a acreditar na sua capacidade de cuidar do bebê.
5,12 Em alguns casos, ainda que o processo de adaptação se faça presente, pode ser observado de maneira incompleta.
Nessa etapa
, o bebê passa a ser visto como uma criança especial. A percepção de vulnerabilidade vivida anteriormente é modificada por um sentimento de capacidade crescente e de enfrentamento da situação.
5 Inicia-se um movimento de aceitação positiva.
12,18 Assim, a gestante ou o casal começam a formar novos planos para uma realidade além da malformação do bebê e expressam a vivência de uma reorganização emocional.
5Estudos
12,16 consideram que os pais precisam elaborar o luto da perda do bebê imaginário para conseguirem se ligar completamente ao bebê real que está por vir. Caso o processo de luto se fixe em uma das fases, uma atmosfera complicada se formará dentro da família, onde o fantasma do bebê imaginário saudável se tornará presente, tendendo a interferir no processo de vinculação com o bebê real. Ademais, como consequência negativa, poderá também ocorrer uma deficiência no cuidado com a saúde materno-fetal, manifestada por meio da ausência em consultas médicas, da não realização de exames e da carência de autocuidado por parte da gestante.
Estratégias de enfrentamento utilizadas pelos paisDiante do diagnóstico de malformação fetal, há elementos que interferem na modulação do enfrentamento dos pais e os auxilia, ou não, a atravessar o processo de luto. Nesta pesquisa, a religiosidade, a rede sociofamiliar, a comunicação e o apoio mútuo entre o casal foram os principais fatores relatados.
Para todos os entrevistados, a religiosidade foi apontada como importante fonte de auxílio na busca por equilíbrio e no enfrentamento das repercussões emocionais mobilizadas a partir do diagnóstico. Esse achado vai ao encontro de estudos
5,19,20,21 que revelaram que as práticas religiosas e o suporte espiritual, por estarem ligadas aos sentimentos de esperança e fé, auxiliam os pais a encontrarem sustentação para lidar com uma situação que demanda superação, aceitação e tomada de decisões. Além disso, observou-se que, apesar de a religiosidade ser considerada uma prática de alta participação entre o público feminino, os homens desta pesquisa também se apoiaram nela como recurso de encorajamento para enfrentar as vivências decorrentes da condição de malformação do filho, o que é condizente com os achados de outros estudos.
21,22Por sua vez, a rede sociofamiliar, tida como aquelas pessoas ou sistemas que têm a disponibilidade de apoiar e reforçar os pais, também foi identificada como um fator que repercutiu no enfrentamento diante do diagnóstico do filho. Esse suporte pode se manifestar por meio de expressões de carinho, encorajamento ou assistência, ajudando os pais a lidar com a situação.
No entanto, nem sempre partilhar a informação da malformação fetal revela-se como uma estratégia para a garantia de recebimento de apoio. O luto do filho imaginário traz uma situação de perda ambígua, o luto pelo filho vivo, levando a uma experiência que não pode ser abertamente admitida e que, muitas vezes, não é socialmente validada por não ser reconhecida.
6,23 É comum os pais, nessa situação, se depararem com manifestações de curiosidade e abordagens pouco cuidadosas por parte de outros familiares e conhecidos, o que pode levar a alguns deles optarem pela adoção do silêncio como forma de proteção.
24Apesar dessa escolha pelo silêncio ter sido presente em vários discursos durante as entrevistas, considera-se que a busca pela manutenção de uma rede social, em oposição ao isolamento, pode auxiliar os pais a não se manterem centrados no diagnóstico e a buscarem formas mais saudáveis de lidar com malformação do filho e as consequências decorrentes dela. A rede de apoio pode promover suportes emocional, financeiro e/ou instrumental (ajuda com as tarefas de casa, por exemplo) que, em casos de gestação de risco, funcionam como importante fator protetor da saúde mental da gestante e do pai.
5,20,25Da mesma forma, a comunicação e o apoio mútuo entre o casal também influenciaram na postura de enfrentamento ao diagnóstico. Os relatos emergidos na pesquisa apontam, por parte de alguns participantes, para uma relação de parceria e cumplicidade construída entre o casal, o que os fortalece diante da situação vivenciada. Por outro lado, observou-se, também, que há aqueles que optaram pelo silêncio, o que pode promover o distanciamento dentro do relacionamento.
A notícia de um diagnóstico de malformação é de tal forma traumatizante e desestruturante, e pode trazer repercussões no relacionamento conjugal, seja de aproximação com o estabelecimento de um apoio mútuo, ou de distanciamento com a vivência de isolamento. Klaus
et al.
12 utilizam-se do termo
assincrônico para descrever os pais que passam pelas fases de adaptação em ritmos diferentes. Esses pais, normalmente, não dialogam muito um com o outro sobre os seus sentimentos e podem, assim, passar por dificuldades no relacionamento. É como se desenvolvessem uma separação emocional temporária entre eles, o que, em alguns casos, pode até levar ao divórcio.
A duração do processo de adaptação dos pais à presença de um filho com malformação vai variar de família para família.
18,19 Entretanto, esse será, na grande maioria das vezes, um processo longo e penoso, que costuma promover, no seu seguimento, o crescimento pessoal, as alterações das crenças pessoais e espirituais, assim como a autoconfiança parental.
12,19Entrar em contato com o diagnóstico no pré-natal pode auxiliar na formação de estratégias de enfretamento no pós-parto. Nesse sentido, recomenda-se
5,8,20 que os profissionais de saúde ofereçam suporte multidisciplinar e serviços psicológicos como parte do cuidado pré-natal para auxiliar os pais a enfrentarem essa experiência desafiadora, processarem suas emoções e tomarem decisões informadas sobre a gravidez e os cuidados futuros.
O presente estudo permitiu acesso às repercussões psicológicas provocadas nos pais a partir do diagnóstico de malformação fetal, e subsidiou a compreensão dos aspectos simbólicos trazidos por eles, possibilitando, assim, mergulhar nos elementos envolvidos no processo de luto. As reflexões suscitadas pelo modelo teórico
4,6,11,12,13 contribuíram para a leitura do que foi manifestado pelos pais a partir da perda do bebê imaginário diante da confirmação de malformação fetal.
Uma das limitações apresentadas, no decorrer do estudo, foi a dificuldade de localizar outros pais durante as consultas de pré-natal no ambulatório de medicina fetal. Isso resultou em uma coleta de dados predominantemente feminina, o que não era um desejo inicial da pesquisa, que buscava incluir ambos os genitores de forma mais equilibrada.
Apesar disso, ao integrar o modelo das transições psicossociais com os conceitos da psicologia perinatal, obteve-se uma compreensão mais ampla da experiência de luto vivida pelos pais após o diagnóstico de malformação fetal. Esse diálogo teórico evidenciou a complexidade do luto perinatal, que não se limitou à perda física, mas também envolveu a perda de expectativas e a necessidade de redefinição do papel parental frente às incertezas sobre o futuro do bebê.
Desta forma, as informações, aqui reunidas, podem se mostrar relevantes para a prática profissional no âmbito da medicina fetal, da neonatologia e da psicologia perinatal nos cenários ambulatorial e hospitalar. Por possibilitar o reconhecimento das manifestações emocionais pelas quais atravessam os pais nessa situação, elas contribuem para o acolhimento e a assistência aos genitores e seus familiares, dando suporte à elaboração do processo de luto vivido por eles.
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Contribuição dos autores: Conceição YZS: Conceituação, metodologia, investigação, curadoria e análise dos dados, redação do rascunho original do texto e aprovação da versão final do artigo. Melo EP: Conceituação, metodologia, supervisão, revisão e edição do manuscrito, e aprovação da versão final do artigo. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.
Recebido em 15 de Julho de 2024
Versão final apresentada em 11 de Janeiro de 2025
Aprovado em 15 de Janeiro de 2025
Editor Associado: Aline Brilhante