RESUMO
OBJETIVOS: avaliar mudanças no consumo alimentar de gestantes e puérperas durante a pandemia da COVID-19 e seus fatores relacionados.
MÉTODOS: estudo transversal, com coleta de dados antropométricos, sociodemográficos, clínicos e de consumo alimentar em mulheres que tiveram seus partos nos meses de maior incidência de COVID-19 em três hospitais públicos brasileiros.
RESULTADOS: participaram do estudo 459 mulheres, com mediana de 28 anos de idade (Intervalo Interquartil 9) e renda familiar de até um salário mínimo (38,6%). Identificou-se redução do consumo regular de alimentos prontos para consumo preparados fora de casa (20,9% vs 31,6%; p<0,001), embutidos (34,9% vs 39,9%; p=0,011), biscoitos recheados e doces (40,5% vs 45,3%; p=0,016) e de carnes (75,8% vs 84,3%; p<0,001) durante a pandemia. Não houve associação dessas alterações com as variáveis investigadas.
CONCLUSÕES: houve redução do consumo de ultraprocessados e de carnes durante a pandemia de COVID-19 entre as participantes. Tais achados podem ser positivos visto os efeitos deletérios do consumo de ultraprocessados e excesso de carnes para a saúde materno-infantil. Alterações nos modos de vida e acesso aos alimentos advindas do contexto pandêmico podem ter influenciado os resultados, demandando monitoramento e novos estudos sobre o consumo alimentar desse grupo para compreensão das mudanças e seus impactos em longo prazo.
Palavras-chave:
Nutrição materna, Puerpério, Consumo alimentar, COVID-19
ABSTRACT
OBJECTIVES: to evaluate changes in pregnant women's food consumption and at postpartum during COVID-19 pandemic and its related factors.
METHODS: a cross-sectional study, collecting anthropometric, sociodemographic, clinical and food consumption data on women who gave birth during the months of the highest incidence of COVID-19 in three Brazilian public hospitals.
RESULTS: 459 women participated in the study, with a median age of 28 years (Interquartile Range 9) and family income of up to one minimum wage (38.6%). A reduction was identified in a regular consumption of ready-to-eat food prepared outside the home (20.9% vs 31.6%; p<0.001), processed meat (34.9% vs 39.9%; p=0.011), stuffed cookies and sweets (40.5% vs 45.3%; p=0.016) and meat (75.8% vs 84.3%; p<0.001) during the pandemic. There was no association of these changes with the investigated variables.
CONCLUSIONS: there was a reduction in the consumption of ultra-processed food and meat during COVID-19 pandemic among the participants. Such findings may be positive given the harmful effects of consuming ultra-processed food and excess on meat on maternal and child's health. Changes in lifestyles and access to food received in the pandemic context may have influenced the results, requiring monitoring and new studies on this group's food consumption to understand the changes and their long-term impacts.
Keywords:
Maternal Nutrition, Puerperium, Food consumption, COVID-19
IntroduçãoA Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou em março de 2020 que o surto do Sars-CoV-2 caracterizava uma pandemia, fenômeno que se tornou um dos maiores desafios sanitários dos últimos anos.
1 Devido à ausência de tratamentos específicos e da alta transmissibilidade, foram recomendadas medidas não farmacológicas para controle da doença,
2 como uso de máscaras, higiene das mãos, fechamento de estabelecimentos e distanciamento social.
3A adoção dessas medidas implicou em mudanças no estilo de vida da população,
2 incluindo a alimentação. Em diversos países, houve um aumento no consumo de alimentos não saudáveis,
4 e no Brasil, Malta
et al.
2 constataram um aumento nos ultraprocessados em 2020. Além disso, a insegurança alimentar cresceu, afetando 59,4% dos domicílios brasileiros entre agosto e dezembro de 2020.
5 Assim, a pandemia não foi apenas um problema de saúde, mas também acentuou desafios relacionados às desigualdades e iniquidades sociais em diferentes contextos.
6Além da adoção das medidas de controle, alguns grupos, como as gestantes, foram considerados de maior risco para a doença, devido a tendência de agravo em caso de contaminação pela COVID-19.
7 A gestação e os processos que ocorrem posteriormente a ela, como o puerpério e a lactação, são momentos em que surgem diferentes transformações no corpo da mulher, envolvendo grandes mudanças fisiológicas e imunológicas.
8,9 A alimentação é um dos fatores que possuem grande impacto sob esses processos, demandando atenção especial à qualidade da dieta desse público.
Uma nutrição adequada promove a saúde da mulher e reduz riscos gestacionais, como diabetes gestacional, hipertensão, ganho excessivo ou insuficiente de peso
7 e no puerpério favorece, dentre outras, o retorno ao peso pré-gravídico de forma saudável. Além disso, a criação de hábitos alimentares saudáveis no período da gestação também fomenta o desenvolvimento adequado da criança, uma vez que se insere nos primeiros 1000 dias de vida, cruciais para a promoção do crescimento e do desenvolvimento do indivíduo devido à acentuada velocidade de multiplicação celular.
10A alimentação das gestantes e parturientes deve englobar consumo diário de alimentos
in natura e restrição ao consumo de bebidas açucaradas e alimentos ultraprocessados
7. A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2017-2018 indica que gestantes brasileiras consomem predominantemente alimentos
in natura ou minimamente processados, apresentando um menor consumo de ultraprocessados em comparação a mulheres não gestantes.
7,11 No entanto, dados referentes aos marcadores de consumo alimentar de gestantes presentes no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN) indicaram alto consumo (76%) de alimentos ultraprocessados em gestantes em 2020.
11 No período pós-parto, parece haver piora da adequação dietética em virtude das adaptações inerentes à nova rotina. Freitas
et al.12 demonstraram baixo consumo total de frutas, cereais totais, cereais integrais e leite e derivados em nutrizes do interior do sudeste brasileiro.
Dada a importância de uma alimentação saudável durante a gestação e o pós-parto, bem como a escassez de estudos sobre a alimentação nesses períodos, especialmente no contexto da pandemia de COVID-19, este estudo tem como objetivo avaliar as mudanças no consumo alimentar de gestantes e puérperas durante a pandemia e seus fatores associados.
MétodosO presente estudo, de delineamento transversal, está inserido na linha de base de um amplo projeto de pesquisa intitulado "Parto e Aleitamento Materno em filhos de mães infectadas por SARS-CoV-2". Informações adicionais sobre o projeto podem ser encontradas Menezes
et al.13 A amostra abrange mulheres de três hospitais públicos referências em assistência materno- infantil em uma metrópole brasileira, que tiveram seus partos nos três primeiros meses de maior incidência de COVID-19 no Brasil (maio, junho e julho de 2020).
13 Foram incluídas todas as mulheres adultas (≥18 anos), com gravidez única que deram à luz nos referidos hospitais e tiveram recém-nascidos (RN) vivos com idade gestacional de 22 semanas ou mais, pesando mais de 500 gramas ao nascer. A coleta de dados foi realizada em dois momentos distintos: 1. prontuário das participantes (n=1921) e 2. coleta telefônica (período ≥6 meses após o parto), em que obteve-se êxito no contato telefônico com n=492. Dessas, foram excluídas as participantes que apresentaram ausência de dados relacionados ao consumo alimentar (n=33) totalizando 459 participantes.
Para a estimativa da amostra requerida para o presente estudo (n=350), foi utilizada uma proporção esperada de mudança no consumo alimentar de 50%, tendo em vista a maior variabilidade alcançada e atendimento a qualquer prevalência de mudança nessa variável. Foi utilizado para o cálculo o número de mulheres atendidas nesses três hospitais durante o período analisado (n= 3.839). Foi adotada uma margem de erro de 5% e um intervalo de confiança de 95%.
A coleta de dados em prontuário contemplou dados sociodemográficos que foram conferidos e complementados posteriormente na coleta telefônica, abrangendo idade (em anos e em categorias: 18-24 anos, 25-35 anos e acima de 35 anos), estado conjugal (com e sem companheiro), cor de pele autodeclarada (branca, preta, parda, amarela, indígena), escolaridade (com e sem ensino médio completo) e renda familiar (em salários mínimos, sendo o salário de R$1.045,00 vigente à época: até um salário mínimo, de um a três salários mínimos, de três a cinco, salários mínimos e mais que cinco salários mínimos).
14 Para a categorização desses dados foram utilizadas como referência as propostas de estudos nacionais ou com amostras similares.
15,16Na coleta telefônica também foram obtidos dados antropométricos, clínicos e do consumo alimentar. No âmbito antropométrico, considerou-se o peso pós-parto e altura autorreferidos para cálculo do Índice de Massa Corporal (IMC=peso/altura
2). Esse foi categorizado, para as mulheres adultas, em "sem excesso de peso" (IMC <24,9 kg/m
2 e "com excesso de peso" (IMC ≥24,9 kg/m
2.
17 Essas categorias também foram usadas para as adolescentes (18 e 19 anos, n=18), após devida avaliação do IMC/Idade conforme os parâmetros da OMS
18. Em relação aos dados comportamentais, investigou-se o consumo atual de cigarro e bebida alcoólica sem determinação do tipo e da quantidade. Adicionalmente, questionou-se a prática de atividade física no pré ou pós-parto (número de dias na semana e duração), sendo considerado "adequado'' quando igual ou superior a 150 minutos por semana.
19 A existência de acompanhamento nutricional durante a gestação ou no pós-parto também foi perguntada. Quanto à infecção por COVID-19, foi avaliada somente a presença de sintomas correspondentes após o parto, uma vez que no início da pandemia não havia testes disponíveis para toda a população.
20O consumo alimentar foi avaliado por meio de um questionário contemplando marcadores de consumo alimentar adaptado de instrumentos de assistência à saúde do SISVAN e de pesquisas nacionais
15,21 abrangendo nove grupos alimentares: 'alimentos preparados fora de casa que venham prontos para o consumo'; 'feijão, ervilha, grão de bico ou outras leguminosas', 'frutas
in natura (em sua forma natural)'; 'verduras e/ou legumes (não foi considerado batata, mandioca, cará e inhame)'; 'embutidos (hambúrguer, presunto, mortadela, salame, linguiça, salsicha)'; 'bebidas adoçadas (suco de fruta com açúcar, refrigerante, suco de caixinha, suco em pó, água de coco de caixinha, xaropes de guaraná/groselha)'; 'macarrão instantâneo, salgadinhos de pacote ou biscoitos salgados'; 'biscoito recheado e doces (bombom/balas, chiclete, gelatina, brigadeiro, tortas doces)'; 'carne de boi, porco, frango ou peixe'. Questionou- se a frequência ''antes do período da pandemia'' (informando que seria o período gestacional antes de março de 2020) e "durante o período da pandemia'' (referente ao puerpério, uma vez que a coleta de dados telefônica foi iniciada seis meses após o parto).
Para cada grupo de alimentos, as frequências de consumo apresentadas foram: 'nunca', '1-2 vezes/mês', '1 vez/semana', '2 vezes/semana', '3-4 vezes/semana', '5-6 vezes/semana' e 'todo dia'. Os entrevistadores foram treinados para orientar o relato das participantes em frequência mais próxima do consumo. Para caracterizar o consumo desse grupos alimentares, os alimentos foram organizados segundo o grau de processamento em '
in natura ou minimamente processados' (aqueles obtidos diretamente de plantas ou de animais e que são adquiridos para consumo sem qualquer alteração ou alterações mínimas), 'ingredientes culinários' (óleos, gorduras, sal e açúcar utilizados nas preparações culinárias), 'alimentos processados' (produtos fabricados essencialmente com a adição de sal ou açúcar a um alimento
in natura ou minimamente processado) e 'alimentos ultraprocessados' (produtos em que a fabricação envolve diversas etapas e técnicas de processamento e ingredientes, muitos deles de uso exclusivamente industrial).
22 Considerando que as diretrizes vigentes não abordam parâmetros quantitativos e sim orientam a priorização do consumo de alimentos
in natura e minimamente processados,
22 adotou-se como consumo "regular" desses alimentos (feijão, ervilha, grão de bico ou outras leguminosas, frutas
in natura; verduras e/ou legumes; carnes) quando a frequência mencionada foi '5-6 vezes/semana' ou 'todo dia'.
2,15 Para os ultraprocessados (alimentos preparados fora de casa que venham prontos para consumo; embutidos; bebidas adoçadas; macarrão instantâneo, salgadinhos de pacote ou biscoitos salgados; biscoito recheado e doces), nomeou-se como "regular" quando descrito em dois ou mais dias na semana
2 uma vez que essas diretrizes também orientam limitar o consumo de alimentos ultraprocessados.
22Os dados obtidos foram analisados, após verificação da consistência, por meio do programa
Statistical Package for the Social Sciences (SPSS Inc) versão 21.0. Efetuou- se análise descritiva dos dados, sendo as variáveis categóricas apresentadas com suas respectivas frequências e as numéricas como mediana e intervalo interquartil (IQR). O teste Kolmogorov-Smirnov foi aplicado para avaliar a adesão das variáveis à distribuição normal.
Foi analisado se houve diferenças significativas no consumo regular dos alimentos durante a pandemia em relação ao período pré-pandêmico (antes de março/2020) por meio da comparação de frequência de consumo com o teste de McNemar. Já as associações entre as variáveis categóricas e as mudanças no consumo alimentar foram testadas por meio do qui-quadrado, com correção de Bonferroni, quando necessário. Considerou-se 5% como nível de significância.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (Parecer n. 5.735.679, CAAE 32378920.6.0000.5149, data de aprovação 02 de novembro de 2022).
ResultadosParticiparam do estudo 459 mulheres, com mediana de 28 anos (IQR 9) de idade, sendo a maioria com ensino médio completo (75,2%) e renda familiar de até um salário mínimo (47,3%). Identificou-se 56,4% mulheres com excesso de peso e 14,2% mencionaram acompanhamento nutricional durante a gestação ou no pós-parto. A manifestação de sintomas de COVID-19 no pós-parto foi declarada por 34,9% das participantes (Tabela 1).
Acerca do consumo alimentar, antes da pandemia observou-se que o consumo regular de alimentos
in natura foi descrito pela maioria das mulheres: 87,4% relataram o consumo regular de leguminosas; 58,6% de frutas; 74,7% de verduras e/ou legumes e 84,3% de carnes. Esse consumo não apresentou mudanças significativas durante a pandemia, com exceção do consumo regular de carnes (84,3%
vs 75,8%;
p<0,001) (Tabela 2).
Além disso, identificou-se, no grupo dos ultraprocessados, redução durante a pandemia do consumo regular de alimentos prontos para consumo preparados fora de casa (31,6%
vs 20,9%;
p<0,001), de embutidos (39,9%
vs 34,9%;
p=0,011), de biscoitos recheados e doces (45,3%
vs 40,5%;
p=0,016) (Tabela 2).
As mudanças no consumo alimentar durante a pandemia (Tabelas 3 a 5) não foram associadas com as variáveis sociodemográficas, antropométricas e clínicas.
DiscussãoOs achados deste estudo apontaram reduções significativas no consumo regular de ultraprocessados — alimentos prontos para consumo preparados fora de casa, de embutidos, de biscoitos recheados e doces — e de carnes entre gestante e puérperas durante a pandemia do COVID-19.
A redução no consumo de alimentos ultraprocessados pode ser atribuída ao isolamento social, que incentivou preparações caseiras devido ao maior tempo em casa e à preocupação com a saúde. Andrade
et al.23 relataram que a preocupação com a saúde, a queda na renda familiar e o tempo disponível para cozinhar foram motivos frequentes para mudanças alimentares durante a pandemia, incluindo o aumento no consumo de frango, frutas, verduras, legumes e ovos, e a redução na ingestão de carne bovina e ultraprocessados.
Apesar da renda no presente estudo não apresentar associação significativa com as mudanças de consumo alimentar, sabe-se que o poder aquisitivo está relacionado com o acesso aos alimentos
24 e poderia implicar em mudanças nas escolhas dietéticas com impacto no consumo de ultraprocessados.
Martinez
et al.25 demonstraram aumento significante no consumo de hortaliças, frutas e leguminosas e estabilidade no consumo de alimentos ultraprocessados durante a pandemia de COVID-19 no Brasil entre os participantes (n=10.116, sendo 78% mulheres). No entanto, 85,1% dos participantes desse estudo apresentaram elevada escolaridade (12 ou mais anos de estudo), o que pode contribuir para a divergência com os resultados aqui encontrados. Na presente amostra um percentual inferior (75,2%) possui o ensino médio completo e dentre essas menos de 15% alcançaram 12 ou mais anos de estudos.
Outros estudos nacionais e internacionais, por sua vez, referiram aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, como alimentos preparados fora de casa que venham prontos para o consumo, doces e biscoitos recheados.
4,21,23 Tais discordâncias podem ter ocorrido pelas diferenças amostrais — tamanhos, ciclos da vida, ambos os sexos e distintas características sociodemográficas — além de contemplarem momentos diferentes da pandemia.
A redução de ultraprocessados durante o período analisado pode ter impactado positivamente a saúde dessas mulheres, uma vez que as recomendações atuais
8,23 orientam a limitação do consumo desses alimentos. Durante a gestação, tal consumo está associado ao ganho excessivo de peso gestacional
7 — que se relaciona com o desenvolvimento de diabetes gestacional e/ou síndrome hipertensiva, propiciando complicações na saúde materno-infantil.
8 Já no puerpério, esse consumo favorece a retenção de peso pós-parto, que pode suscitar o desenvolvimento de obesidade na mãe e outras doenças crônicas não transmissíveis.
7 Além disso, há consenso na literatura sobre os efeitos deletérios desses alimentos para a saúde, como o favorecimento de doenças cardiovasculares, diabetes e vários tipos de câncer, além de aumentarem o risco de deficiências nutricionais e contribuírem para o consumo excessivo de calorias.
22Além da redução do consumo de ultraprocessados, a presente investigação apontou diminuição do consumo de carnes durante a pandemia. Apesar da não associação com as variáveis sociodemográficas aqui testadas, pondera-se que as medidas de restrição social fomentaram mudanças no acesso aos alimentos, sobretudo os de alta perecibilidade e impactaram as escolhas alimentares em virtude dos custos.
26 Estudo nacional demonstrou redução do consumo de carnes (bovina e suína) e peixe entre aqueles que declararam redução do orçamento familiar durante a pandemia de COVID-19.
23 Ademais, houve crescimento da insegurança alimentar moderada e grave nas famílias brasileiras que recebiam até um salário mínimo durante esse períod.
27Sabe-se que as carnes são uma fonte importante de ferro na gravidez e no puerpério. A diminuição considerável deste alimento na dieta nesses ciclos da vida, sem um acompanhamento nutricional adequado, pode comprometer a ingestão deste e de outros nutrientes, contribuindo para anemia ferropriva, baixo peso ao nascer e redução nos períodos de gestação.
28 Dessa maneira, uma redução do consumo de carnes entre mulheres que já possuem um baixo consumo desse alimento e outros com características nutricionais similares, pode contribuir de forma negativa para a saúde materno-infantil. Entretanto, estimativas nacionais apontam aumento da ingestão média de carne nos últimos anos (86g/1000 kcal em 2008; 97g/1000 kcal em 2017, sobretudo carne bovina).
29 O aumento variou entre as categorias de renda, sendo menor entre os indivíduos de renda mais baixa.
29 Cumpre salientar que esses valores ultrapassam as recomendações de diferentes instituições (cerca de 40-70g/dia).
30 Assim, a redução identificada no presente estudo pode ser positiva, tendo em vista que o consumo excessivo de carnes oportuniza maior ingestão de gorduras saturadas e risco de doenças cardiovasculares.
22 O marcador de consumo alimentar aplicado neste estudo não diferenciou o consumo dos diferentes tipos de carne (boi, porco, frango ou peixe), bem como não houve mensuração quantitativa desses produtos, não sendo possível analisar se essa redução foi diferente entre essas categorias e qual a intensidade de mudança dessa ingestão.
Além disso, é válido destacar que a gestação e o puerpério provocam significativas mudanças no padrão de consumo alimentar das mães, uma vez que a mulher procura seguir uma dieta adequada visando a recuperação pós parto e a qualidade do leite materno.
8 Dessa maneira, essa preocupação com a saúde também pode ter influenciado as mudanças alimentares aqui encontradas.
Adicionamente, cumpre trazer limitações do estudo, como a não associação das mudanças de consumo alimentar antes e durante a pandemia com as variáveis ora testadas, que pode ser justificado pela homogeneidade da amostra no tocante às características sociodemográficas, além da avaliação em um único momento da pandemia, tendo em vista as diferentes ondas da doença e impactos vivenciados no Brasil. Além disso, há o viés de memória, visto que estas mulheres podem não se lembrar com precisão da alimentação antes da pandemia e do peso e altura auto referidos, sobretudo pelas mudanças familiares vivenciadas com a gestação e parto, além das reorganizações advindas do cenário pandêmico. Ademais, os dados foram obtidos apenas em três hospitais de uma metrópole brasileira, não considerando as consequências da pandemia de forma individual em cada região do país. Cabe ressaltar também que não foi utilizado um instrumento validado de coleta de dados de consumo alimentar para gestantes/puérperas apesar da cuidadosa construção do questionário de coleta de dados.
Esse trabalho identificou que ocorreram mudanças significativas durante a pandemia de COVID-19 no consumo alimentar de gestantes e puérperas. Salienta-se que se trata de uma das primeiras investigações realizadas no Brasil que verificou tais mudanças entre esse público no contexto pandêmico. É evidente que a análise do consumo alimentar é importante para verificar a manutenção ou mudanças de padrões alimentares, de forma a contribuir para o desenvolvimento de intervenções nutricionais com determinada população. As mudanças aqui apontadas mostram-se como positivas, mas precisam ser monitoradas. Logo, espera-se fomentar comparações longitudinais e estudo de seguimento com esse grupo, com instrumentos validados para essa população, de forma a mensurar a relevância dos efeitos da pandemia causada pelo SARS-CoV-2 na alimentação e saúde das mulheres em médio e longo prazo.
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https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files/media/document/resumo-alimentos-nutricao-atividade-fisica-e-prevencao-de-cancer-2011.pdfAgradecimentos: Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo apoio financeiro.
Contribuição dos autores: Souza Mendes LS: conceituação, curadoria de dados, análise formal, metodologia, administração de projeto, validação, visualização, escrita, revisão e edição do manuscrito. Faria PKT: conceituação, curadoria de dados, análise formal, metodologia, administração de projeto, validação, visualização, escrita, revisão e edição do manuscrito. Armani BC: análise formal, metodologia, supervisão, revisão e edição do manuscrito. Matozinhos FP: aquisição de financiamento, recursos, revisão e edição do manuscrito. Santos LC: supervisão, revisão e edição do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.
Recebido em 22 de Agosto de 2024
Versão final apresentada em 20 de Dezembro de 2024
Aprovado em 10 de Janeiro de 2025
Editor Associado: Paola Mosquera