Publicação Contínua
Qualis Capes Quadriênio 2017-2020 - B1 em medicina I, II e III, saúde coletiva
Versão on-line ISSN: 1806-9804
Versão impressa ISSN: 1519-3829

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Public Health Emergency: Assessment of the political cycle in response to microcephaly associated with Zika virus in Pernambuco, Brazil

Lucilene Rafael Aguiar 1; Paulo Germano de Frias 2; Louisiana Regadas de Macedo Quinino 3; Maria Rejane Ferreira da Silva 4; Demócrito de Barros Miranda Filho 5

DOI: 10.1590/1806-9304202400000398 e20230398

ABSTRACT

OBJECTIVES: to evaluate the political cycle in response to the public health emergency due to microcephaly in Pernambuco.
METHODS: evaluative research, approach and the Modelo Teórico de Análise do Ciclo de Políticas (Theoretical Model of Political Cycle Analysis in the phases: agenda setting, policy formulation and decision making, used as theoretical categories. A total of 13 key informants were interviewed and the findings were triangulated based on document analysis. The theoretical categories studied were: unusual problem agenda setting, insufficient structure and crisis management; policy formulation - guideline development, research management and risk communication; Decision Making Investment Management, Definitions of Institutional Competencies and Investment in Surveillance and Assistance.
RESULTS: the microcephaly event entered the government agenda based on an agenda set up with well-defined problems. The formulation of the policy was based on technical-scientific parameters and incorporated critical issues such as the elaboration of regulations, structuring of services, research and media. The decision-making process was favored by the experience of the team and by the social and media pressure that provided the investment setting, especially directed to the structure of the services and the research performance.
CONCLUSIONS: the response to the emergency related to microcephaly in Pernambuco occurred in a logical chained political cycle, intertwined and negotiated in all its phases.

Keywords: Health evaluation, Policy making, Capacity to respond to emergencies Microcephaly, Public health

RESUMO

OBJETIVOS: avaliar o ciclo político da resposta à emergência em saúde pública por microcefalia em Pernambuco.
MÉTODOS: pesquisa avaliativa abordando as políticas de saúde, utilizando o Modelo Teórico de Análise do Ciclo de Políticas nas fases: montagem da agenda, formulação da política e tomada de decisão, usadas como categorias teóricas. Entrevistou-se 13 informantes chaves e os achados foram triangulados a partir da análise de documentos. As categorias teóricas estudadas foram: montagem da agenda - problema inusitado, insuficiência da estrutura e gestão da crise; formulação da política - elaboração de diretrizes, gestão de pesquisa e comunicação de risco; tomada de decisão - gestão de investimentos, definições de competência institucionais e investimento na vigilância e assistência.
RESULTADOS: o evento da microcefalia entrou na pauta governamental a partir de agenda montada com problemas bem definidos. A formulação da política, baseou-se em parâmetros técnico-científicos e incorporou questões críticas como a elaboração de normativas, estruturação dos serviços, pesquisa e mídia. A tomada de decisão foi favorecida pela experiência da equipe, pressão social e midiática que propiciou cenário de investimento, especialmente para a estrutura dos serviços e realização de pesquisas.
CONCLUSÕES: a resposta à emergência relacionada à microcefalia em Pernambuco ocorreu em um ciclo político logicamente encadeado, imbricado e negociado em todas as suas fases.

Palavras-chave: Avaliação em saúde, Formulação de políticas, Capacidade de resposta ante emergências, Microcefalia, Saúde pública

Introdução

Emergências em saúde pública (ESP) constituem desafios para todos os países, em particular os que não dispõem de sistemas de saúde universal, capilarizados e com capacidade de respostas oportunas. Em reconhecimento, a Organização Mundial da Saúde (OMS) elaborou o Regulamento Sanitário Internacional (RSI) que instituiu mecanismo político, jurídico e governamental para o enfrentamento de problemas coletivos relacionados à propagação de doenças e situações que potencialmente requeiram coordenação global.1,2

Com base nos critérios adotados no RSI, a OMS declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) em seis situações: Pandemia de Influenza A (H1N1 em 2009); Poliomielite Selvagem e o Ebola (2014); expansão de casos de infecção pelo Zika vírus (ZIKV) em 2016; Ebola (2018), e a COVID-19 em 2020.3

No Brasil, a epidemia do ZIKV iniciou em 2014, mas só em outubro de 2015, se detectou alteração no número de nascidos com microcefalia em Pernambuco, que se tornou o epicentro desse evento. Diante da gravidade da situação, e da hipótese de associação da microcefalia com o ZIKV, em novembro/2015, o Ministério da Saúde (MS) declarou ESP de Interesse Nacional. Diante da propagação para outros territórios, o aumento dos distúrbios neurológicos e das alterações congênitas, a OMS anunciou em fevereiro/2016 a ESPII.4,5

Até janeiro de 2017, o Brasil acumulou 2.366 casos confirmados de microcefalia sugestivo de associação com o ZIKV, detendo 89,8% dos casos do mundo.6 Em Pernambuco, a prevalência dos casos foi 23,9 por 10 mil nascidos vivos entre o final dos anos de 2015 e 2016, superior a maioria dos estados do país.7 Nesse intervalo, os avanços no conhecimento associando casos de microcefalia a uma síndrome congênita vinculada ao ZIKV ocorreu rapidamente7. Entretanto, se explorou pouco como a formulação da resposta a ESPII relacionada a microcefalia influenciou as práticas organizacionais e a prestação de serviços de saúde, de forma a compreender melhor as dinâmicas institucionais.

Avaliações ex-post diante de situações inusitadas que requereram respostas rápidas podem contribuir para construção e fortalecimento das políticas públicas de saúde. Em decorrência, a análise da resposta institucional à situação no estado epicentro do evento e protagonista de estratégias públicas para o seu enfrentamento contribuirá com a organização diante de futuras ESPII. O objetivo desse estudo foi avaliar o ciclo político da resposta à emergência em saúde pública por microcefalia em Pernambuco.

Métodos

Pesquisa avaliativa com abordagem focada nas políticas de saúde em resposta à ESP relacionada à microcefalia e sua influência na organização e prestação de serviços entre outubro/2015 e julho/2017 em Pernambuco. O estado tem 98.146 km2 de extensão, população estimada de 9.345.173 habitantes (2015), 80,0% residente em área urbana distribuída em 184 municípios e no Distrito de Fernando de Noronha. O sistema público de saúde abrange 85,0% da população e dispõe de rede assistencial de 8.125 estabelecimentos, sendo 51,5% públicos.8

A análise utilizou três das cinco fases do modelo teórico do Ciclo de Análise de Políticas Públicas proposto por Howlett e Ramesh,9 que engloba: 1) Montagem da Agenda (MA), definida como a identificação de problemas nos quais o governo deve concentrar sua atenção; 2) Formulação da Política (FP), que envolve a busca de soluções para o enfrentamento da situação, definindo princípios e diretrizes; e 3) Tomada de decisão (TD), que corresponde às coalizões construídas a partir de negociações, incluindo normativas, recursos e tempo da intervenção.10

Realizaram-se entrevistas em profundidade e consultas a documentos para triangular os dados. Utilizou-se um roteiro previamente elaborado com base no marco teórico e com as seguintes seções: a emergência da microcefalia, resposta a emergência, produção de informação, pesquisa e comunicação. A amostra foi definida de forma acumulativa e sequencial durante o trabalho de campo, realizado entre agosto-novembro/2017, até que se alcançasse a saturação de respostas.11 A seleção foi por representatividade do discurso e relevância em relação ao objeto de estudo. Os critérios de inclusão foram: ter integrado grupos do processo decisório das políticas públicas ou de pesquisa durante a ESP; ter participado diretamente na resposta à ESP em Pernambuco durante todo o período; ser servidor ou gestor público da área de gestão, assistência e vigilância e pesquisador nacional há pelo menos dez anos. Todas as entrevistas foram realizadas por apenas uma pesquisadora, em locais (Secretaria de Saúde, Unidades de Saúde, Universidades ou residências) e horários escolhidos pelos entrevistados. A amostra foi composta por quatro profissionais de gestão (G1-G4), quatro de assistência (A1-A4), três de vigilância (V1-V3) e dois pesquisadores (P1 e P2), todos identificados com os códigos.

Analisaram-se 279 documentos oficiais do governo de Pernambuco, quatro do MS e dois da Fiocruz. Todos foram captados nos portais da SES Cievs/PE, diário oficial de Pernambuco, Ministério da Saúde e Fiocruz. Detalhes sobre os principais documentos analisados estão contidos na Tabela Suplementar 1.

A análise de conteúdo, na modalidade temática, foi realizada a partir da adaptação das etapas propostas por Bardin12: 1) Pré-análise - gravação e transcrição da entrevista e leitura dos dados; 2) Exploração do material - 2.1) Categorização teórica pré-definida a partir das três fases do ciclo político (MA, FP, TD); 2.2) Definição de Temas - identificação de palavras-chave representativa das fases do ciclo político nas entrevistas (Tabela 1), incorporação do seu núcleo de compreensão no texto, agrupamento por semelhança do tema; 3) Tratamento dos resultados –frequência da aparição do tema segundo fase, selecionado os três mais frequentes, recortado trechos das entrevistas e triangulado com documentos para averiguação dos fatos relatados. A inferência e interpretação das opiniões semelhantes e divergentes foi realizada a luz de informações sobre o ciclo político, contexto de inserção e evolução temporal da emergência da microcefalia. A Figura 1 apresenta uma síntese do modelo metodológico utilizado.
 


Os temas identificados (Tabela 1) foram submetidos a dois julgadores independentes e separadamente, vinculados à área acadêmica e ao serviço, para verificar a fidedignidade, visando assegurar o rigor na análise. Os dados foram sistematizados em um pacote desenvolvido para auxiliar no tratamento de dados não numéricos e não estruturados em análises qualitativas, o programa NUD*IST (NonNumerical Unstructed Data Indexing, Searching and Theorising), v4.0, 1997.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Complexo do Hospital Universitário Oswaldo Cruz e do Pronto Socorro Cardiológico de Pernambuco - HUOC/Procape em 2017, CAAE 64419417.1.0000.5192.

Resultados e Discussão

Emergiram entre os principais achados do estudo que a microcefalia entrou na pauta governamental a partir de uma MA com problemas bem definidos. A FP teve como base parâmetros técnico-científicos que incorporaram questões críticas como a elaboração de normas, estruturação dos serviços, pesquisa e mídia. A TD foi favorecida pela experiência da equipe, pressão social e da mídia que estimularam os investimentos, especialmente os para a estrutura dos serviços e a realização de pesquisas.

Os entrevistados tinham idade entre 35 e 69 anos. A maioria era do sexo feminino (69,2%), médicos (61,5%), formados entre dez e 48 anos, servidor da SES (76,9%), com experiência em ESP (76,9%) e cargo na gestão (53,8%) (Tabela 2).
 


Identificaram-se 185 palavras-chave alusivas ao ciclo político, sendo a mais mencionada a MA com 41,1% dos termos. Enquanto por área de atuação dos entrevistados foram na assistência, MA (53,3%) e TD (31,7%); na gestão, TD (36,7%) e FP (34,7%); na vigilância, MA (38,6%) e FP (31,8%) e na pesquisa, MA (40,6%) e FP (37,5%) (Tabela 3). Os entrevistados destacaram, por fases do ciclo, na MA, o problema inusitado, a deficiência estrutural e a gestão da crise; na FP a elaboração de diretrizes, a gestão de pesquisa, e a comunicação de risco e na TD gestão de investimentos, definições de competência institucionais e investimento na vigilância e assistência (Tabela 4). O detalhamento de cada fase do ciclo político e sua interrelação estão apresentados a seguir quanto aos aspectos mais relevantes.
 

 



Montagem da Agenda

Na MA os entrevistados relataram dificuldades na organização da política de enfrentamento do que consideraram como evento inusitado. A MA ao envolver atores sociais com olhares e interesses distintos, geraram dificuldades na formulação da política. Nesse estudo, identificaram-se três situações conflitivas: a definição do problema como relevante e se o aumento de casos de microcefalia exigia atenção governamental; as hipóteses sobre as causas desse aumento e o conhecimento do problema, através dos meios de comunicação. Esta situação gerou preocupações, incertezas e temores na comunidade científica, serviços de saúde e sociedade.

As incertezas foram descritas por alguns entrevistados pela mudança nas características do padrão de nascimento, sem parâmetros que atribuíssem consistência às hipóteses. Outros enfatizaram limites para definição de estratégias pela falta de pesquisas e monitoramento dos nascidos com malformações congênitas no país, enquanto nas Américas, as malformações já eram a segunda causa de morte neonatal.13 Associada a isso, após a formulação de várias hipóteses, os estudos tendiam a aceitar àquela que associava os casos de microcefalia com o ZIKV no Brasil, dada a coerência espaço-temporal entre os eventos.14,15

Segundo Göttems,16 uma agenda de governo não segue um curso intencional, e tem como características o “reconhecimento de um problema pela sociedade; existência de ideias e alternativas para conceituá-los e contexto político, administrativo e legislativo favorável ao desenvolvimento da ação”. O contexto político influencia a entrada de problemas na agenda decisória.16–18 A resposta governamental para a constatação do aumento dos casos de microcefalia como problema relevante, configurou-se a partir da interpretação e experiência dos atores envolvidos, pressão da mídia, comoção social e observância a acordos internacionais,10,19 em meio às crises econômica mundial e na política nacional marcada por um processo de impeachment presidencial.7

No contexto do trabalho em saúde brasileiro, estudo mostra a relevância da carreira profissional na saúde para formação de equipes consistentes e experientes.20 Ademais, vivencias locais anteriores no enfrentamento de outras ESP,5 propiciaram a qualificação técnica dos profissionais, facilitando a definição do problema e a formulação de alternativas. Autores julgam que a presença de expertises diante de um problema, facilita a entrada do tema na agenda decisória, compondo o fluxo de soluções.16,17

Os entrevistados ressaltaram a deficiência estrutural dos serviços de saúde para responder a rotina, que se agravou com a ESP. O sub financiamento público resulta em descompasso entre as necessidades de saúde da população e a oferta de serviços, sendo esse um dos motivos de insatisfação dos usuários do SUS. Pesquisa sobre a percepção das mães de crianças com microcefalia relacionada à infecção congênita, atribui ao sub financiamento, a fragmentação do sistema e a falta de políticas públicas efetivas, como motivos da insatisfação das mães com a assistência aos seus filhos.21

Em todos os discursos, destacou-se a existência de crise de gestão na condução das ações. As dificuldades ocorreram nas áreas da vigilância e assistência, na condução das pesquisas, na definição de normativas, gestão de recursos e comunicação de risco. Ocorreram divergências entre o que era preconizado pelas autoridades da saúde nos níveis estadual e nacional, constatada também em seus protocolos.

Além disso, os grupos de pesquisas e da mídia foram essenciais ao tensionarem uma resposta governamental. A participação acadêmica na produção de pesquisas antecedeu as declarações de ESP pelo Brasil e OMS,5 integrou pesquisadores na gestão da crise e promoveu a corrida científica em busca de respostas as incertezas da situação. A integração de pesquisadores e formuladores de política é reconhecida como crucial, ainda que a governabilidade sobre a resposta às demandas sociais não lhes caiba. O conhecimento científico produzido pode indicar alternativas políticas,17,22 visto que, sua contribuição para o fluxo de soluções16 ajusta critérios técnico-científico válidos.

Os entrevistados evidenciaram que um grupo internacional buscou liderar as pesquisas, em detrimento das diretrizes estabelecidas localmente, entretanto a ação governamental reafirmou a liderança local. Países de baixa renda tendem a ser condescendentes com questões éticas e relacionadas à pesquisa, daí, muitos grupos se apoiarem nas carências da produção científica e nos contextos sociais destes países.23

A atenção dos veículos de comunicação ao problema colaborou para a celeridade da MA. Há evidências que as divulgações dos problemas sociais são instrumentos de pressão para órgãos governamentais, sendo a mídia constituinte do fluxo de soluções.24 Apesar da sua importância, a excessiva demanda de informação pelos meios de comunicação, veiculação de rumores nas redes sociais e por requerer capacidade de articulação, a mídia também foi vista como um problema. O interesse social com a epidemia de microcefalia foi revelado pela presença desse tema em 41,0% das capas de nove jornais impressos no Brasil.24

Formulação da Política

A transição entre as fases MA e FP gerou ações ainda sem o conhecimento completo do problema e exigiu a construção de alternativas à medida que surgiram novas necessidades. Nesta fase, os formuladores de política, com base nas alternativas, decidem sobre as ações, a partir do embate de ideias que envolvem conflitos, negociações e conhecimento limitado quanto à sua efetividade.18,25 A diversificação institucional dos formuladores e sua interação com os implementadores são apontadas como assertivas que viabilizam o sucesso de uma política.10,17

Para a FP, definiu-se um comando único que conduzisse as ações, liderado pelo ente estatal. O espaço de debate foi o Comitê de Operações de Emergência em Saúde Pública (COES),26 onde foram acordadas as prioridades elaboração de diretrizes, a gestão das pesquisas e comunicação de risco. Nesse espaço se estabeleceu as estratégias para o diálogo com a sociedade e a gestão da comunicação de risco, ressaltada como imprescindível por alguns entrevistados, em virtude da recorrência de rumores em torno da epidemia.

Em meio aos conflitos, inerentes a implementação de políticas públicas,22 em particular os interfederativos, interesse em priorização de grupos de pesquisa, pressão por respostas a sociedade e às incertezas quanto a evolução,5,7,15,21 instituiu-se diretrizes emergenciais, a partir do COES. As mais requeridas foram o aporte financeiro e institucional; as edições de normas para orientar as vigilâncias e assistências municipais; o apoio para realizar pesquisas e, estratégias de comunicação de risco. A vontade política, coordenação e planejamento são reconhecidos como pilares essenciais para fortalecer a capacidade de resposta às ESP.19

Uma das preocupações dos entrevistados foi com a elaboração de normativas que integrassem as ações de vigilância e assistência, além da regulação da rede de saúde. Por se tratar de um problema inusitado, não existia experiência nacional ou internacional que balizassem as ações. Iniciou-se com a tipificação das notificações, para se definir caso e, esforços para integrar os serviços. Conforme os entrevistados, o elevado número de casos gerou aumento da procura pelos serviços, rápidas mudanças assistenciais e muitas edições de documentos. Autores concordam com os entrevistados ao mostrar a necessidade de coordenação e planejamento integrado e suas implicações na MA e FP para minimizar fragilidades institucionais diante de certas situações, em particular s ESP.17,19

Esta pesquisa mostrou que a intensidade de resposta da vigilância e da assistência foram distintas em diferentes momentos. No Brasil, apesar da gestão pública das ESP dispor de legislação partilhada interfederativamente, sua operacionalização por autoridades sanitárias apresenta distintas capacidades de ação.27 Estudo sobre o RSI corroboram com os nossos achados. Estados e municípios apresentam maior capacidade para detectar, avaliar e notificar do que investigar, intervir e se comunicar. Além disso, têm déficits em atividades organizacionais, na contratação e treinamento de pessoal.27 Municípios de pequeno porte têm maior dificuldade em garantir respostas, exigindo para implementar medidas, o apoio dos entes estadual e federal.

A comunicação de risco suscitou a necessidade de alternativas políticas e atuou em dois eixos: um direcionado à população e outro aos profissionais de saúde. Investiu-se no crescimento logístico da comunicação e promoção da transparência nas ações adotadas. Um entrevistado destacou o papel da imprensa para manter a população engajada, minimizando o ruído dos mitos e rumores. Lidar com a comunicação foi tão essencial quanto instituir diretrizes assistenciais. Embora a disseminação de rumores e de informação errôneas integrem a história da saúde mundial, a comunicação em tempo real e a disseminação via internet, amplificou as mudanças no comportamento social.28 Estudo recente mostrou o crescente interesse popular por temas relacionados à saúde na internet e em redes sociais e ressaltou o seu valor na redução de disseminação de informações erradas.29 A difusão de conteúdos desafia as autoridades na adoção de medidas para combater notícias falsas, teorias da conspiração, curas mágicas e situações que aumentam o medo, limitam os cuidados efetivos e ameacem à vida humana.

Os entrevistados relataram experiências com dilemas individuais e familiares relacionados a gestações em curso e ao projeto de procriação interrompido na ESP. Muitas pessoas procuravam a SES, por medo e apreensão, para saber sobre os riscos envolvidos na reprodução e na gestação. Igualmente, estudos prévios apontaram os dilemas das mães de crianças com microcefalia ou refletiram sobre sofrimentos, medos, riscos e estigmatizações relacionados a ESP e a divulgação de notícias.21,24

Tomada de Decisão

A TD teve como principal foco as ações assistenciais e de vigilância pela transcendência do problema. Em toda FP públicas, particularmente em ESP, a TD caminha paralelo as demais etapas do ciclo da política. Em um período curto ocorre a MA, a FP, as decisões são tomadas e as ações implementadas, com retroalimentações dinâmicas. O curso de ação adotado, segundo os entrevistados, apontou para a necessidade de gerir investimentos, constituir aporte financeiro para o funcionamento adequado das ações assistenciais e de vigilância, e distinguir as competências assistenciais das científicas.

A TD foi caracterizada pelo Ato do Executivo estadual que usou a lei para acelerar a administração pública, na conjuntura de calamidade, garantir o financiamento e a utilização dos recursos. Os atos ordinários, como portarias e notas técnicas, cumpriram a função mais célere de regular as notificações compulsórias, formação de comitês, fluxo de informação, coleta laboratorial entre outros.5,7,26 As alternativas para a FP são medidas administrativas que legitimam e formalizam as escolhas,25 estando sujeita à interpretação dos implementadores, e não somente ao avanço acrítico10 A atuação de quem decide é citada por autores como limitado por regras institucionais e que requer a mobilização de outras instâncias para alcançar os objetivos propostos.10,22

O alinhamento entre o planejamento e as ações executadas foi favorecido pelo trabalho multidisciplinar no COES, criando um ambiente promissor à implantação das medidas e a viabilização financeira. Estudo sinaliza que, conhecimento e evidências científicas; ideias e interesses; e capacidade e recursos22 propiciam um ambiente para a TD. A efetivação da gestão da pesquisa, com contrapartida local e investimentos nacional e internacional, foi uma das primeiras ações.7 Promessas sem financiamento representa intenções não cumpridas.18,22

Na TD foi essencial a definição de espaços físico e virtual e, meios oficial e extraoficial de comunicação pública, para estabelecer fluxo com a imprensa e gestão de rumores.28 Contudo, a não existência de plano de comunicação revelou lacunas culturais que dificulta a integração desse tema com o trabalho normativo das respostas as ESP.

Nessa ESP, a vigilância liderou o planejamento, construção de estratégias, estruturação e integração dos serviços, o que pode ter relação com a formação em capacidades básicas de vigilância e a experiência anterior.27 A intensidade da resposta da assistência ocorreu após a vigilância, talvez pela natureza estrutural requerida.

Com a expansão do número de casos de microcefalia no interior, priorizou-se os investimentos na descentralização da rede assistencial e de vigilância. Um dos entrevistados destacou o descompasso entre a descentralização da vigilância e da assistência. Apesar dos investimentos, apontou-se dificuldade em garantir serviços especializados em locais distantes da capital, discrepância entre a oferta e demanda para serviços na rede pública, e obstáculos para contratualizar serviços privados baseado em valores pagos pelo SUS. Em consequência, os entrevistados apontaram as viagens das crianças a outros municípios, em consonância com o relatado por pesquisa em Sergipe.21 Para a implementação de políticas complexas, como a ESP da microcefalia, é requerida dos stakeholders ações dialógicas para ampliar as chances de atingir os objetivos da resposta.22

As pandemias têm exposto o subfinanciamento do sistema de saúde no mundo. Enquanto países desenvolvidos com cobertura universal dos serviços gastam em média 8% do Produto Interno Bruto (PIB) em saúde, no Brasil correspondem a 3,9%.30 Na ESP se evidenciou escassa disponibilidade de leitos hospitalares, instalações de terapia intensiva, diagnósticas e de reabilitação enquanto, a contratação do setor privado, nem sempre foi possível diante dos obstáculos colocados pelo setor.

Entre as limitações do modelo do ciclo político adotado neste estudo destaca-se a não ocorrência de um mecanismo operativo sequencial perfeito e a não identificação dos momentos de reformulação, mas apesar disto, suas fases dinâmicas, sucessivas e interligadas agregaram valor na compreensão do contexto organizacional da ESP da microcefalia. Para minimizar esse limite além das entrevistas se consultou documentos institucionais como forma de validar o que foi relatado.

A semelhança de outras políticas, a ESP da microcefalia para integrar a agenda governamental seguiu um curso conflitivo, no qual se fez necessário a formulação de alternativas e TD circunscritas. Para a MA ressalta a identificação de problemas bem definidos. Na FP buscou-se parâmetros técnico-científico e foram incorporadas no planejamento questões críticas como elaboração de normativas, estruturação dos serviços, pesquisa e mídia. A experiência das equipes, junto com a pressão social e midiática favoreceu a rápida TD e propiciou investimentos, especialmente para a estrutura dos serviços e realização de pesquisa. O modelo vigente no sistema de saúde estadual foi reorganizado e redimensionado para responder ao evento em questão.

A diversidade de fatores intervenientes na ESP da microcefalia contribuiu para a compreensão da evolução dos espectros administrativo, técnico, científico, estrutural, normativo, financeiro e comunicação de risco. O modelo do ciclo político mostrou-se pertinente para identificação dos problemas, alternativas, soluções e a tomada de decisão, além de ser didático para o entendimento do encadeamento das fases que puderam ser analisadas em separado e articuladas.

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Contribuição dos autores

Aguiar LR, Frias PG, Quinino LRM, Silva MRF e Miranda Filho DB: concepção do projeto, análise e interpretação dos dados, redação e revisão crítica do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.

Recebido em 8 de Abril de 2024
Versão final apresentada em 6 de Setembro de 2024
Aprovado em 9 de Setembro de 2024

Editora Associada: Ana Albuquerque


 


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