RESUMO
OBJETIVOS: analisar os efeitos da pandemia da Covid-19 na mortalidade materna no Brasil em 2021.
MÉTODOS: realizou-se estudo exploratório com descrição do excesso de mortalidade materna no Brasil para 2021, considerando diferentes cenários: (i) tendência linear 2015-2019; (ii) número de óbitos observados em 2020; (iii) tendência linear 2015-2019 corrigida para excesso de mortalidade geral; (iv) número de óbitos observados em 2020 corrigido pelo excesso de mortalidade geral.
RESULTADOS: em comparação com a tendência dos cinco anos anteriores, o ano de 2021 apresentou excesso de mortalidade de 39% (n=3030). A razãode mortalidade materna para 2021 ultrapassou a meta dos ODS para este indicador, atingindo um nível superior a 110 mortes maternas por cem mil nascidos vivos. Em qualquer cenário, houve excesso de mortalidade materna em 2021 superior à mortalidade geral em 2020. A análise estratificada por região demonstra heterogeneidade subnacional.
CONCLUSÃO: a pandemia da Covid-19 teve impacto considerável na saúde materna, não só por levar ao aumento de mortes, mas também por aumentar a iniquidade em saúde. O ano de 2021 foi o período mais crítico da pandemia em termos de mortalidade. Barreiras ao acesso e uso de serviços de saúde são um desafio para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável relacionados à saúde.
Palavras-chave:
Mortalidade materna, Covid-19, Excesso de mortalidade, Determinantes sociais da saúde
ABSTRACT
OBJECTIVES: to describe the effects of the Covid-19 pandemic on maternal mortality in Brazil in 2021.
METHODS: it is an exploratory study with description of the excess maternal mortality in Brazil for 2021, considering different scenarios: (i) 2015-2019 linear trend; (ii) 2020 observed number of deaths; (iii) 2015-2019 linear trend corrected for general mortality excess; (iv) 2020 observed number of deaths corrected for general mortality excess.
RESULTS: compared to the trend of the previous five years, the year 2021 showed an excess mortality of 39% (n=3030). The maternal mortality ratio for 2021 drastically exceeded the SDG target for this indicator, reaching approximately 110 maternal deaths per 100,000 live births. In any scenario described, there will be excess maternal mortality in 2021 higher than general mortality and higher than level presented in 2020. Analysis stratified by region demonstrates subnational heterogeneity.
CONCLUSION: Covid-19 pandemic had a considerable impact on maternal health, not only by leading to increased deaths but also by increasing social health inequality. The year 2021 was the most critical period of the pandemic regarding the magnitude of mortality. Barriers to accessing and using essential health services are challenging to achieving health-related Sustainable Development Goals.
Keywords:
Maternal mortality, Covid-19, Excess mortality, Social determinants of health
IntroduçãoEm 2000, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu a redução da mortalidade materna como o "Objetivo do Milénio" (ODM). Após o término do ciclo dos ODM em 2015, constatou-se que o desempenho dos países não foi satisfatório, o que levou a instituição a renegociá-lo para a ‘Agenda 2030', que, no ODS 3.1 (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável) estabeleceu uma intenção nem tão ambicioso: reduzi-lo, globalmente, para menos de 70/100.000 nascidos vivos.
1O Brasil não conseguiu atingir a meta proposta pelos ODM. Mesmo assim, em 2017, estabeleceu uma meta ainda mais ambiciosa, oferecendo reduzir a mortalidade materna para 30/100 mil nascidos vivos. Motta e Moreira
2 mostraram que, entre 2001 e 2018, a razão de mortalidade materna (RMM) nacional nunca ficou abaixo de 50,6/100 mil nascidos vivos (2001), com pico de 64,5/100 mil nascidos vivos em 2009. Ao final da série histórica, a. A magnitude da RMM foi de 56,2/100 mil nascidos vivos. Além disso, o contexto é de desigualdade social: das 450 regiões de saúde (CIR) do país, cerca de 70% tinham RMM superior a 30/100 mil nascidos vivos, enquanto 35,3% superaram a meta de 70/100 mil nascidos vivos.
Este é o cenário nacional antes da Covid-19. A partir daí, um dos efeitos mais graves da pandemia foi o agravamento dos problemas relacionados à mortalidade materna, tanto em suas determinações sociais quanto na atuação do Sistema Único de Saúde (SUS). Um dos principais indicadores disso foi o excesso de mortalidade materna. O excesso de mortalidade é normalmente calculado comparando o número real de mortes observadas durante um período específico com o número esperado de mortes em condições normais ou de referência. É frequentemente utilizado em saúde pública e epidemiologia para avaliar o impacto de vários fatores na mortalidade, tais como surtos de doenças, desastres naturais ou outros eventos. Há evidências referentes a 2020.
3 Os autores utilizaram dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) para óbitos gerais e maternos e do Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe) para estimar óbitos femininos e maternos por Covid-19. O excesso de mortalidade materna em 2020 no Brasil foi de 1,40 (IC95%= 1,35-1,46), ou seja, uma mortalidade 40% superior ao esperado para aquele ano. Mesmo considerando o excesso de mortalidade por Covid-19 para a população feminina em idade reprodutiva, a mortalidade excedeu o número esperado (MMR= 1,14; IC95%= 1,13-1,15).
3O diagnóstico da mortalidade materna no Brasil em 2020 foi uma base essencial para melhor compreender o efeito da pandemia neste indicador crítico. Análises da Covid-19 no Brasil também mostram que 2021 foi muito mais desafiador em todo o mundo. Recentemente, a recente carta de Michels e Iser
4 trouxe uma atualização essencial sobre o panorama da mortalidade materna por Covid-19 no Brasil, lançada inicialmente por Souza e Amorim.
5 Oferecemos aqui comentários adicionais com cálculos de excesso de mortalidade materna em diferentes cenários de estimativas de mortalidade materna no Brasil em 2021. Os dados de mortalidade de 2021 estão atualmente consolidados, portanto a análise é oportuna. Nesse contexto, este artigo tem como objetivo analisar os efeitos da pandemia de Covid-19 sobre a mortalidade materna no Brasil no ano de 2021.
MétodosPor meio de um estudo exploratório, descrevemos o excesso de mortalidade materna no Brasil para 2021, considerando diferentes cenários. Para isso, utilizamos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) dos óbitos maternos entre 2015 e 2021. Utilizamos dados do Sistema de Informações da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe) para avaliar os óbitos maternos por Covid-19 nos anos de 2020 e 2021 A partir destas bases de dados, poderíamos contar as mortes maternas e as mortes em idade fértil para estimar o excesso de mortalidade materna no país.
A definição de morte materna (critérios de inclusão) inclui toda morte de uma mulher grávida ou de uma nova mãe durante a gravidez, o parto ou no período pós-parto (normalmente dentro de 42 dias após o parto), como resultado de complicações relacionadas à gravidez ou ao parto. Como grupo controle, para verificar o excesso de mortes maternas em relação à mortalidade geral, considerou-se a mortalidade de mulheres em idade fértil (15 a 49 anos). O excesso de mortalidade foi calculado considerando a discrepância entre os óbitos observados e os esperados para 2021.
Anteriormente,
3 verificamos o excesso de mortalidade materna em 2020 e comparamos com o excesso de mortalidade geral de mulheres em idade fértil para confirmar se diferia do excesso de mortalidade geral. Repetimos esta análise. Contudo, considerando que 2021 podemos comparar com cenários em que a pandemia já estava presente, calculamos o número de mortes maternas esperadas para 2021 com base em alguns cenários contrafactuais.
Primeiramente, verificamos o excesso de mortalidade materna em 2021, considerando a tendência do indicador de 2015 a 2019. Realizamos uma regressão linear simples para obter o coeficiente de incremento e estimar o número esperado de óbitos para 2021 (i). Num segundo cenário, consideramos a mortalidade materna em 2020 como um cenário contrafactual (quando a pandemia de Covid-19 já tinha sido declarada) (ii). Em terceiro lugar, corrigimos o número previsto para 2021 com excesso de mortalidade geral em mulheres em idade fértil em 2021, considerando também os cinco anos 2015-2019 (iii). Como quarto cenário, corrigimos o valor da mortalidade materna de 2020 para o excesso de mortalidade geral em mulheres em idade fértil, considerando também 2020 como um contrafactual (iv). Finalmente, comparamos o excesso de mortalidade materna versus o excesso de mortalidade global em mulheres em idade fértil, considerando os cenários (i) e (iii). A descrição dos cálculos pode ser encontrada na Tabela 1.
Realizamos a análise para o Brasil como um todo e para as macrorregiões. A análise estatística foi realizada por meio do programa R, versão 4.1.2 (Viena, Áustria, 2021). Para todos os cenários avaliados, estimamos o excesso de mortalidade materna em 2021 e seu intervalo de confiança de 95% usando um modelo de Poisson com variância robusta. Consideramos o modelo de regressão de Poisson com estimativa de variância robusta melhor em comparação com um modelo de regressão de Poisson padrão porque leva em conta o potencial violação dos pressupostos subjacentes ao modelo de regressão de Poisson padrão, inclusive quando há suspeita de heterocedasticidade, especificação incorreta do modelo, presença de outliers ou quando se trata de dados agrupados ou correlacionados. Ele fornece estimativas de parâmetros e erros padrão mais confiáveis, que são cruciais para inferências estatísticas válidas e testes de hipóteses em análises de regressão. É uma ferramenta valiosa para resolver algumas das limitações do modelo de regressão de Poisson padrão.
ResultadosO ano de 2021 foi o período mais crítico da pandemia em termos da magnitude da mortalidade. Em comparação com a tendência dos cinco anos anteriores, o ano de 2020 apresentou um excesso de mortalidade de 19%. Considerando a mesma tendência, o excesso global de mortalidade em 2021 foi de 39%. Em relação à mortalidade materna, houve a mesma tendência. Enquanto 2020 apresentou excesso de mortalidade materna de aproximadamente 40%, elevando o volume de óbitos ao patamar de quase 2 mil óbitos naquele ano. Em 2021 houve uma explosão no número de casos, que atingiu o patamar de 3 mil mortes de gestantes e puérperas. Consideramos oportuno mencionar que, em 2020, as mortes por covid-19 representaram 19% das mortes maternas. Em 2021, a Covid-19 foi responsável por 60% das mortes maternas (Figura 1a/1b). Além disso, destacamos que a distribuição das mortes maternas ao longo das semanas epidemiológicas de 2021 seguiu a mesma tendência no total de mortes por Covid-19. Considerando que a tendência da mortalidade materna seguiu a descrita para a mortalidade geral, podemos assumir que a pandemia penalizou mais as mulheres grávidas e puérperas do que a população em geral (Figura 1c). Ao final, a taxa de mortalidade materna para 2021 excedeu drasticamente a meta do ODS para este indicador (70 mortes maternas por 100.000 nascidos vivos), atingindo um nível de aproximadamente 110 mortes maternas por 100.000 nascidos vivos, nível semelhante ao do Brasil apresentado em os anos 1980.
Descrevemos os cenários na Tabela 1. Em qualquer cenário descrito, haverá excesso de mortalidade materna em 2021 superior à mortalidade geral, e superior ao nível apresentado em 2020. No pior cenário, que é a comparação das mortes maternas em 2021 com o que era esperado, com base na tendência entre 2015 e 2019 (Cenário #1), descobrimos que havia mais que o dobro de mortes esperadas (Excesso = 2,11, IC95%= 1,72 – 2,50). Encontramos uma relação semelhante quando calculamos o excesso com base na mortalidade de 2020 (Cenário #2): houve um excesso de mortalidade de 57% (IC 95% 28 - 86%) quando comparado a 2020. Há um excesso mesmo quando o número das mortes maternas é corrigida pelo excesso de mortalidade geral em 2021, em comparação com o período de cinco anos 2015-19 (SMR = 1,52; IC95%= 1,24 – 1,80, Cenário #3) ou 2020 (SMR = 1,35, IC95%= 1,10 – 1.59, Cenário #4).
Por fim, o contraste entre o excesso de mortes maternas e de mortes gerais (Cenários #5 e #6) confirma a hipótese de que as mulheres grávidas e puérperas foram mais penalizadas pela pandemia do que a população em geral. Utilizando a tendência 2015-2019 como contrafactual (Cenário #5), o excesso de mortalidade materna foi 51,8% superior ao excesso de mortalidade geral. Utilizando 2020 como contrafactual (2020), o excesso de mortalidade materna foi 83,7% superior ao excesso de mortalidade geral. A comparação com o excesso de mortalidade geral mostra que as grávidas e puérperas foram mais penalizadas pela Covid-19 do que a população em geral, e a diferença aumentou à medida que era pior a pandemia (2020
vs. 2021). Em todos eles, as estimativas são estatisticamente significativas. Além disso, ressaltamos que nem todas as mortes foram causadas diretamente pela Covid-19. No entanto, a pandemia limitou gravemente o acesso das mulheres a cuidados pré-natais, parto e puerpério adequados.
A análise estratificada por região demonstra heterogeneidade subnacional (Tabela 2). Para todas as regiões houve excesso de mortalidade materna independente do cenário, e em todas elas o excesso foi estatisticamente significativo. Contudo, para as regiões Norte, Sul, Sudeste e Brasil como um todo, o cenário cujo contrafactual foi a mortalidade materna observada em 2020 foi pior do que o cenário cujo contrafactual foi a tendência quinquenal 2015-2019 corrigida pelo excesso de mortalidade geral. Para as regiões Nordeste e Centro-Oeste, a evidência foi oposta. Ressaltamos também que a comparação entre o excesso de mortalidade materna e a mortalidade geral também não apresentou a mesma magnitude entre as regiões.
DiscussãoO excesso de mortalidade materna durante a pandemia da Covid-19 tem uma multicausalidade intersetorial que articula, pelo menos, fatores biológicos, funcionamento e estrutura do SUS, políticas públicas/desigualdades e crise institucional. Não enfocando os fatores biológicos críticos, este artigo concentra-se nos aspectos sociais e políticos. Nossa análise converge com o campo dos determinantes sociais da saúde.
6 Para isso, assumimos como foco inicial a forma como o governo federal lidou com a Covid-19, marcada pelo negacionismo; a demora na compra de vacinas; notícias falsas promovendo "medicamentos" sem qualquer eficácia cientificamente documentada; a não adoção de política de distanciamento social e uso de máscaras (medidas não farmacológicas); por atacar todos que defendiam ações de enfrentamento à pandemia; e, sobretudo, pela constante mudança no comando do Ministério da Saúde, incluindo a nomeação de um Ministro que admitiu não saber nada sobre o SUS.
7,8A pandemia de coronavírus trouxe à luz as desigualdades em saúde nos países, especialmente no que diz respeito ao acesso aos serviços de saúde. Desde o início da pandemia da Covid-19, o Brasil monitora a mortalidade materna.
9 Essa preocupação foi crescendo à medida que a Covid-19 passou a apresentar quadros que escapavam à regra de uma síndrome respiratória clássica, mas como quadro sistêmico. Além do risco devido a essa plausibilidade biológica, a mortalidade materna é fortemente influenciada pelo acesso e disponibilidade de recursos assistenciais para o pré-natal, parto e puerpério. O contexto da pandemia cria barreiras adicionais à assistência pré-natal e ao parto, o que impacta diretamente a mortalidade materna.
A mortalidade materna é afetada notavelmente pela qualidade da assistência à maternidade, que envolve acesso, disponibilidade de recursos necessários e práticas aceitáveis para o pré-natal, o parto e o puerpério.
4 Nos países onde há acesso inadequado aos serviços de saúde durante a gravidez e o parto, a mortalidade materna é mais elevada.
10 Esse cenário fica mais evidente quando o sistema de saúde está sobrecarregado, como ocorreu nos dois primeiros anos da pandemia. O Brasil teve dificuldade em promover o pré-natal para gestantes. Além disso, presenciaram barreiras de acesso ao parto e enfrentaram baixa oferta de leitos de terapia intensiva quando havia demanda. Agora o sistema de saúde brasileiro precisará voltar sua atenção para a recuperação de aspectos de saúde que foram negligenciados nos últimos três anos.
11Ressaltamos que a atuação do Executivo levou ao rompimento com o federalismo cooperativo que caracteriza a gestão do SUS. As políticas de saúde foram fortemente pressionadas pelos Poderes Judiciário e Legislativo, o que produziu ameaças do Presidente da República à estabilidade democrática do país. Consequentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou Estados e Municípios a atuarem de forma autônoma no enfrentamento da pandemia, obrigando o Executivo a ter planejamento nacional mínimo para vacinação.
12Consequentemente, não houve gestão tripartida, mas sim coordenação federal. O SUS, à medida que os casos de Covid-19 o pressionavam, teve que deslocar recursos, equipamentos e profissionais (muitos deles adoecendo e morrendo no combate ao vírus) para evitar que o cenário se agravasse.
8 Esse conjunto de relações trágicas gerou mais de 700 mil mortes causadas pela Covid-19 no Brasil.
13 Problemas anteriores à pandemia, como a manutenção de uma rede de assistência ao parto e pós-parto, e o acesso ao pré-natal, foram ainda menos focados pelos gestores, multiplicando-se. Esse cenário ajuda a explicar o retorno do Brasil a um cenário crítico em relação à mortalidade materna.
14Embora a análise trate do contexto de um determinado país, enfatizamos que há evidências suficientes de que durante a pandemia, o Brasil foi o país que mais aumentou a mortalidade materna.
15 Consideramos oportuno mencionar que, em 2018, mesmo quando a razão de mortalidade materna já apresentava sinais de retração no Brasil,
16 35% das regiões de saúde brasileiras apresentavam níveis acima de 70 por 100 mil nascidos vivos (NV). Além disso, nos últimos 20 anos, a redução foi substancial entre as mulheres entre os 30 e os 49 anos. Contudo, na faixa etária de 10 a 29 anos não houve alteração significativa. De facto, iniciativas políticas nacionais, como a divulgação dos Comités de Mortalidade Materna, do PHPN, do PNAISM e da "Rede Cegonha" contribuíram para melhorias nas gestações tardias; no entanto, foram ineficazes na prevenção de mortes entre mães jovens.
2 Nesse sentido, é importante reforçar a importância da retomada das políticas de planejamento reprodutivo na prevenção de todas as mortes maternas evitáveis, indo além dos cuidados maternos.
Além disso, em diferentes cenários de ajuste do número esperado de mortes maternas para 2021, o Brasil apresenta excesso de mortes maternas, mesmo com correção para o excesso de mortalidade geral. Na pior das hipóteses, o Brasil tem o dobro de mortes maternas do que o esperado, colocando o país novamente na zona descontrolada deste evento. Ainda na análise subnacional, merece destaque a região Sudeste, com excesso de mortalidade materna 219,8% superior ao excesso de mortalidade geral. Podemos atribuir essa diferença inesperada ao fato de o Sudeste apresentar sistematicamente a mortalidade materna em níveis mais baixos que o resto do país. Com números baixos, pequenas variações nos números absolutos têm um impacto relativo significativo. Além disso, destacamos a qualidade dos Comitês de Investigação de Morte Materna na região Sudeste, o que torna o sistema mais sensível à detecção e encerramento oportuno dos casos.
Observamos mortes maternas causadas pela Covid-19 devido às diferentes suscetibilidades das gestantes e puérperas ao ataque do vírus. Por outro lado, reconhecemos que a dinâmica da pandemia alterou os cuidados obstétricos, penalizando as mulheres em idade fértil ao restringir o acesso a cuidados pré-natais, de parto e puerperais de qualidade. Em suma, a saúde materna, considerada prioridade das políticas de saúde brasileiras há pelo menos 30 anos, exigirá atenção especial, sob o risco de sofrer retrocessos que comprometam todos os avanços alcançados pelo Brasil nessa direção.
O Estudo de Coorte Multinacional INTERCOVID
17 mostrou que a Covid-19 na gravidez foi associada a aumentos consistentes e substanciais na morbidade e mortalidade materna grave e complicações neonatais em mulheres grávidas com e sem diagnóstico de Covid-19. Este resultado é corroborado por uma série de casos
18 e uma meta-análise,
19 que identificou que as barreiras ao acesso aos cuidados de saúde, as diferenças nas medidas de contenção da pandemia no país e a elevada prevalência de fatores de risco concomitantes para a doença grave da Covid-19 podem desempenhar um papel na disparidade observada em comparação com relatórios mundiais sobre resultados maternos.
Esta não é uma situação única, mas uma tendência global. Os resultados maternos e fetais globais pioraram durante a pandemia de Covid-19, com um aumento nas mortes maternas e nados-mortos. As evidências atuais sugerem que a mortalidade materna ocorreu principalmente entre mulheres com comorbidades anteriores.
20,21 Portanto, está parcialmente relacionado ao fato de que mulheres grávidas com comorbidades, incluindo diabetes mellitus, hipertensão e doenças cardiovasculares, apresentavam risco aumentado de resultados graves relacionados à COVID-19, morbidades maternas e resultados adversos no parto.
22 Ainda assim, alguns resultados mostram uma disparidade considerável entre ambientes com muitos e poucos recursos.
23Um estudo colaborativo multinacional da América Latina descreve as características clínicas das mortes maternas associadas à COVID-19. Indica que as gestantes na América Latina enfrentaram barreiras no acesso aos serviços de terapia intensiva quando necessário, e foi determinante para o agravamento da mortalidade materna na região.
24 No Brasil, desde o início da pandemia, a demora na adoção de medidas de saúde pública necessárias ao controle da epidemia agravou a propagação da doença, resultando em diversas mortes evitáveis.
25,26Embora a crise institucional, o colapso do federalismo e a falta de coordenação nacional no SUS tenham sido superados durante o primeiro semestre de 2023, os efeitos no sistema de saúde tendem a persistir por algum tempo. A pressão das filas e os atrasos de não comparecimento nos serviços agravam os casos. Há necessidade de adaptá-los às novas exigências ligadas, por exemplo, à reabilitação dos sobreviventes e à Covid longa.
No que diz respeito às mortes de grávidas e puérperas, se esta persistência se prolongar, os problemas que contribuem para o excesso de mortalidade materna tendem a perdurar ou mesmo a agravar-se. Neste cenário, o controle da gravidade da Covid-19 por meio de vacinas possivelmente reduzirá a mortalidade materna, mas com baixo impacto devido à persistência de elementos sociais e políticos. Nesse sentido, à medida que os esforços e a alocação de recursos para prevenção e tratamento da Covid-19 continuam, os serviços essenciais de saúde devem ser mantidos, especialmente em países de baixa e média renda, como o Brasil.
27Nossa análise tem limitações. Os dados de mortalidade representam os dados disponíveis no momento do estudo. Os dados, porém, podem sofrer alterações devido a atualizações nos próximos meses. Outra limitação diz respeito ao baixo nível de testagem no Brasil. Impede-nos saber com precisão o número de gestantes e puérperas infectadas com Covid-19. No entanto, esta informação não compromete o cálculo estimado que utilizamos, uma vez que as razões de probabilidade de mortalidade são precisas quando a base populacional é desconhecida. Sabemos também que existe algum desequilíbrio entre a faixa etária em que se concentra mais gestantes e o grupo com maior prevalência de comorbidades. Contudo, realizamos nossas análises desconsiderando a ordem das gestações e acreditamos que isso minimizou um potencial viés de seleção.
No final, a pandemia da Covid-19 teve um impacto considerável na saúde materna, não só ao conduzir ao aumento de mortes, mas também ao aumentar a desigualdade social na saúde.
28 As barreiras ao acesso e utilização de serviços de saúde essenciais constituem um desafio para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável relacionados com a saúde. A diminuição da utilização dos cuidados de saúde durante a pandemia de Covid-19 ampliou os impactos nocivos da pandemia nos resultados de saúde e ameaça reverter os ganhos na redução da mortalidade materna e infantil. Os resultados de nossa análise são suficientes para recomendar que a preparação do SUS inclua a vigilância e os setores mais diretamente ligados às medidas de enfrentamento e aqueles que lidarão com as repercussões da emergência na utilização do SUS. A partir da experiência de 2020-2022, o cuidado à gravidez, ao parto e ao puerpério é um dos que mais precisam ser preparados.
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Contribuição dos autores: Guimarães RM e Moreira MR: concepção, análise de dados, revisão crítica e redação final do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.
Recebido em 7 de Março de 2023
Versão final em 29 de Dezembro de 2023
Aprovado em 2 de Fevereiro de 2024
Editora Associada: Leila Katz