RESUMO
OBJETIVOS: determinar a associação entre o aleitamento materno e fatores associados ao desenvolvimento neuropsicomotor de crianças em extrema vulnerabilidade social.
MÉTODOS: estudo transversal conduzido em uma comunidade em vulnerabilidade social, envolvendo crianças de sete a 72 meses, e suas mães biológicas. Variáveis sociodemográficas, antropométricas e de amamentação foram coletadas por meio de questionários e o desenvolvimento neuropsicomotor foi avaliado por meio do teste de triagem Denver II. Razões de prevalência ajustadas foram calculadas usando modelos multivariáveis, orientados por grafos acíclicos direcionados.
RESULTADOS: dos 654 domicílios visitados, foram incluídos 224 binômios mãe-filho, com média de idade de 28,8 (18,7) meses, em que 143 (63,8%) crianças apresentavam suspeita de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor e 64 (28,6%) haviam realizado aleitamento materno exclusivo até o sexto mês. Aleitamento materno exclusivo por 6 meses não se associou ao desenvolvimento neuropsicomotor (RP= 0,91; IC95%=0,83-1,00). Houve associação significativa observada apenas com anos de escolaridade materna formal (RP=0,97; IC95%=0,96-0,99). Análise de mediação não mostrou nenhum mediador entre escolaridade materna e desenvolvimento neuropsicomotor.
CONCLUSÕES: destaca-se a alta prevalência de crianças com suspeita de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. A escolaridade materna foi a única variável associada à esta condição.
Palavras-chave:
Aleitamento materno, Desenvolvimento infantil, Escolaridade, Pobreza infantil
ABSTRACT
OBJECTIVE: to determine the association between breastfeeding and associated factors with neuropsychomotor development of children living in social vulnerability.
METHODS: cross-sectional study within a socially vulnerable community. Households with children aged seven to 72 months, and their biological mothers were included. Sociodemographic, anthropometric and breastfeeding variables were collected using questionnaires, and neuropsychomotor development was assessed using the Denver II screening test. Adjusted prevalence ratios were calculated using multivariable models, oriented by directed acyclic graphs.
RESULTS: from the 654 households visited, 224 mother-child binomials were included. The mean age of children was 28 (18.7) months, and 143 (63.8%) of them presented suspected delay in neuropsychomotor development. Mothers presented a median of 8 years of formal schooling and 64 (28.6%) had performed exclusive breastfeeding for 6 months. Exclusive breastfeeding was not associated with neuropsychomotor development (PR=0.92; CI95%=0.84-1.00). A significant association was observed only with years of formal maternal education (PR=0.98; CI95%=0.97-0.99). A mediation analysis did not show any clear mediator between maternal education and neuropsychomotor development.
CONCLUSIONS: children living in social vulnerability presented a high prevalence of suspected delay in neuropsychomotor development. Maternal education was the only variable associated with such condition.
Keywords:
Breastfeeding, Child development, Educational status, Child poverty
IntroduçãoOs primeiros 1.000 dias de vida, período que se estende aproximadamente entre a concepção e o segundo ano de vida, são considerados um período de oportunidade única, pois estabelecem as bases para uma saúde neurológica ideal, crescimento e desenvolvimento ao longo da vida.
1 Por esses motivos, esse período também pode ser considerado de maior vulnerabilidade, visto que, na presença de um ambiente favorável, de um cuidador principal e de uma alimentação saudável, o sistema nervoso central (SNC) se desenvolve normalmente.
2 Embora o neurodesenvolvimento continue ao longo da vida de uma pessoa saudável, aos dois anos de idade, o SNC passa por intensa reestruturação, mas limitada a esse período, pois não ocorrerá nas fases posteriores da vida.
3O desenvolvimento da criança na primeira infância é influenciado por inúmeros fatores ligados aos aspectos maternos, que incluem a prática do tabagismo,
4 a escolaridade materna
5 e a alimentação inadequada, especificamente o aleitamento.
6 O tempo de aleitamento, exclusivo e complementar, no curto prazo, determina evolução verbal,
7 maior aptidão para atividades motoras,
8 e em longo prazo, afetam o desenvolvimento cognitivo, influenciando fortemente seu desempenho educacional.
9,10 Portanto, a Organização Mundial da Saúde recomenda que o aleitamento seja realizado exclusivamente até a criança completar seis meses de idade, contribuindo de forma mais significativa para o seu crescimento e bom desenvolvimento.
11 Os efeitos positivos do leite materno podem ser devidos ao seu perfil em ácidos graxos essenciais, que inclui o ácido docosahexaenóico e o ácido araquidônico, essenciais no desenvolvimento do SNC.
12Assim, um número crescente de estudos tem buscado avaliar o desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM); entretanto, fica claro que, principalmente na prática clínica, não há padronização dos instrumentos que devem ser utilizados para triagem do DNPM infantil. Assim, a Academia Americana de Pediatria publicou em 2006 os testes de triagem mais recomendados para uso na prática clínica, dentre os quais está o Denver II.
13 O teste de triagem Denver-II demonstra ser o teste multidimensional mais viável para mensurar o DNPM infantil e já foram validados em vários países ao redor do mundo, incluindo o Brasil.
14 Além disso, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de 2015
15 exigem novas pesquisas e intervenções para priorizar soluções para o desafio global do desenvolvimento infantil deficiente em países de baixa e média renda,
16 uma vez que a pobreza e as experiências de condições adversas da infância, como a escassez de recursos educacionais, cognitivos, econômicos ou de saúde, têm efeitos fisiológicos e epigenéticos de longo prazo no desenvolvimento e na cognição do cérebro.
17Apesar da presença de estudos com crianças em vulnerabilidade social, eles estão associados apenas à função cognitiva, e os estudos que avaliam o DNPM não abordam exclusivamente crianças em condições de extrema vulnerabilidade.
17,18 Portanto, o objetivo deste estudo foi determinar os fatores associados com o DNPM de crianças em extrema vulnerabilidade social.
MétodosTrata-se de um estudo transversal composto por amostra voluntária de binômios mãe-filho, realizado entre março e setembro de 2017. Foram incluídas crianças de sete a 72 meses e suas mães biológicas (≥ 16 anos), residentes em comunidades da 7ª região de Maceió - AL, Brasil. Esta região foi escolhida por possuir o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município (0,600 - 0,699) e por apresentar características de vulnerabilidade social conforme conceituado por Souza e Teixeira,
19 que entre outros fatores, apresentam moradia precária, acesso precário a ensino básico, elevada proporção de familiares inativos e consequente dependência econômica. A comunidade na qual nossa pesquisa foi desenvolvida continha 634 residências no momento da coleta de dados. Todas as famílias foram visitadas e o chefe da família foi questionado se alguma criança morava lá. Caso afirmativo, a mãe foi convidada a participar da pesquisa. Quando havia mais de uma criança no domicílio, foram coletados apenas os dados do filho mais novo. Por outro lado, quando não havia crianças dessa faixa etária em casa, a casa vizinha era visitada, até que todas as 634 residências da comunidade fossem concluídas. Caso a residência estivesse fechada, o domicílio era revisitado, até confirmação ou não da presença de crianças no domicílio. Para obter o perfil socioeconômico da família foi utilizado o Critério de Classificação Econômica Brasil,
20 e apenas os domicílios que estavam na classe econômica mais baixa (D-E) foram incluídos na pesquisa. Essa classificação estima que as pessoas desse estrato mais baixo tenham renda familiar média mensal de 708,19 reais (aproximadamente 125 dólares para todo o domicílio em 2021).
Foi calculada previamente, pelo método de Fleiss com correção de continuidade, a necessidade de 200 indivíduos, sendo 67 em aleitamento materno exclusivo (AME) por seis meses, e 133 sem AME por seis meses. Esse número foi obtido a partir de uma prevalência esperada de 80% de DNPM inadequado em populações semelhantes.
21 Supondo que o AME por seis meses seria um fator de proteção, levando essa prevalência para 60%, com razão de risco de 0,75, e assumindo que a prevalência de AME por seis meses na população brasileira gira em torno de 33%,
22 os resultados foram de um indivíduo com AME por seis meses para cada dois sem AME. Os cálculos foram realizados com auxílio do programa Epi Info v 7.2.2.2 (
Center for Disease Prevention and Contol, Atlanta, EUA) em seu módulo StatCalc.
Foram realizadas dois encontros para obtenção de dados. A primeira foi por meio de uma triagem para avaliar a adequação dos participantes aos critérios de inclusão. No segundo encontro foram aplicados todos os questionários propostos. A coleta de dados ocorreu por meio do preenchimento de um formulário padronizado e previamente testado. Idade (anos), sexo (feminino/masculino), institucionalização (quando a criança estava inserida em alguma instituição de ensino, creche ou escola), tabagismo (sim/não), alcoolismo (sim/não) e situação de amamentação da criança foram recolhidos. Perguntou-se às mães das crianças se elas já haviam sido amamentadas em algum momento de suas vidas. Às que responderam positivamente foi questionado se essa amamentação ocorria apenas na maternidade ou continuava em casa. Aquelas que responderam que era só na maternidade e que ao chegar em casa o leite materno não era mais oferecido, considerou-se que a criança não estava amamentando. Aos que permaneceram em casa foi perguntado até que idade a criança recebia aleitamento materno exclusivo, sem receber água/chá/leite ou qualquer outro alimento. Questionou-se também até que idade a criança foi amamentada de forma complementar, ou seja, após iniciar a introdução alimentar.
As crianças menores de dois anos foram pesadas em balança com capacidade para 15 kg e precisão de cinco gramas (Tecline
®, São Paulo, SP). Para maiores de dois anos e mães, a massa corporal foi aferida em balança (Tecline, São Paulo, SP) com capacidade para 150 kg e precisão de 100g, todas previamente calibradas. Um infantômetro (Alturaexata, Belo Horizonte, Minas Gerais) equipado com uma fita métrica inextensível medindo 105 cm de comprimento e precisão de 0,1 cm foi utilizado para medir o comprimento de crianças menores de dois anos. Para medir a estatura dos maiores de dois anos, foi utilizado um estadiômetro (Alturaexata, Belo Horizonte, Minas Gerais), equipado com fita métrica inextensível, com comprimento de 2 m e precisão de 0,1 cm. As crianças foram pesadas e medidas descalças e com roupas leves. Os índices de peso para idade, altura para idade, índice de massa corporal (IMC) para idade e as curvas de referência da Organização Mundial da Saúde, com auxílio do software AnthroPlus, foram utilizados para classificar o estado nutricional das crianças.
23 A altura foi classificada por meio do índice altura para idade, no qual crianças com altura para idade < -2 escore Z foram consideradas com baixa estatura. Para crianças de zero a cinco anos, foram consideradas baixo peso aquelas com peso para idade < -2 escore Z. Quanto à mãe, foram coletadas as seguintes variáveis: idade, idade em que engravidou, escolaridade (em anos de escolaridade formal), tabagismo e consumo de álcool.
Para avaliar o DNPM infantil foi utilizado o teste de triagem Denver II.
24 O teste é composto por 125 itens e avalia quatro áreas de função: Pessoal-social: conviver com pessoas e cuidar de necessidades pessoais; Habilidades motoras adaptativas finas: coordenação olho-mão, manipulação de pequenos objetos e resolução de problemas; Linguagem: audição, compreensão e uso da linguagem; Motora grossa: sentar, andar, pular e grande movimento muscular global. Além disso, cinco "itens de teste de comportamento para conclusão após a aplicação do teste" estão incluídos para ajudar o espectador a avaliar subjetivamente o comportamento geral da criança e obter um indicador aproximado de acordo com a habilidade da criança. Cada tarefa do teste pode ser classificada como "atrasada" caso a criança não consiga desenvolvê-la; "Alerta" quando a criança realiza a tarefa, mas não corretamente e "satisfatório" quando a criança realiza a tarefa corretamente.
O resultado do teste foi utilizado como medida em escala contínua,
25 esse método considera que se uma criança obtiver no máximo dois escores com "alerta" e nenhum com "atraso" é considerada como tendo DNPM normal. Por outro lado, caso obtenha duas ou mais pontuações de "alerta" e/ou uma ou mais pontuações do tipo "atraso", considera-se como "risco de atraso no DNPM". Neste estudo, as crianças classificadas com "risco de atraso no DNPM" foram consideradas com suspeita de atraso no DNPM. Todos os testes foram aplicados por um único profissional fisioterapeuta, com treinamento adequado e específico, a fim de evitar possíveis vieses de interpretação. O tempo médio de aplicação do teste foi de 20 minutos.
Como parte do projeto, todas as famílias receberam orientações sobre as etapas do desenvolvimento infantil e oficinas sobre formas de estimular o desenvolvimento infantil. Os resultados do estudo foram encaminhados à unidade básica de saúde do município e as famílias com suspeita de atraso no desenvolvimento foram orientadas a procurar a unidade básica de saúde.
Todas as análises foram realizadas utilizando o software JAMOVI (The Jamovi Project, v 4.2, Sidney, Austrália). Todas as variáveis categóricas são apresentadas como frequências e as variáveis contínuas como médias e desvios padrão. A associação entre as variáveis de interesse e o desfecho estudado foi estimada por meio das razões de prevalência (RP), obtidas por meio de regressão de Poisson com estimativa robusta de variâncias. Primeiramente, foram realizadas regressões univariáveis sucessivas. Posteriormente, foi construído um modelo multivariável orientado por um Gráfico Acíclico Dirigido (GAD) para identificar possíveis confundidores na relação entre o AME há seis meses (o preditor) e o DNPM (o desfecho), que incluía características da mãe (tabagismo, consumo de álcool, idade, escolaridade e gravidez na adolescência) e características da criança (institucionalização e idade) como variáveis de ajuste. Também foi construído um GAD de mediação entre escolaridade materna e DNPM. Foi considerado alfa igual a 5%.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas (CAAE: 60473216.4.0000.5013).
ResultadosForam visitados 634 domicílios e, em 224 deles, mães com filhos biológicos atenderam aos critérios de inclusão. Dos 410 domicílios que não apresentavam mães com filhos biológicos que atendessem aos critérios de inclusão, 32 estavam fechados no momento de todas as visitas, 135 não pertenciam à classe econômica mais baixa segundo o CCEB e 243 não possuíam filhos na faixa etária investigada. As crianças incluídas no estudo tinham média de idade de 28,8 com desvio padrão de 18,7 meses. A Tabela 1 apresenta as principais características socioeconômicas e antropométricas das mães e crianças incluídas, além do resultado do teste de triagem Denver II. Na avaliação do DNPM infantil, houve 143 (63,8%) crianças com suspeita de atraso no DNPM, segundo Denver II. Sessenta e quatro (28,6%) crianças avaliadas estavam em AME há seis meses. Em relação aos indicadores antropométricos, 24 (10,7%) crianças apresentavam baixa estatura e apenas oito (3,6%) apresentavam baixo peso. Vinte e seis (11,6%) mães tinham menos de 19 anos e 135 (60,3%) relataram ter menos de oito anos de escolaridade.
A análise de regressão univariável (Tabela 2) mostrou associação significativa entre escolaridade materna, baixo peso e AME há seis meses com suspeita de atraso no DNPM. A análise orientada pelo GAD (Figura 1), após ajustes para confundimento, indicou que a escolaridade materna permaneceu significativa na análise multivariada (RP= 0,98; IC95%=0,96-0,99;
p<0,01), enquanto o AME por seis meses não manteve significância estatística (RP= 0,91; IC95%=0,83-1,00;
p=0,06 (Tabela 2). Em modelo incluindo apenas possíveis mediadores entre escolaridade materna e DNPM (ou seja, AME, baixa estatura, baixo peso, tabagismo da mãe, uso de álcool materno e gravidez na adolescência, Figura 2), a escolaridade materna em anos permaneceu altamente significativa como determinante do DNPM infantil (RP=0,97; IC95%=0,95-0,98;
p<0,01).
DiscussãoEste estudo investigou crianças moradoras de favelas de Maceió, área de baixo IDH, e encontrou prevalência de 63,8% de suspeita de atraso no DNPM nessas crianças, segundo Denver II, sugerindo que a situação de vulnerabilidade social pode estar associada à déficit de DNPM infantil. Essa prevalência de suspeita de atraso no NPDM é superior às estimativas que indicam que 43% das crianças menores de cinco anos que vivem em países de baixa e média renda apresentariam algum risco de não atingirem todo o seu potencial físico, cognitivo, psicológico e socioemocional.
16 Além disso, constatou-se também que a suspeita de atraso no DNPM não esteve associada ao AME durante seis meses, na análise multivariável, em que o único determinante da suspeita de atraso no DNPM foi a baixa escolaridade materna.
Embora associação entre AME e suspeita de atraso no DNPM tenha sido observada apenas na análise univariável, outros estudos observaram efeito dose-resposta sobre a duração da amamentação. Em que, quanto maior o tempo de aleitamento, menor o risco de um teste de triagem Denver II com suspeita de atraso, fornecendo algumas evidências de que o AME prolongado melhora o desenvolvimento cognitivo das crianças.
26 No Brasil, os resultados de uma coorte prospectiva de nascimentos indicaram uma vantagem no impacto cognitivo significativo, associada à amamentação, em indivíduos adultos, aos 30 anos.
10 O estudo da relação entre aleitamento e inteligência/desenvolvimento mental das crianças está focado na duração desta prática, uma vez que depende do efeito dos ácidos graxos poliinsaturados resultantes da amamentação.
27 Contudo, é notável que a mudança na abordagem da amamentação em nosso estudo por meio do AME até o sexto mês de idade apresentou associação protetora limítrofe nas análises ajustadas e nas análises brutas.
As evidências mostram que as crianças das famílias mais pobres têm um desempenho ruim na maioria das medidas de DNPM infantil.
5 No entanto, a prevalência de suspeita de atraso no DNPM variou de 2,8% a 35,8% nos níveis socioeconômicos mais baixos de outros estudos que analisaram o DNPM infantil de crianças brasileiras.
16,18 Esses estudos, que não foram realizados especificamente em populações em situação de extrema vulnerabilidade social, mas contemplaram amostras com faixa etária semelhante, podem ter apresentado prevalência inferior à do presente estudo por investigarem uma amostra mais heterogênea quanto à condição socioeconômica.
16 Ressalta-se que, como a amostra do presente estudo é composta apenas por pessoas das camadas de menor renda, o AME deveria ser a única alternativa alimentar para algumas crianças menores de seis meses, uma vez que a compra de fórmulas infantis torna-se inacessível. Porém, o que observamos é que apenas 28,6% aderiram à recomendação da Organização Mundial da Saúde. Isso pode ter dificultado encontrar associação com a suspeita de atraso no DNPM.
Novas estimativas, baseadas em variáveis associadas ao desenvolvimento infantil, como o atraso no crescimento e a pobreza extrema, indicam que 250 milhões de crianças com menos de cinco anos de idade em países de baixo e médio rendimento correm o risco de não atingir o seu potencial de desenvolvimento.
16 Nesta perspectiva, entende-se que o nível socioeconômico da infância, caracterizado pela escolaridade, ocupação e renda dos pais, está associado a experiências precoces essenciais para o desenvolvimento cognitivo. Em nossa análise, a baixa escolaridade materna foi o único determinante da suspeita de atraso no DNPM. Essa associação já foi relatada por outros autores que identificaram os piores desempenhos nos domínios observados pelo Denver II em crianças de famílias mais pobres e filhos de mães com menor escolaridade.
5 Casale e Demond,
28 ao analisarem as implicações para a função cognitiva de recuperação de nanismo na primeira infância, descobriram que a educação materna teve um efeito significativo. Porém, ao incluir em seu modelo variáveis que representam o ambiente domiciliar e os dados do cuidador, a significância na associação não foi mantida, sugerindo que o efeito positivo da escolaridade da mãe sobre a função cognitiva opera por meio de algumas dessas outras variáveis.
A baixa escolaridade materna é uma variável utilizada para refletir o risco socioeconômico.
16 O modelo de sistemas que formam a base da nossa estrutura ao longo da vida inclui um ambiente propício para a família, a comunidade e, especialmente, para o cuidador, no qual está representado não apenas pela saúde física e mental da mãe, mas também pela educação materna.
16 A educação dos familiares, especificamente das mães, está relacionada com a melhor gestão dos custos familiares no cuidado dos filhos e nos serviços públicos à família, uma vez que a educação contribui significativamente para a melhoria da renda familiar e das condições de vida e saúde da população em geral.
29O presente estudo apresenta algumas limitações: primeiramente o viés de memória dos participantes durante a coleta de algumas variáveis como o período do AME pode comprometer a característica temporal da variável por se tratar de uma variável autorreferida que depende da memória dos participantes considerando que a amamentação geralmente ocorre em momentos de estresse e privação de sono, nos quais a memória de acontecimentos passados pode ser especialmente propensa a imprecisões. Em segundo lugar, o desenho transversal impede a atribuição de causalidade na associação entre variáveis. Quanto à utilização do teste Denver II utilizado em nosso estudo, ele não determina se a criança apresenta DNPM inadequado, mas indica a presença de risco de atraso no DNPM infantil ou suspeita de atraso no DNPM, conforme relatado. Além disso, esta ferramenta é uma medida muito grosseira do desenvolvimento infantil, que pode estar sujeita a erros de classificação, levando à redução do poder estatístico para detectar associações. Apesar das diversas críticas que a ferramenta Denver II tem recebido ao longo dos anos, em que a sua utilização é muitas vezes desencorajada devido à sua especificidade, apresenta dados fiáveis relativamente à sensibilidade (83%) e confiabilidade (0,80 - 0,90), o que valida a nossa utilização em o presente estudo.
30 Assim, ainda sugerimos cautela na interpretação dos dados referentes a esta escala. Além disso, destacamos a fragilidade das questões utilizadas para avaliar tabagismo e etilismo e a ausência de dados referentes ao nascimento da criança (prematuridade, peso ao nascer), raça/cor da pele, cuidador principal da criança, violência doméstica e uso excessivo de telas. Outra limitação que deve ser levada em consideração está relacionada à forma como foi questionadoo AME, o que pode reduzir nossa comparabilidade com outros estudos. Contudo, tal questionamento foi realizado buscando adequar-se à realidade das mães participantes. Por fim, cabe ressaltar que a contribuição do AME no DNPM pode não estar sendo evidenciada devido ao pequeno número de crianças nesta classificação de AME até o sexto mês de idade.
Conclui-se que existe alta prevalência de crianças com suspeita de atraso no DNPM nesse grupo de crianças que vivem em extrema vulnerabilidade social. Destaca-se a associação com a escolaridade materna. Esses fatores motivam o desenvolvimento de novas investigações, incluindo intervenções que incentivem recursos acessíveis para a progressão da educação materna e a criação de novos protocolos de geração de estímulos infantis para gerar adultos com maior capacidade produtiva.
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Contribuição dos autores: Camilo LS: Desenho do estudo, Coleta de dados, Redação do manuscrito; Bueno NB: Análise dos dados, Revisão do manuscrito; Macena ML: Análise de dados, Revisão do manuscrito; Silva-Neto LGR: Análise de dados, Redação do manuscrito; Britto RPA: Revisão do manuscrito, Supervisão do estudo; Silva MEN: Coleta de dados; Florêncio TMMT: Desenho do estudo, Revisão do manuscrito, Supervisão do estudo. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesses.
Recebido em 16 de Fevereiro de 2023
Versão final apresentada em 27 de Novembro de 2023
Aprovado em 27 de Dezembro de 2023
Editora Associada: Priscilla Onofre