Publicação Contínua
Qualis Capes Quadriênio 2017-2020 - B1 em medicina I, II e III, saúde coletiva
Versão on-line ISSN: 1806-9804
Versão impressa ISSN: 1519-3829

Todo o conteúdo do periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma

Licença Creative Commons

ARTIGOS ORIGINAIS


Acesso aberto Revisado por pares
0
Visualização

Análise da prevalência do consumo de açúcar em consultas de puericultura

Roberta Andrade Reis 1; Inara Pereira da Cunha 2; Eveline Costa Cainelli 3; Brunna Verna Castro Gondinho 4; Karine Laura Cortellazzi 5; Luciane Miranda Guerra 6; Norma Sueli Gonçalves Reche 7; Jaqueline Vilela Bulgareli8

DOI: 10.1590/1806-9304202200030011

RESUMO

OBJETIVOS: analisar a prevalência do consumo de açúcar e fatores associados em consultas de puericultura.
MÉTODOS: estudo transversal com 599 crianças >seis a <24 meses de idade, assistidas por Unidades de Saúde da Família. Desfechos: consumo diário de bebidas adoçadas, doces/guloseimas, registrados no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional; variáveis independentes: dados sociodemográficos. Aplicou-se teste de regressão logística múltipla.
RESULTADOS: 62,10% das crianças consomem bebidas açucaradas e 42,23% doces/guloseimas. Consumir bebidas açucaradas associou-se à idade de 12-17 meses e 29 dias (OR=2,525; IC95%=1,68-3,78) e 18-17 meses e 29 dias (OR=2,90; IC95%=1,90-4,43); crianças residirem com mais de quatro pessoas na casa (OR=1,59; IC95%:1,11-2,26), terem idade de 12-17 meses e 29 dias (OR=2,05; IC95%=1,34-3,13) e 18-23 meses e 29 dias (OR=2,51; IC95%=1,62-3,87) apresentaram maior chance de consumir doces/guloseimas que crianças mais novas. Aspectos maternos como idade (OR=0,66; IC95%=0,46-0,93), estado civil (OR=1,67; IC95%=1,06-2,6), escolaridade (OR=2,14; IC95%=1,12-4,08), e presença de auxílio do governo (OR=2,03;IC95%=1,41-2,93), foram condições associadas ao consumo de doces/guloseimas.
CONCLUSÃO: foi alta a prevalência de açúcar na dieta das crianças e esteve associada a aspectos sociodemográficos. Ações de educação em saúde devem ser realizadas na puericultura, a fim de fomentar a alimentação saudável, minimizando o consumo de açúcar.

Palavras-chave: Alimentos, Bebidas açucaradas, Informação nutricional complementar

ABSTRACT

OBJECTIVES: to analyze the prevalence of sugar consumption and associated factors in childcare consultations.Methods: cross-sectional study with 599 children > six months to < 24 months of age, assisted by the Family Health Units. Outcomes: daily consumption of sweetened beverages, sweets/candies, recorded in the Food and Nutrition Surveillance System; independent variables: sociodemographic data. Multiple logistic regression test was applied.
RESULTS: 62.10% of the children consume sugary drinks and 42.23%, sweets/candies. Consuming sugary drinks was associated with the age of 12-17 months and 29 days (OR=2.525; CI95%=1.68-3.78) and 18-17 months and 29 days (OR=2.90; CI95%=1.90-4.43); children living with more than four people at home (OR=1.59; CI95%=1.11-2.26), aged 12-17 months and 29 days (OR=2.05; CI95%=1.34-3.13) and 18-23 months and 29 days (OR=2.51; CI95%=1.62-3.87) were more likely to consume sweets/candies than younger children. Maternal aspects, such as age (OR=0.66; CI95%=0.46-0.93), marital status (OR=1.67; CI95%=1.06-2.6), schooling (OR=2.14; CI95%=1.12-4.08), and presence of government assistance (OR=2.03; CI95%=1.41-2.93), were conditions associated with the consumption of sweets.
CONCLUSIONS: the prevalence of sugar in children's diet was high and was associated with sociodemographic aspects. Health education actions should be carried out in childcare, in order to promote healthy food, minimizing the consumption of sugar.

Keywords: Food, Sugary drinks, Complementary nutritional information

Introdução

As fases iniciais da vida da criança são sensíveis a fatores nutricionais e metabólicos, que afetam não apenas o crescimento e o desenvolvimento como também sua condição futura de saúde.1 Recomenda-se que o aleitamento materno seja a fonte primordial da alimentação da criança, persistindo até os dois anos de idade, sendo inseridas outras fontes de alimento a partir dos seis meses, que contenham preferencialmente proteínas, vitaminas e sais minerais.2

No entanto, as escolhas alimentares são determinadas por variáveis biológicas, socioeconômicas, demográficas e culturais em um processo dinâmico, que varia de acordo com o contexto e o estágio de vida do indivíduo.3-5

O desenvolvimento de comportamento alimentar pela criança pode ser influenciado pela disponibilidade de determinados alimentos, assim como pela frequência a qual a criança é exposta aos mesmos, principalmente a partir dos seis meses de vida. Durante esse período, muitas mães tendem a oferecer alimentos que agradam mais ao paladar da criança, muitas vezes não considerando escolhas mais saudáveis.3 Dessa forma, a oferta de alimentos doces, como biscoitos, achocolatados, ou até mesmo a adição de açúcar refinado ao leite ofertado na mamadeira, é muito comum e podem contribuir significativamente para o prejuízo da saúde dessa criança.6

A Organização Mundial da Saúde (OMS) em suas diretrizes, expressa preocupação em relação ao consumo de açúcares por crianças, destacando que as bebidas açucaradas são os principais vetores da dieta calórica.7 As bebidas artificiais são deficientes nutricionalmente, e compostas basicamente de açúcares livres e de adição de sódio. Os açúcares de adição são acrescidos às preparações para provocar melhor aspecto e sabor.8

A ingestão excessiva de calorias, observadas em idades cada vez mais precoces, está relacionada à ocorrência de cáries e ao desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis como obesidade, comprometendo assim a saúde nutricional, bucal e geral dos indivíduos.9 Nesse sentido, é fundamental que as crianças sejam acompanhadas periodicamente por profissionais de saúde, visando avaliar o seu crescimento e desenvolvimento. Esse acompanhamento deve ser realizado por uma equipe multiprofissional, e é ofertado pela Atenção Primária em Saúde (APS) em consultas de puericultura para crianças menores de seis anos. O enfoque central da puericultura é a prevenção de agravos e educação em saúde.10 Essas linhas interligadas podem contribuir com comportamentos saudáveis, relacionados à alimentação da criança.11

Considerando que a identificação dos hábitos alimentares incorretos é fundamental para evitar danos à saúde da criança, esta temática embasa, portanto, as ações de promoção da saúde na infância. Assim, o presente estudo objetivou conhecer as prevalências do consumo de bebidas adoçadas, doces ou guloseimas em crianças entre seis a 23 meses e 29 dias de idade, acompanhadas na puericultura, e identificar as variáveis socioeconômicas e demográficas maternas que se associam a esse consumo.


Métodos

Trata-se de um estudo analítico, do tipo transversal com crianças entre seis a 23 meses e 29 dias de idade. O município estudado é de médio porte, do interior de São Paulo, conta com uma população estimada de 388.412 mil habitantes, área territorial 1.378,501km² e densidade demográfica de 264,47 Hab/Km.12 De acordo com relatórios disponibilizados pela Secretária Municipal de Saúde, de janeiro a abril de 2016 havia um total de 1169 crianças de zero a 23 meses e 29 dias cadastradas nas Unidades de Saúde da Família (USF) do município. A rede pública de atenção à saúde, é composta por 122 estabelecimentos do Sistema Único de Saúde (SUS), dentre eles 52 USF, 20 Unidades Básicas de Saúde, 32 Centros de Referência em Atenção Básica, quatro Unidades de Pronto-Atendimento Médico, além das clínicas, centros e ambulatórios especializados.

O tamanho da amostra foi calculado no EPI INFO7 considerando nível de confiança de 95%, poder do teste de 80%, taxa de não expostos/expostos = 1, porcentagem de resposta no grupo não exposto de 73% e OR=1,8, obtendo-se um tamanho mínimo da amostra de 582 indivíduos selecionados aleatoriamente nas microáreas dos agentes comunitários de saúde pertencentes as 52 USF.

Foram incluídas na amostra mulheres com faixa etária entre 18 a 50 anos de idade, com filhos entre seis a 23 meses e 29 dias e que tinham conhecimento sobre a alimentação do filho no dia anterior. Foram excluídas da amostra, entrevistas com outras pessoas, a não ser a própria mãe.

O estudo foi realizado com 599 crianças na faixa etária incluída, cadastradas como usuários das 52 USF do município, no período de fevereiro a julho de 2017. Inicialmente foi realizado contato telefônico com as gestoras das USF, para o agendamento de data e horário, da coleta de dados.

Para a coleta de dados socioeconômicos foram consideradas as variáveis: renda familiar, número de pessoas na casa, tipo de residência e escolaridade da mãe. Ainda, foram adicionadas perguntas referentes a características demográficas (idade, estado civil, número de filhos e se a mãe trabalha fora do lar, quem é o chefe da família, se a casa possui televisão e/ou internet e se recebem auxílio do governo).

O presente estudo utilizou o Formulário de Marcadores de Consumo Alimentar do Ministério da Saúde – Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional para crianças entre seis a 23 meses e 29 dias de idade, que foi baseado em um documento sobre avaliação e indicadores das práticas de alimentação de lactentes e crianças, publicado pela OMS.13

O formulário apresenta questões que visam detectar a qualidade e o tempo oportuno na introdução de alimentos, identificação de risco ou proteção para as carências nutricionais e, a ocorrência de sobrepeso. Contém 20 perguntas fechadas onde a mãe responde: Sim, não ou não sabe. Nesse instrumento também foram preenchidas a idade e o sexo da criança.

A variável dependente (consumo de alimentos doces ou guloseimas e bebidas adoçadas), foi dicotomizada em sim/não.

As bebidas adoçadas, consideradas foram: refrigerante, suco de caixinha, suco em pó, água de coco de caixinha, xaropes de guaraná ou groselha, suco de fruta com adição de açúcar; e para alimentos doces ou guloseimas considerou-se: biscoito recheado, doces, bolos, chocolates, balas, chicletes, entre outros produtos açucarados.

As variáveis independentes idade, estado civil e número de filhos da mãe, renda familiar, número de pessoas na casa, tipo de residência, nível de escolaridade materna e se a casa possui televisão e/ou internet foram dicotomizadas pela mediana; A idade da criança foi dividida por categorias: 06 a 11 meses e 29 dias, 12 a 17 meses e 29 dias, e 18 a 23 meses e 29 dias de acordo com as orientações sugeridas pelo marcador.

Para avaliar a associação entre o consumo de alimentos doces, guloseimas e bebidas adoçadas e as variáveis independentes aplicou-se análise de regressão logística múltipla. Foram testadas no modelo de regressão logística múltipla as variáveis com p≤0,20 na análise bruta, permanecendo no modelo múltiplo aquelas que continuaram associadas ao consumo destes alimentos e bebidas com p≤0,05 após o ajuste para as demais variáveis analisadas. Os Odds Ratio (OR) e os respectivos intervalos de 95% de confiança (IC) foram estimados. O nível de significância adotado foi de 5%. Todos os testes estatísticos foram realizados pelo programa SAS 9.4 (SAS Institute Inc., Cary, NC, USA. release 9.4, 2010).

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Odontologia de Piracicaba – FOP-Unicamp (CAAE: 61502116.6.0000.5418).


Resultados

A Tabela 1 mostra a distribuição de frequências do consumo de bebidas adoçadas em função das variáveis analisadas. Destaca-se que do total de 599 crianças analisadas, o consumo foi constatado em 372 (62,10%); 50,75% eram do sexo feminino.


 



Quanto às mães das crianças, 52,08% tinham idade≤ a 27 anos, 82,82% eram casadas/outros e, 73,62% tinham até dois filhos, 72,48% tinham renda mensal de até R$1.874.

Do total da amostra, crianças com idade de 18 a 23 meses e 29 dias (71,74%), mães com até 27 anos (47,12%), mães solteiras (71,57%), com três ou mais filhos (68,99%), com renda até R$1.874,00 (64,35%), que residiam com mais de quatro pessoas na casa (68,09%), com ≤2ºgrau completo (63,08%) e que recebiam auxílio do governo (67,02%), tinham filhos que consumiam mais bebidas adoçadas.

A Tabela 2 apresenta os odds ratios brutos e ajustados entre o consumo de bebidas adoçadas com as variáveis analisadas. Na análise bruta, os fatores associados com o consumo de bebidas adoçadas foram o estado civil da mãe, o número de filhos, a renda familiar mensal, o número de pessoas na casa e a idade da criança. Na análise ajustada, as crianças com idade de 12 a 17 meses e 29 dias e 18 a 23 meses e 29 dias tiveram maior chance (OR=2,525; IC95%=1,685-3,782; p<0,001 e OR=2,906; IC95%=1,905-4,433; p<0,001 respectivamente) de consumir bebidas adoçadas. Em se tratando do número de pessoas na casa houve maior chance (OR=1,590; IC95%=1,115-2,267; p=0,010) de consumir bebidas adoçadas as crianças que residiam com mais de quatro pessoas.


 



A Tabela 3 mostra a distribuição de frequências do consumo de doces ou guloseimas em função das variáveis analisadas. O consumo foi constatado em 253 das crianças (42,23%).


 



Do total da amostra, crianças com idade de 12 a 17 meses e 29 dias (47,29%) e de 18 a 23 meses e 29 dias (50%), mães com até 27 anos (47,12%) mães solteiras (56,86%), com três ou mais filhos (47,47%), com renda até R$ 1.874,00 (43,98%), que residiam com mais de quatro pessoas na casa (44,68%), com ≤ 2ºgrau completo (44,34%) e que recebiam auxílio do governo (54,97%) tinham filhos que consumiram mais doces ou guloseimas.

A Tabela 4 apresenta os odds ratios brutos e ajustados entre o consumo de doces ou guloseimas com as variáveis analisadas. Observou-se que os fatores maternos associados com o consumo de doces ou guloseimas na análise bruta foram: idade, o estado civil, a escolaridade da mãe, ser chefe da família, trabalhar fora, receber auxílio do governo; e a idade da criança. Na análise múltipla, as crianças que apresentaram maior chance de consumir doces ou guloseimas tinham idade de 12 a 17 meses e 29 dias e 18 a 23 meses e 29 dias (OR=2,055; IC95%=1,347-3,135; p<0,001 e OR=2,510; IC95%=1,626-3,874; p<0,001, respectivamente). As crianças cujas mães eram solteiras, com ≤ 2º grau completo e que recebiam auxílio do governo apresentaram maior chance (OR=1,678; IC95%=1,066-2,640; p=0,025; OR=2,142; IC95%=1,123-4,085; p=0,020 e OR=2,036; IC95%=1,410-2,938; p=0,001 respectivamente) de consumir doces ou guloseimas. Já aquelas com mães de idade>27 anos tiveram menor chance (OR=0,660; IC95%=0,465-0,936 e p=0,019) de que seus filhos consumissem doces ou guloseimas.


 



Discussão

Com base nos resultados, é possível observar que o açúcar se faz presente precocemente, e muitas vezes em excesso, na dieta alimentar das crianças estudadas, pois 62,10% da amostra consome bebidas adoçadas, e 42,23% consomem doces ou guloseimas.

Estudos publicados demonstraram resultados semelhantes a estes, indicando alto consumo de açúcar pelas crianças.3,5 Análise que utilizou os dados da Pesquisa Nacional de Saúde, e incluiu informações de 2.541 crianças entre 12 a 23 meses de vida, cujas as famílias responderam a perguntas específicas para esta faixa etária, identificou que 85,5% dos respondentes afirmaram que as crianças consumiam diariamente alimentos açucarados e inapropriados.4

O consumo excessivo de bebidas açucaradas tem sido associado à ocorrência de excesso de peso na população pediátrica, o que favorece o desenvolvimento precoce de doenças crônicas não transmissíveis, como o diabetes e a hipertensão arterial.9 De acordo com as recomendações atuais, a ingestão de açúcar livre deve ser equivalente a menos de 10% do valor energético total diário7. Estudo multicêntrico feito em cinco cidades brasileiras verificou que o consumo de bebidas açucaradas, incluindo refrigerantes e sucos artificiais, correspondeu a 37% da energia proveniente de líquidos consumidos diariamente por crianças na faixa de três a seis anos.14 Isto alerta para a necessidade de medidas de controle no consumo de açúcar desde o nascimento da criança.

Da mesma forma, Vega et al.,15 reportaram que mais de um terço dos pré-escolares brasileiros, representando quase três milhões de crianças, consumiram bebidas adoçadas por quatro dias ou mais, identificando também que as maiores prevalências de consumo frequente de bebidas adoçadas foram observadas na faixa etária de 36 a 47 meses. O consumo de pelo menos uma vez por semana de doces e refrigerantes foi verificado em mais de 70% das crianças e a maior frequência de consumo diário de doces e refrigerantes foi observada pelas crianças do sul do país.16.

Estudo realizado com 304 crianças com 24 meses de idade, observou que o aleitamento materno não foi o alimento exclusivo até os seis meses de idade em 47,4% das crianças. A mesma pesquisa identificou ainda, que as práticas alimentares inadequadas foram associadas ao fato de a mãe trabalhar fora de casa e apresentar idade inferior a 25 anos, enfatizando a influência das características familiares na alimentação das crianças.17

Em ambos os casos (consumo de bebidas adoçadas e de doces ou guloseimas), as maiores chances de consumo desses produtos foram vistas nas faixas etárias entre 12 a 17 meses e 29 dias e 18 a 23 meses e 29 dias, quando comparada com a faixa etária de seis a 11 meses e 29 dias, indicando que com o avançar da idade, o consumo destes produtos tende a aumentar. De forma semelhante, em estudo realizado em clínicas públicas na Finlândia, os autores identificaram que quase metade dos bebês com menos de seis meses já consumiam açúcar (44%), sendo que 56% das crianças na faixa etária de 19 a 24 meses consumiam alimentos e/ou bebidas açucaradas mais de uma vez por semana. Quase todas as mães com filhos de 16 meses e mais velhos, relataram dar doces aos filhos.18

A exposição aos sabores adocicados especialmente nos primeiros meses de vida, torna a aceitação do doce cada vez mais fácil, o que compromete o estabelecimento de uma base nutricional sólida com preferencias alimentares açucaradas que se estendem ao longo dos anos.19 É por esse motivo também, que a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) chama a atenção para o excesso de propagandas de alimentos ricos em açúcar.20 O marketing utilizado nas mídias, visa formar vínculos emocionais com as crianças à medida que, por exemplo, oferecem diversão por meio do uso de desenhos animados, personagens infantis e brindes e que, a falta de uma regulamentação mais efetiva expõe este público e seus familiares a uma publicidade considerada invasiva e capaz de prejudicar qualquer aconselhamento de bons hábitos alimentares que profissionais da saúde busquem realizar com as famílias.21

No presente estudo, observou-se grande consumo de bebidas adoçadas pelo público avaliado e que, ao levar em consideração as características socioeconômicas e demográficas das famílias em função do consumo destas bebidas, houve associação entre o número de pessoas que residiam na casa e o consumo destes produtos, sendo demonstrado que nas casas em que moravam mais de quatro pessoas, as chances de consumo eram maiores.

É evidente que o consumo de bebidas adoçadas com açúcar, por crianças pequenas é influenciado por fatores diversos, incluindo as características e comportamentos familiares.22 Como consequência da introdução precoce de bebidas adocicadas, observa-se o comprometimento do aleitamento materno. Pesquisa realizada com 847 crianças assistidas na APS, no Distrito Federal, revelou introdução alimentar prematura entre 38,8% das crianças menores de seis meses. Nesse segmento, 18,4% dos bebês já consumiam bebidas com adição de açúcar, mel ou adoçante. Ainda o estudo apontou que o menor consumo de bebidas com adição de açúcar, mel e adoçantes, contribui com maior chance de ingestão do leite materno. Entre as crianças de 12 e 24 meses, a ingestão de leite materno esteve associado ao menor consumo de suco processado, refrigerante, e bebidas adoçadas,23 reforçando a necessidade de intervenções de aconselhamento e apoio às famílias sobre esta temática. De modo geral, a educação nutricional voltada aos pais, é um importante aspecto a ser considerado, uma vez que repercutirá nos hábitos alimentares dos filhos e redução do consumo de bebidas adoçadas no ambiente familiar, diminuindo as chances de as crianças consumirem estes produtos. Também nos Estados Unidos, observou-se que para tentar reduzir o consumo de bebidas adoçadas para crianças, há necessidade de interferir nas escolhas alimentares dos adultos que as acompanham.24

Este encontro do profissional com os responsáveis promove vínculo com a família, e possui um caráter educativo quanto ao consumo de determinados grupos de alimentos durante a introdução alimentar. Porém, observa-se que uma investigação aprofundada sobre a alimentação da criança e a diversidade cultural das famílias não é realizada, o que dificulta a valorização dos alimentos regionais por elas utilizados. Esses aspectos sugerem a necessidade de qualificar os profissionais da saúde para promover a introdução alimentar saudável.25

Já com relação ao consumo de doces ou guloseimas, a idade materna igual ou maior que 27 anos, as mães solteiras e de escolaridade até o segundo grau, e as que recebem auxílio do governo, demonstraram maiores chances de seus filhos consumirem estes produtos, corroborando com estudo que apontou que o maior consumo de guloseimas pode ser associado a menor renda familiar e menor escolaridade dos pais.26

Ainda, com o objetivo de avaliar o consumo de alimentos ultra processados, por crianças de seis a 12 meses, acompanhados pela APS em uma região metropolitana do estado de São Paulo, Relvas et al.27 entrevistaram 196 mães sobre a alimentação das crianças nas últimas 24 horas. Foi verificado o consumo de ultraprocessados por 43,1% das crianças, o nível de escolaridade materna, e o fato de a primeira consulta da criança na unidade básica de saúde ter acontecido na primeira semana de vida, foram fatores associados a esta dieta. Isso revela, que se faz necessário ouvir e compreender os fatores que influenciam os responsáveis durante a transição para a alimentação complementar da criança.

O estudo apresenta limitações, por se tratar de um estudo transversal não é possível inferir causalidade, pois não permite afirmar em qual momento do tempo ocorreram à exposição e o desfecho. Além disso, pesquisas que utilizam instrumentos que registram o consumo de alimentos estão sujeitos a erros aleatórios devido, por exemplo, à dificuldade dos indivíduos em lembrar dos alimentos consumidos, interferindo na precisão dos dados coletados, a frequência do consumo de bebidas adoçadas, doces e guloseimas referidas pelas mães das crianças.

Observa-se por fim, que apesar das constantes recomendações e políticas acerca da alimentação infantil saudável, a ocorrência de inadequações alimentares foi marcante na população estudada, sustentando a ideia de que os padrões alimentares das crianças convergem para a introdução cada vez mais precoce de alimentos açucarados, que são pobres em nutrientes e podem, a longo prazo, trazer prejuízos para a saúde bucal, nutricional e geral destes indivíduos. Desta forma, e devido ao fato de que nessa faixa etária as escolhas alimentares passam a ser de responsabilidade dos pais e cuidadores, é recomendável que as ações de educação em saúde englobem equipes multidisciplinares que esclareçam as inter-relações do excesso de açúcar na alimentação com a saúde geral, especialmente no momento da puericultura.


Referências

1. Black MM. Impact of Nutrition on Growth, Brain, and Cognition. Nestle Nutr Inst Workshop Ser. 2018; 89: 185-95.

2. Prell C, Koletzko B. Breastfeeding and Complementary Feeding. Dtsch Arztebl Int. 2016 Jun; 113 (25): 435-44.

3. Lopes WC, Pinho L, Caldeira AP, Lessa AC. Consumo de alimentos ultraprocessados por crianças menores de 24 meses de idade e fatores associados. Rev Paul Pediatr. 2020; 38: e2018277.

4. Rebouças AG, Bernardinho IM, Dutra ER, Imparato JCP, Duarte DA, Flório FM. Fatores associados à prática alimentar de crianças brasileiras de 12 a 23 meses de vida. Rev Bras Saúde Mater Infant. 2020; 20 (4): 1025-40.

5. Freitas LG, Cortés MAP, Stein C, Cousin E, Faustino-Silva DD, Hilgert JB. Qualidade do consumo alimentar e fatores associados em crianças de um ano de vida na Atenção Primária à Saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2020; 25 (7): 2561-70.

6. Carvalho CA, Fonseca PCA, Nobre LN, Silva MA, Pessoa MC, Ribeiro AQ, et al. Fatores associados aos padrões alimentares no segundo semestre de vida. Ciênc Saúde Coletiva. 2020; 25 (2): 449-59.

7. World Health Organization (WHO). Report of the commission on ending childhood obesity [Internet]. Geneva: WHO; 2016 [acesso em 2021 abr 5]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/204176/1/9789241510066_eng.pdf?ua=1

8. Dantas FMK, Nascimento AG, Reis AM, Domingues J, Doria SR, Lopes RGAL. Informação nutricional complementar em bebidas açucaradas consumidas pelo público adolescente e infantil. Vigil Sanit Debate. 2020; 9 (1): 1-11.

9. Paglia L. WHO: healthy diet to prevent chronic diseases and caries. Eur J Paediatr Dent. 2018 Mar; 19 (1): 5.

10. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: crescimento e desenvolvimento. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2012. (Cadernos de Atenção Básica, nº 33). [acesso em 2021 abr 5]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_crianca_crescimento_desenvolvimento.pdf

11. Góes FGB, Silva MA, Paula GK, Oliveira LPM, Mello NC, Silveira SSD. Contribuições do enfermeiro para boas práticas na puericultura: revisão integrativa da literatura. Rev Bras Enferm. 2018; 71 (Suppl. 6): 2808-17.

12. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cidades: Piracicaba. [online]. São Paulo, Brasil; 2020. [acesso em 2021 abr 17]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/2972/momun_se_sp_piracicaba.pdf

13. World Health Organization (WHO). Indicators for assessing infant and young child feeding practices. Geneva: WHO; 2010. [acesso em 2021 abr 17]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240018389

14. Feferbaum R, Abreu LC, Leone C. Fluid intake patterns: an epidemiological study among children and adolescents in Brazil. BMC Public Health. 2012 Nov; 12: 1005.

15. Vega JB, Poblacion AP, Taddei JAAC. Fatores associados ao consumo de bebidas açucaradas entre pré-escolares brasileiros: inquérito nacional de 2006. Ciênc Saúde Coletiva. 2015; 20 (8): 2371-80.

16. Bortolini GA, Gubert MB, Santos LM. Food consumption in Brazilian children by 6 to 59 months of age. Cad Saúde Pública. 2012; 28: 1759-71.

17. Silveira GLL, Neves LF, Pinho L. Fatores associados à alimentação entre crianças atendidas em creches públicas de Montes Claros. Rev Assoc Bras Nutr. 2018; 8 (2): 20-6.

18. Laitala ML, Vehkalahti MM, Virtanen JI. Frequent consumption of sugar-sweetened beverages and sweets starts at early age. Acta Odontol Scand. 2018 Mar; 76 (2): 105-10.

19. Murray RD. Savoring Sweet: Sugars in Infant and Toddler Feeding. Ann Nutr Metab. 2017; 70 (Suppl. 3): 38-46.

20. Organização Panamericana de Saúde (OPAS). Recomendações da Consulta de Especialistas da Organização Pan-Americana da Saúde sobre a Promoção e a Publicidade de Alimentos e Bebidas Não Alcoólicas para Crianças nas Américas. Washington, DC; 2012. [acesso em 2021 abr 17]. Disponível em: https://iris.paho.org/handle/10665.2/3593

21. Sadeghirad B, Duhaney T, Motaghipisheh S, Campbell NR, Johnston BC. Influence of unhealthy food and beverage marketing on children’s dietary intake and preference: a systematic review and meta-analysis of randomized trials. Obes Rev. 2016 Oct; 17 (10): 945-59.

22. Mazarello Paes V, Hesketh K, O’Malley C, Moore H, Summerbell C, Griffin S, et al. Determinants of sugar-sweetened beverage consumption in young children: a systematic review. Obes Rev. 2015 Nov; 16 (11): 903-13.

23. Spaniol AM, Costa THM, Bortolini GA, Gubert MB. Breastfeeding reduces ultra-processed foods and sweetened beverages consumption among children under two years old. BMC Public Health. 2020 Mar; 20 (1): 330.

24. Emond JA, Smith ME, Mathur SJ, Sargent JD, Gilbert-Diamond D. Children’s Food and Beverage Promotion on Television to Parents. Pediatrics. 2015 Dez; 136 (6): 1095-102.

25. Modes PSSA, Gaíva MAM, Monteschio CAC. Incentivo e promoção da alimentação complementar saudável na consulta de enfermagem à criança. Contexto Saúde. 2020; 20 (40): 189-98.

26. Dallazen C, Silva SA, Gonçalves VSS, Nilson EAF, Crispim SP, Lang RMF, et al. Introdução de alimentos não recomendados no primeiro ano de vida e fatores associados em crianças de baixo nível socioeconômico. Cad Saúde Pública. 2018; 34 (2): e00202816.

27. Relvas GRB, Buccini GDS, Venancio SI. Ultra-processed food consumption among infants in primary health care in a city of the metropolitan region of São Paulo, Brazil. J Pediatr (Rio J). 2019; 95 (5): 584-92.

Recebido em 26 de Maio de 2021
Versão final apresentada em 31 de Maio de 2022
Aprovado em 2 de Junho de 2022

Contribuição dos autores
Reis RA e Bulgareli JV propuseram o desenho do estudo, contribuíram na interpretação dos dados e na primeira minuta do artigo. Cunha IP, Cainelli E e Gondinho BVC contribuíram para a interpretação dos dados e na redação da versão final do artigo. Cortellazzi KL, Guerra LM e Reche NSG contribuíram com a análise dos dados, com o design do estudo, e participaram na escrita do artigo. Todos os autores contribuíram e aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.

Copyright © 2024 Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por: