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Qualis Capes Quadriênio 2017-2020 - B1 em medicina I, II e III, saúde coletiva
Versão on-line ISSN: 1806-9804
Versão impressa ISSN: 1519-3829

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Tendência temporal da mortalidade infantil em Pernambuco, 2001-2019: um estudo ecológico de base populacional

Lígia Maria de Sousa Coelho1; Ana Carolina Furtado Ferreira2; Rebeca de Araújo Vasconcelos3; Thaís Silva Matos4; Carlos Dornels Freire de Souza5

DOI: 10.1590/1806-9304202300000116 e20230116

RESUMO

OBJETIVOS: analisar a tendência temporal e a distribuição espacial da mortalidade infantil em Pernambuco no período de 2001 a 2019.
MÉTODOS: estudo ecológico envolvendo todos os óbitos em crianças menores de um ano residentes no estado. Os dados foram coletados no Sistema de Informações sobre Mortalidade e no Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos. Foram calculados quatro coeficientes de mortalidade e a análise temporal foi realizada aplicando o modelo de regressão por pontos de inflexão dos coeficientes em diferentes níveis espaciais.
RESULTADOS: foram registrados 47.949 óbitos, dos quais 51,0% (n=24.447) ocorreram nos seis primeiros dias de vida. Foi observada tendência de declínio estatisticamente significativo em todos os coeficientes analisados (-4,5%/ano na mortalidade geral, -3,6%/ano na neonatal precoce, -1,9%/ano no componente neonatal tardio e de -6,3%/ano no componente pós-neonatal). Adicionalmente, 64,3% dos municípios (n=119) apresentaram tendência de declínio no coeficiente de mortalidade infantil geral. Menos de 50% dos municípios apresentaram tendência de redução na mortalidade neonatal precoce e neonatal tardia (41,08%; n=76 e 43,2%; n=80, respectivamente). Na mortalidade pós-neonatal, 57,3% (n=106) apresentaram tendências decrescentes.
CONCLUSÕES: houve tendência temporal de declínio da mortalidade infantil geral, embora haja importante parcela de municípios com tendência estacionária, justificando a necessidade de reduzir desigualdades sociais e assimetrias geográficas.

Palavras-chave: Série temporal, Morbimortalidade, Epidemiologia

ABSTRACT

OBJECTIVES: to analyze the temporal trend and spatial distribution of infant mortality in Pernambuco from 2001 to 2019.
METHODS: an ecological study involving all deaths in children under one year of age living in the state. Data were collected from the Mortality Information System and the Live Birth Information System. Four mortality rates were calculated and the temporal analysis was performed by applying the regression model by inflection points of the rates at different spatial levels.
RESULTS: 47,949 deaths were recorded, of which 51.0% (n=24,447) occurred in the first six days of life. A statistically significant downward trend was observed in all the rates analyzed (-4.5%/year in overall mortality, -3.6%/year in early neonatal mortality, -1.9%/year in the late neonatal component, and -6.3%/year in the post-neonatal component). Additionally, 64.3% of the municipalities (n=119) showed a declining trend in the overall infant mortality rate. Less than 50% of the municipalities showed a downward trend in early neonatal and late neonatal mortality (41.08%; n=76 and 43.2%; n=80, respectively). In post-neonatal mortality, 57.3% (n=106) showed decreasing trends.
CONCLUSIONS: there was a temporal trend of decline in overall infant mortality, although there is an important portion of municipalities with a stationary trend, justifying the need to reduce social inequalities and geographical asymmetries.

Keywords: Time series, Morbidity and mortality, Epidemiology

Introdução

A mortalidade infantil é um indicador que estima o risco de um nascido vivo (NV) morrer antes de completar um ano de vida.1 Trata-se de um dos mais importantes indicadores da situação de saúde, desenvolvimento socioeconômico e qualidade de vida de uma população.2 Nesse sentido, os altos coeficientes de mortalidade refletem condições de vida e saúde precárias e baixo desenvolvimento econômico e social, ao passo que sua diminuição está atrelada às melhorias no acesso aos serviços de saúde, condições de habitação e alimentação, distribuição de renda e nível de escolaridade da mãe.3

Mundialmente, a mortalidade infantil reduziu de um coeficiente estimado de 65 óbitos/1000 NV em 1990 para 27 óbitos por 1000 NV em 2020. As mortes infantis anuais caíram de 8,7 milhões de mortes em 1990 para 3,8 milhões em 2020. Em 2018, 75% de todas as mortes em menores de cinco anos ocorreram no primeiro ano de vida, totalizando 4,0 milhões, dos quais 2,5 milhões ocorreram ainda no período neonatal.4

No Brasil, embora se observe um declínio do coeficiente de mortalidade em todas as regiões ao longo das últimas décadas, ainda persistem desigualdades socioespaciais,5 com os maiores coeficiente de mortalidade infantil nas regiões Norte e Nordeste do país. Entre os anos 2017 e 2019, por exemplo, estas regiões apresentaram coeficiente de 16,9/mil NV e 15,3/mil NV respectivamente, valores que estão acima da média nacional (13,3/mil NV) para o período.3

Durante o primeiro ano de vida, as causas da mortalidade infantil podem variar. Por este motivo, ele é subdividido em dois componentes, denominados neonatal (0 a 27 dias) e pós-neonatal (28 dias a menor de um ano). O período neonatal também apresenta uma subdivisão em neonatal precoce (0 a 6 dias de vida) e neonatal tardio (7 a 27 dias de vida).3 Dentre as principais causas da mortalidade neonatal precoce, destacam-se a prematuridade, o baixo peso ao nascer e a septicemia bacteriana do recém-nascido, em geral associada à transtorno hipertensivo materno, infecções das vias urinárias materna, dentre outros. Já as principais causas da mortalidade neonatal tardia são a septicemia bacteriana do recém-nascido, malformações congênitas e as afecções maternas. Já no período pós-neonatal as principais causas da mortalidade são as doenças diarreicas e gastroenterites de origem infecciosa presumível, as pneumonias por micro-organismos não especificados e as outras septicemias.6

Uma vez que cada componente etário possui causas específicas de mortalidade, o monitoramento epidemiológico dos indicadores ao longo dos anos é de fundamental importância. Dentre as ferramentas disponíveis, destaca-se a análise de série temporal, uma ferramenta estatística que permite acompanhar a evolução de um conjunto de dados ao longo do tempo, que neste caso é expresso em anos.7

Além disso, a série temporal permite identificar variações (inflexões) não aleatórias, ocasionadas, por exemplo, pela implantação de uma política, plano ou estratégia, bem como padrões de sazonalidade ou até mesmos ruídos, que se expressam como fatos aleatórios que modificaram a evolução dos dados.7 Assim, a análise de séries temporais da mortalidade infantil é uma ferramenta útil para o monitoramento dos indicadores ao longo, produzindo conhecimento sobre a evolução temporal e possibilitando a tomada de decisão pelos gestores.

Em um estado caracterizado por disparidades socioeconômicas, como é ocaso de Pernambuco, no qual mais da metade dos municípios são classificados como de muito alta vulnerabilidade, localizados sobretudo no interior do estado,8 estudos de séries temporais podem ajudar na compreensão dos diferentes cenários locais, contribuindo para identificar áreas prioritárias para intervenção, como aqueles municípios que apresentam tendência de aumento da mortalidade infantil.

Com base no exposto, este trabalho tem como objetivo analisar a tendência temporal e a distribuição espacial da mortalidade infantil em Pernambuco no período de 2001 a 2019.


Métodos

Trata-se de um estudo ecológico envolvendo todos os óbitos em crianças menores de um ano residentes no estado de Pernambuco, considerando o período 2001-2019. O ano de 2020 e subsequentes não foram incluídos em razão da pandemia de Covid-19. Considerando os impactos da Covid-19, é provável que influenciariam na tendência temporal. Desse modo, trata-se de um estudo do período pré-pandemia de Covid-19.

O estado de Pernambuco está localizado na região Nordeste do Brasil, sendo composto por 185 municípios. Estima-se que a população do estado seja de 9,6 milhões de habitantes em 2020, sendo este o sétimo mais populoso do país.8 Para fins sanitários, o estado está subdividido em 12 regiões de saúde que levam em consideração fluxos assistenciais, redes de saúde e municípios limítrofes.

Para o estudo, foram analisados quatro coeficientes de mortalidade, sendo estes (1) mortalidade infantil geral / mil NV; (2) mortalidade neonatal precoce / mil NV; (3) mortalidade neonatal tardia / mil NV e (4) mortalidade pós-neonatal / mil NV, cujas equações para cálculo estão representadas abaixo: 9
 


Os dados brutos necessários para o cálculo dos indicadores foram do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC), que são disponibilizados na plataforma do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. O SIM, desenvolvido pelo Ministério da Saúde em 1975, apresenta informações que possibilitam criar indicadores e organizar análises epidemiológicas para contribuir com a gestão em saúde.10 O Sinasc, implantado em 1990, tem objetivo de coletar dados a respeito dos nascimentos registrados no território nacional e, dessa forma, fornecer dados de natalidade,10 os dois apresentam cobertura nacional.

Para realização da análise temporal foi utilizado o modelo de regressão por pontos de inflexão (joinpoint regression model) dos quatro coeficientes nos diferentes níveis espaciais: estado, regiões de saúde e municípios. Esse modelo testa se uma linha com múltiplos segmentos é estatisticamente melhor para descrever a evolução temporal dos dados do que uma linha reta ou com menos segmentos.11 Desse modo, o modelo permite identificar o comportamento temporal do indicador (se estacionário, crescente ou decrescente) por meio da inclinação da reta de regressão, os pontos em que há alteração dessa tendência (joins), a variação percentual anual (APC - Annual Percent Change) e a média de variação de cada período (AAPC - Average Annual Percent Change).12 Parâmetros utilizados na análise joinpoint: mínimo: 0; máximo: 4; seleção do modelo: teste com 4.499 permutações, significância de 5%, intervalo de confiança de 95% e autocorrelação dos erros baseado na data.

As análises foram realizadas no software Joinpoint Regression, versão 4.5.0.1 (National Cancer Institute - USA). Adicionalmente, mapas coropléticos foram elaborados para a apresentação dos resultados utilizando o QGIS 2.14.11 (Open Source Geospatial Foundation OSGeo). As malhas territoriais necessárias para a confecção dos mapas foram provenientes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).


Resultados

No período de 2001 a 2019, foram registrados 47.949 óbitos de crianças com menos de um ano de idade no estado de Pernambuco. Desses, 51,0% (n=24.447) ocorreram nos seis primeiros dias de vida (período neonatal precoce), 13,7% (n=6.569) entre o sétimo e o vigésimo sétimo dia (período neonatal tardio) e 35,3% (n=16.907) após o vigésimo sétimo dia (período pós-neonatal).

No início da série temporal (2001), o coeficiente de mortalidade infantil em Pernambuco era de 26,6/mil NV. Foi observado um declínio mais intenso de 2001 até 2011 (-6,4% ao ano), a partir do qual a redução anual passou a ser de -2,0% ao ano, alcançando em 2019 um coeficiente de 17,5/mil NV. O componente neonatal tardio foi o que menos decresceu (-1,9% ao ano). Por outro lado, mortalidade pós-neonatal apresentou mais variações ao longo da série temporal (três junções e quatro tendências), e com percentual médio -6,3% de redução ao ano (de 12,8/mil NV em 2001 para 8,9/mil NV em 2019) (Figura 1).

 



Somente a região de Petrolina (no sertão do estado) apresentou comportamento temporal estacionário no coeficiente de mortalidade infantil geral (AAPC=-2,1; p=0,129) no período 2001-2019. Por outro, lado, na região de saúde de Limoeiro foi observado o maior declínio (AAPC=-7,5%; p<0,001), cujo coeficiente passou de 25,9/mil NV em 2001 para 11,8/mil NV em 2019. Adicionalmente, seis das doze regiões de saúde apresentaram coeficientes de mortalidade superiores ao estadual na série temporal 2001-2019, com destaque para as duas regiões do sertão pernambucano que ocuparam as primeiras colocações: Ouricuri (17,9/mil NV) e Petrolina (16,9/mil NV) (Tabela 1A).


 



Quanto à mortalidade neonatal precoce, nove regiões apresentaram tendência de declínio, com destaque para Afogados da Ingazeira (AAPC=-6,2%; p<0,001). Nessa região, o coeficiente de mortalidade neonatal precoce decresceu de 15,5/mil NV para 5,9/mil NV. Adicionalmente, seis das doze regiões de saúde apresentaram coeficientes de mortalidade superiores ao estadual, com destaque para Ouricuri e Petrolina, que ocuparam as primeiras posições (11,5/mil NV e 9,3/mil NV, respectivamente) (Tabela 1B).

A mortalidade neonatal tardia foi a mais baixa entre os coeficientes. Nesse componente, com exceção das regiões de Afogados da Ingazeira, Ouricuri, Recife e Serra Talhada, na quais a tendência temporal foi estacionária, todas as demais apresentaram tendências decrescentes: Goiana foi a região com maior declínio percentual no período 2001-2019 (-6,7% ao ano), com redução de 3,3/mil NV para 1,1/mil NV. Seis das doze regiões de saúde apresentaram coeficientes de mortalidade superiores a estadual na série temporal (2001-2019), com destaque para as regiões de Serra Talhada (2,6/mil NV), Ouricuri (2,5/mil NV) e Petrolina (2,4/mil NV) ocupando as primeiras posições (Tabela 2A).

 



No componente pós-neonatal, dez regiões apresentaram declínio no período 2001-2019, destacando-se as regiões de Palmares (AAPC=-10,7%; p<0,001), Arcoverde (AAPC=-9,2; p<0,001) e Serra Talhada (AAPC= -8,3; p<0,001). Em Palmares, por exemplo, o coeficiente reduziu de 19,3/mil NV para 3,5/mil NV. Adicionalmente, sete das doze regiões de saúde apresentaram coeficientes de mortalidade superiores a estadual, com destaque para a região de Afogados da Ingazeira, cuja mortalidade em 2019 foi 4,08 vezes maior do que o coeficiente estadual (13,9/mil NV e 3,4/mil NV), respectivamente (Tabela 2B).

Na análise municipal, 64,3% dos municípios (n=119) apresentaram tendência de declínio no coeficiente de mortalidade infantil geral. Menos de 50% dos municípios apresentaram tendência de redução na mortalidade neonatal precoce e neonatal tardia (41,08%; n=76 e 43,2%; n=80, respectivamente). Tendências de crescimento na mortalidade neonatal precoce foram observadas no município de Cedro (AAPC=58,9%; p<0,001) e na mortalidade neonatal tardia em Casinhas (AAPC=29,5%; p=0,012). Por fim, na mortalidade pós-neonatal, 57,3% (n=106) apresentaram tendências decrescentes (Figura 2).


 



Ao adentrar nos municípios de cada região de saúde, Goiana foi a que apresentou a maior proporção de municípios com tendência decrescente (90%; n=9) no coeficiente de mortalidade infantil geral, enquanto, somente metade dos municípios da região de Limoeiro apresentaram tendência de declínio. No componente neonatal precoce, a região de Serra Talhada apresentou a maior proporção de municípios com tendência decrescente (60%; n=6) e a região de Ouricuri a menor (18,2%; somente dois dos onze municípios). Na mortalidade neonatal tardia, a região de Arcoverde ocupou a melhor posição (61,5% dos municípios apresentaram tendência de declínio) e a região de Afogados da Ingazeira a pior (somente um dos doze municípios apresentou tendência de declínio). Por fim, na mortalidade pós-neonatal, a melhor posição foi ocupada pela região de Caruaru, na qual 68,8% (n=22) dos municípios apresentaram tendência de declínio, enquanto a região de saúde de Afogados da Ingazeira apresentou a menor proporção de municípios com tendência decrescente (33,3%; n=4) (Tabela 3).

 




Discussão

Esse trabalho analisou a tendência temporal da Mortalidade Infantil em Pernambuco no período de 2001 a 2019, mostrando que houve declínio mais intenso da mortalidade infantil geral até o ano de 2011, com maior número de inflexões na mortalidade pós-neonatal. Observou-se ainda diferenças regionais na tendência temporal e com pouco mais da metade dos municípios com declínio significativo do coeficiente de mortalidade infantil geral.

Assim como observado no Brasil, o estado de Pernambuco tem mostrado redução na mortalidade infantil e seus componentes.3 A mortalidade infantil geral é um importante indicador das condições de vida da população e a redução de valores desse indicador se relaciona com a diminuição da desigualdade social e melhoria do acesso e da oferta de serviços de saúde, visto que há uma relação direta entre esses fatores.11,13

Por essa razão, é consenso na literatura científica que importante parcela das mortes são evitáveis, ou seja, são óbitos que derivam das iniquidades em saúde, isto é, das desigualdades sociais injustas, a exemplo do frágil acesso aos serviços de saúde das condições de vida das famílias (educação, moradia e renda).11 Essas mortes podem ser evitadas, parcial ou totalmente, com a adoção de políticas públicas, planos ou estratégias voltadas para os determinantes sociais.14

Enfrentar a mortalidade infantil ainda é um dos maiores desafios para o desenvolvimento de um país, tendo em vista a complexidade do problema e que, por essa razão, demanda políticas transversais e integradas a fim de atuar sobre os seus determinantes sociais.14 Nesse cenário, estudos apontam, por exemplo, que o declínio da mortalidade infantil tem relação com programas sociais implementados no Brasil nas últimas décadas, como o Programa Bolsa Família (PBF), criado em 2003.15,16

Um estudo ecológico realizado no Brasil com o objetivo de avaliar o impacto do PBF sobre os óbitos em crianças menores de cinco anos mostrou que o programa de transferência de renda é capaz de contribuir com a redução da mortalidade infantil geral, em particular para mortes atribuíveis a causas relacionadas à pobreza, como desnutrição e doenças diarreicas.15 O Bolsa Família constitui um programa de transferência de renda que beneficia famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza, atuando na redução, sobretudo, de óbitos do período pós-neonatal.17 Em Pernambuco, um estudo mostrou que o Bolsa Família melhorou a qualidade da dieta dos indivíduos beneficiados pelo programa, com ampliação da variedade de alimentos consumidos, por exemplo.18

Além das políticas de transferência de renda, foram criados programas específicos direcionados para a saúde materno-infantil, a exemplo do Programa Mãe Coruja, que atua por meio de ações intersetoriais e de saúde destinadas Às gestantes durante o pré-natal, parto e pós-parto, e às crianças até o quinto ano de vida.13 No entanto, em estudo objetivando analisar o impacto do Mãe Coruja na redução da mortalidade infantil em Pernambuco, foi mostrado que não houve relação direta entre o início do declínio da mortalidade infantil e a implantação do programa, demonstrando que outros fatores podem estar associados com a redução da mortalidade.13

Mesmo com os benefícios trazidos por essas políticas, apenas 64,3% dos municípios pernambucanos apresentaram tendência de declínio no coeficiente de mortalidade infantil geral. Cabe salientar que Petrolina foi a única regional com padrão estacionário, nessa região de Petrolina, dos sete municípios que a integram, todos fazem parte do programa Mãe Coruja e três apresentaram padrão estacionário (Afrânio, Petrolina e Cabrobó). Esses achados reforçam o que já tem sido apontado pela literatura científica em relação a esse programa, que isoladamente, não é capaz de reduzir as mortes evitáveis a níveis mínimos aceitáveis.13 Além disso, cada região possui singularidades, o que sinaliza para a necessidade de políticas públicas que levem esta condição particular em consideração.

A Atenção Primária à Saúde (APS) também tem sido apontada como importante mecanismo capaz de reduzir a mortalidade infantil. Materializada através da Estratégia de Saúde da Família (ESF), a APS possibilitou maior acesso da população aos serviços voltados à saúde materno-infantil, caracterizando um avanço da qualidade de assistência prestada.19,20 Um estudo ecológico realizado no Brasil entre 1999 e 2004 observou que o aumento da cobertura da ESF em 10% acarretou queda de 0,45% no coeficiente de mortalidade infantil, sendo 0,6% no componente pós-neonatal.21

No entanto, outros estudos mostraram que a APS sozinha também não impactou na mortalidade infantil, de modo que não é possível atribuir a esse componente do sistema de saúde a responsabilidade única pela redução observada ao longo da série temporal.22 Uma investigação realizada em Garanhuns, no agreste do estado de Pernambuco, ao comparar a tendência da mortalidade infantil entre áreas cobertas e não cobertas pela APS não encontrou relação entre essas variáveis.22

Nesse sentido, parece cada vez mais evidente que o enfrentamento à mortalidade infantil exige um esforço coletivo em diferentes frentes de atuação, que vão muito além do sistema de saúde, mas que devem alcançar as condições de vida da população. Uma investigação conduzida em Recife demonstrou que, à medida em que piorava a condição de vida, maior era o gradiente crescente dos coeficientes de mortalidade infantil, neonatal e pós-neonatal.23 Não se trata tão somente da variável renda, mas de toda uma cadeia de determinantes socais que, por natureza, é dinâmica, polissêmica e multifacetada.

Além das diferenças regionais e da complexidade que envolve o tema, é necessário considerar ainda uma terceira dimensão do fenômeno - os componentes da mortalidade infantil. O componente neonatal tem se apresentado como um desafio maior do que a da mortalidade pós-neonatal, uma vez que esta última é mais suscetível às melhorias globais das condições de vida das pessoas e às intervenções do setor de saúde, como estratégias preventivas de vacinação e aleitamento materno, por exemplo.2,24 No nosso estudo, 57,3% dos municípios apresentaram tendência de declínio do componente pós-neonatal e, do ponto de vista regional, Goiana e Petrolina tiveram padrão estacionário, enquanto houve um declínio mais intenso nas regiões de Palmares, Arcoverde e Serra Talhada.

Diferentes investigações já demonstraram um número maior de óbitos no período neonatal precoce.25,26 Fatores como a prematuridade e o baixo peso ao nascer tem sido associados a essa mortalidade, condições estas que são evitáveis, podendo ser identificadas e prevenidas durante o pré-natal. Em geral, esses fatores são secundários a outros, tais como doença hipertensiva da gestão, infecções das vias urinárias materna e incompetência do colo uterino, por exemplo.27 Nesse componente, destaca-se o papel da APS através da promoção de ações que influenciam diretamente nestas estatísticas vitais, tais como o planejamento familiar, o pré-natal, a cobertura vacinal, a orientação sobre aleitamento materno e a consulta neonatal na primeira semana de vida.22

No que se refere à mortalidade neonatal tardia, as duas principais causas de óbitos apontadas por dados do Ministério da Saúde foram a septicemia bacteriana do recém-nascido e o desconforto respiratório do recém-nascido, entre os anos de 2001 e 2019.6 Neste estudo, esse coeficiente é o mais baixo e, exceto o município de casinhas, nenhum outro apresentou tendência de crescimento.

Mortes por septicemia nesse período neonatal tardio podem estar relacionadas a diversas situações pós-nascimento, como os variados procedimentos invasivos hospitalares, transmissão horizontal de infecções pelas mãos dos cuidadores (domiciliares ou equipe assistencial hospitalar), além de acompanhamento inadequado pós nascimento pela equipe da APS. Já as mortes por desconforto respiratório podem ter relação com a assistência prestada em sala de parto e em unidade de terapia intensiva neonatal (UTIN), sendo a inexistência desta no município um fator complicador.28,29

Mesmo considerando os cuidados metodológicos, este estudo possui limitações. A primeira diz respeito a utilização de dados secundários, que estão sujeitos à influência da qualidade dos sistemas de vigilância em saúde dos municípios. Sabe-se que em municípios menores a vigilância do óbito enfrenta desafios ainda maiores, sobretudo com respeito à capacidade de investigação de óbitos e ao monitoramento da qualidade dos registros. Por outro lado, os registros de mortalidade são considerados os mais confiáveis dentre os sistemas de informação.

Por fim, o estudo mostrou tendência temporal de declínio da mortalidade infantil geral em Pernambuco no período de 2001 a 2019, apesar da existência de diferenças intrarregionais, com importante parcela de municípios com tendência estacionária na mortalidade infantil. Tais diferenças justificam a necessidade de esforços sociopolíticos na tentativa de reduzir as desigualdades sociais e as assimetrias geográficas existentes, além de reforçar a necessidade de enfrentar as mortes evitáveis de recém-nascidos e crianças menores de um ano.

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Recebido em 4 de Abril de 2023
Versão final apresentada em 26 de Junho de 2023
Aprovado em 6 de Julho de 2023

Editor Associado: Lygia Vanderlei

Contribuição dos autores: Coelho LMS, Ferreira ACF, Vasconcelos RA, Matos TS e Souza CDF: concepção e planejamento do estudo, análise e interpretação dos dados, elaboração do rascunho e revisão crítica do conteúdo. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.

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