Publicação Contínua
Qualis Capes Quadriênio 2017-2020 - B1 em medicina I, II e III, saúde coletiva
Versão on-line ISSN: 1806-9804
Versão impressa ISSN: 1519-3829

Todo o conteúdo do periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma

Licença Creative Commons

ARTIGOS ORIGINAIS


Acesso aberto Revisado por pares
0
Visualização

Digital violence in teen dating: an ecological engagement methodology

Thaís Afonso Andrade1; Marisa Amorim Sampaio2; Véronique Donard3; Priscilla Machado Moraes4

DOI: 10.1590/1806-9304202300000049 e20230049

ABSTRACT

OBJECTIVES: to investigate digital dating violence among adolescents.
METHODS: qualitative research, applying the ecological engagement methodology, carried out in a non-governmental organization. The final sample consisted of eight male and female adolescents, aged between 16 and 19 years old. Data were analysed according to Content Analysis technique, with triangulation of instruments and technique: biosociodemographic questionnaire; field notes; semi-structured interview; questionnaire "Knowing Dating Relationships".
RESULTS: digital violence was frequent and naturalized in dating; despite mutual violence, bidirectionality in dating violence did not mean gender symmetry; the pandemic was linked to the daily increase in Internet use via mobile phones, but it did not increase dating violence. Impulsivity was used in attempts to resolve conflicts in dating, associated not only with adolescence, but also with the increasing digitization and acceleration of relationships within our society. Adolescents were direct and/or indirect victims of violence in their main development microsystems (family, school and neighborhood), simultaneously exposed to different types of violence, since childhood.
CONCLUSIONS: the digital microsystem can be seen as another context for the perpetration and victimization of violence. Preventive actions should consider the various expressions of violence (physical, psychological, sexual and digital) and their repercussions for physical and mental health.

Keywords: Violence, Dating, Adolescence, Adolescent development, Adolescent health

RESUMO

OBJETIVOS: investigar a violência digital no namoro entre adolescentes.
MÉTODOS: pesquisa qualitativa, utilizando o método da Inserção Ecológica, realizada numa Organização não Governamental, com amostra final de oito adolescentes dos gêneros masculino e feminino (16 e 19 anos). Os dados foram analisados segundo a técnica de Análise de Conteúdo, com triangulação de instrumentos e técnica: questionário biosociodemográfico; diário de campo; entrevista individual semiestruturada; questionário "Conhecendo as Relações de Namoro".
RESULTADOS: a violência digital foi frequente e naturalizada no namoro; apesar da violência mútua, a bidirecionalidade na violência no namoro não significou simetria de gênero; a pandemia esteve ligada ao aumento diário do uso da Internet via celular, mas não potencializou a violência no namoro. A impulsividade marcou as tentativas de resolução de conflitos no namoro, associada não só à adolescência, mas também à crescente digitalização e aceleração das relações no âmbito da nossa sociedade. Os adolescentes foram vítimas diretas e/ou indiretas de violência nos principais microssistemas de desenvolvimento (familiar, escolar e bairro), expostos simultaneamente a diferentes tipos de violência, desde a infância.
CONCLUSÕES: o microssistema digital pode ser visto como mais um contexto de perpetração e vitimização de violência. Recomenda-se que ações preventivas considerem as várias expressões da violência (física, psicológica, sexual e digital) e seus desdobramentos à saúde física e mental.

Palavras-chave: Violência, Namoro, Adolescência, Desenvolvimento do adolescente, Saúde do adolescente

Introdução

A violência no namoro (VN) é considerada problema de saúde pública que pode impactar a saúde integral de adolescentes a curto e longo prazo,1,2 a literatura3,4 revela índices alarmantes do fenômeno entre adolescentes. A Organização Mundial da Saúde (OMS)1 considera a VN como uma forma precoce de violência entre parceiros íntimos, com as primeiras experiências acontecendo entre 11 e 17 anos de idade. A VN entre adolescentes pode ocorrer de diversas formas, sendo comum as tipologias: psicológica, digital, física, sexual, perseguição (stalking) e financeira,2,4,5 ilustradas pela Figura 1 com base no Centers for Disease Control and Prevention (CDC).2

 



A VN pode ocorrer de forma face a face (off line) e/ou mediada pela Internet (on line). Esta última denominada de violência digital, trata-se de uma tipologia contemporânea da violência, compreendida como ato intencional de controlar, ameaçar, humilhar e insultar a imagem da parceria, incitar constrangimento e perseguição por meio do uso das tecnologias digitais. Manifesta-se de duas maneiras: via comportamentos de controle e monitoramento, além da violência sexual digital.6,7 Diferente da que ocorre na presença física, tal expressão de violência não apresenta impedimentos cronológicos e geográficos para sua ocorrência.6,7 Logo, a ubiquidade, a rapidez do compartilhamento e, por isso, a audiência amplificada são especificidades que caracterizam a sua complexidade.7 A Figura 2 ilustra um possível entendimento da violência digital como uma interseção das violências psicológica, sexual e de perseguição (stalking), que ocorrem off line.

 



O estudo está baseado na Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (TBDH), desenvolvida por Bronfenbrenner.8 Pesquisas na área da saúde pública ancorados nesta abordagem são indicados pela OMS para a compreensão da natureza multifacetada da violência.9 O modelo inclui quatro componentes - Processo-Pessoa-Contexto-Tempo (PPCT) - que entende o desenvolvimento humano de forma interdependente entre os diferentes sistemas em que a pessoa está inserida.8,10 O primeiro componente do modelo é denominado de Processos Proximais, considerados os mecanismos mais potentes para o desenvolvimento humano e referem-se às formas singulares de interação entre a pessoa, objetos e símbolos.8,10 Podem produzir dois tipos de efeitos: competência e disfunção.8,10 Na violência entre parceiros íntimos, os processos proximais são vistos como disfuncionais, visto que a interação sinérgica pode se repetir por anos.11

O segundo componente, Pessoa, abarca as características biopsicossociais do indivíduo.8 São assinalados três atributos: a) forças/disposições consideradas geradoras ou disruptivas; b) recursos - características biopsicológicas da pessoa que podem facilitar o ajuste a determinado contexto; c) demanda - envolvem características biológicas como idade, gênero e raça, sendo esses aspectos passíveis de crenças macrossistêmicas.11

O contexto, terceiro componente do modelo, abrange a interação de quatro níveis ambientais: microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema evidenciando influências bidirecionais dentro e entre eles, situando a pessoa em um sistema de relações afetado por vários níveis do ambiente do mais próximo ao mais distal. O microssistema é o ambiente imediato onde ocorrem os processos proximais da pessoa em desenvolvimento.8,10 O mesossistema considera as relações entre microssistemas. O exossistema é definido como um ambiente em que a pessoa não está diretamente inserida, mas ocorrem fatos que influenciam seu desenvolvimento.8,10 O macrossistema refere-se à subcultura ou cultura, organização social e sistemas de crença de uma determinada sociedade.8,12 Por último, o Tempo ou Cronossistema, relaciona-se à influência do momento histórico, além de incluir as mudanças da pessoa em sua história de vida. É analisada a partir de três níveis: microtempo, mesotempo e macrotempo.8,10

A TBDH foi construída ao longo do século XX. Portanto, modificações são necessárias para compreender o contexto digital no qual adolescentes se desenvolvem. As implicações dessas transformações repercutem sobre o modelo PPCT.12 Na contemporaneidade, os microssistemas digitais são centrais para o engajamento de processos proximais de adolescentes. Nessa perspectiva, evidencia-se a demanda tanto dos microssistemas físicos quanto dos digitais.12 Johnson e Puplampu,13 sugeriram refinamento na teoria de Bronfenbrenner a respeito das influências ambientais no desenvolvimento, que inclui a interação da pessoa com elementos vivos (por exemplo, pares) e não vivos (por exemplo, hardware) com as novas tecnologias de informação e comunicação (TICs), que ocorrem em ambientes imediatos ou diretos, mais comumente casa e escola, na adolescência.14

Quanto ao microssistema digital, podem ser apontadas características relacionadas aos diferentes componentes da TBDH. No mesossistema, a atuação das redes sociais. No âmbito do exossistema, o monitoramento de localização. O colonialismo digital15 ilustra o macrossistema digital: sistema decorrente da digitalização de nossa sociedade. Rosa,16 demonstra que as TICs imprimiram à temporalidade uma aceleração tecnológica, social e do ritmo das vidas, permitindo pensar nas características do cronossistema.

Tendo em vista a complexidade envolvida na VN e a lacuna de investigações sobre a temática, o objetivo deste estudo foi o de investigar a violência digital no namoro entre adolescentes.


Métodos

Pesquisa de natureza qualitativa, desenvolvida pelo método da Inserção Ecológica (IE),17 concretizada num dos microssistemas de adolescentes (ambiente natural): uma Organização Não Governamental (ONG), localizada em Recife/PE, escolhida por conveniência (facilidade de acesso). É uma instituição de assistência social que atende crianças e adolescentes de zero a 18 anos, que oferta formação socioprofissional por meio de cursos livres e técnicos, voltada à iniciação profissional de adolescentes a partir dos 16 anos. A ONG não trabalhava em suas atividades o tema da VN.

Com a pandemia da Covid-19, as atividades com as(os) adolescentes estavam suspensas na ONG. Apenas atividades administrativas, distribuição de alimentos e produtos de higiene foram mantidas. A ONG permitiu que a IE fosse desenvolvida durante o mês de outubro de 2020, com visitas diárias da pesquisadora, mediante rígidos protocolos sanitários.

Os adolescentes foram selecionados com a ajuda de educadores sociais, via WhatsApp, segundo os critérios: idade entre 15 e 19 anos; moças e rapazes; estar namorando/ter namorado anteriormente. Foram excluídos os que residiam ou tinham residido com a(o) namorado(a). O término da captação por novos sujeitos atendeu ao critério de saturação (reincidência e complementaridade das entrevistas).18

Os contatos com os adolescentes ocorreram de modo individual, no jardim da ONG, garantindo o distanciamento físico e o sigilo. Três adolescentes foram entrevistados por dia, em sessões de aproximadamente 1h e 30 minutos, uma ou duas rodadas, de acordo com o modo como cada um(a) respondeu às atividades da pesquisa.

Foram utilizados três instrumentos e uma técnica de pesquisa para a coleta de dados. Instrumentos: 1) Questionário biosociodemográfico (idade, sexo, escolaridade, religião, configuração familiar, tempo de namoro e trabalho); 2) Diário de campo: registro dos processos proximais entre participantes e pesquisadora, além dos relatos de conversas informais com funcionários da instituição; 3) Questionário "Conhecendo as Relações de Namoro": resposta tipo Sim ou Não; totalizando 24 comportamentos. O participante era convidado a expressar mais detalhadamente a resposta, exemplificando situações associadas à VN. Técnica: 1) Entrevista individual semiestruturada: aprofundou a temática da VN entre as(os) adolescentes, com os seguintes eixos: como namoram; concepção de violência e VN; possíveis experiências de VN atual ou passado; estratégias adotadas diante da VN; influências do contexto (micro, meso, exo e macro) nas relações (bairro, escola, ONG, familiares e amorosas).

A constituição do corpus considerou a familiaridade com o fenômeno e o aprofundamento da temática a contar do material de oito adolescentes. A partir das categorias analíticas, foram identificadas as categorias empíricas, interpretadas conforme a TBDH.8 Nesse processo, as entrevistas, estas também compostas pelo questionário "Conhecendo as Relações de Namoro", foram trianguladas com o questionário biosociodemográfico e o diário de campo, analisados sob diferentes olhares (pesquisadora de campo e três pesquisadoras orientadoras). A triangulação visou analisar os dados obtidos mediante essas diferentes fontes, com conclusões baseadas no todo, aprofundando e trazendo mais auditabilidade e credibilidade sobre os fenômenos centrais em análise na pesquisa, para validar ou ampliar as interpretações. Por fim, foi utilizada a Análise Temática de Conteúdo, que privilegiou a inter-relação entre os núcleos Processos-Pessoa-Contexto-Tempo,8 mediante a pré-análise, organização do material, análise e interpretação dos dados.18

A IE buscou o cumprimento de cinco aspectos: i) engajamento de participantes e pesquisadora em uma atividade; ii) regularidade da presença significativa por período de tempo estendido; iii) atividades realizadas sucessivamente mais complexas; iv) reciprocidade nas relações; v) o interesse e estímulo do tema da pesquisa deve ser interessante e estimular nos pesquisadores e nos participantes, a atenção, exploração e imaginação.17

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade (informação suprimida), sob o número CAAE: (24624619.7.0000.5206). Foram atribuídos nomes fictícios com o intuito de assegurar o anonimato.

Resultados e Discussão

Participaram da pesquisa oito adolescentes: quatro moças e quatro rapazes, entre 16 e 19 anos. Não houve perdas, exclusões ou desistências. Um adolescente era criado pelo pai adotivo, um pelos pais, cinco pela mãe, um pela avó materna. As famílias compartilhavam situações de desemprego, pobreza, condições de moradia precária, morte precoce de pessoas próximas e figuras familiares significativas com dependência alcóolica e abuso de drogas como cocaína, embora nenhum deles tenha relatado abuso de álcool ou outras drogas ou gravidez na adolescência, sugerindo uma relação protetiva (mesossistema)8 entre família e ONG. Este aspecto pareceu estar relacionado com o engajamento da maioria das(os) participantes com a instituição, sendo o menor período de seis anos e o maior de 14 anos (Tabela 1).

 



As(os) adolescentes possuíam celular, único dispositivo eletrônico ao alcance com acesso à Internet via wi-fi dividido com vizinhos. Relataram a utilização do aplicativo de trocas de mensagens WhatsApp para a comunicação entre a parceria, como algo corriqueiro nas relações de namoro.

Com base na análise de conteúdo, três categorias emergiram: a) violência digital no namoro; b) violência nos microssistemas família, escola e bairro; c) atravessamentos de gênero.

Violência digital no namoro

A pesquisa evidenciou que a VN entre adolescentes, especialmente a psicológica, a digital e a física figuraram como fenômenos naturalizados e com forte presença nas relações amorosas. Resultados semelhantes foram encontrados em outros estudos.3,4 Em várias narrativas da pesquisa foi possível identificar a bidirecionalidade,19 ou seja, a violência mútua entre a parceria. Entretanto, convém destacar que a dinâmica relacional ora como vítima, ora como perpetrador(a), em alguns casos, não ocorreu em uma mesma situação de conflito.

Algumas "curtidas" de fotos publicadas nas redes sociais geraram conflitos. O controle das atividades on line resulta em invasão da "privacidade digital" como forma de exercer poder e domínio sobre a parceria. Somando-se a isso, podem gerar angústia e serem prejudiciais aos casais quando se tornam um padrão de interação do relacionamento.11,20 Identificou-se, ainda, que o aumento da utilização da Internet via celular pareceu não potencializar os episódios de violência digital, uma vez que as dinâmicas relacionais atravessadas por esse tipo de violência já ocorriam antes do período pandêmico.

O envio e/ou recebimento de imagem, texto, vídeo de si mesmo ou do casal, com conteúdo sexual via celular por meio de aplicativos de troca de mensagens e redes sociais de forma consentida é denominada na literatura como sexting. 7,20 Quando ocorre de forma consensual é considerada como possibilidade de iniciação da atividade sexual mediada pela Internet e pode ser vivenciada de forma saudável; afinal, a descoberta do prazer sexual, do sentir-se desejada(o) pela parceria amorosa são comportamentos comuns nesta etapa do desenvolvimento.7 Nesta pesquisa, as narrativas de alguns adolescentes evidenciaram um cenário diferente, com o entendimento de que o nudes (nome coloquial para sexting) possa ser disseminado de forma não autorizada.
 
"Eu nunca fiz nude. Acho isso uma coisa tão estranha e invasiva de querer se mostrar. Eu não sou um pedaço de carne pra pessoa ficar olhando na foto do celular" (Adélia Prado, 18 anos).

Tu nem conhece a pessoa presencialmente, mas aí as conversas vão ficando mais pra frente. Depois tu briga com a pessoa. Aí a pessoa pode mandar pra outro alguém conhecido e já era, viralizou" (Lenine, 16 anos).


Por outro lado, o compartilhamento não autorizado de imagem íntima,20 designada como "violência sexual digital",7 é uma expressão de violência contemporânea que atinge especialmente as mulheres. Não foi identificada a vitimização ou a perpetração desta tipologia de violência entre as adolescentes entrevistadas. Todavia, a violência digital, que é também reconhecida por comportamentos de controle e monitoramento da parceria, foi amplamente observada nos relacionamentos amorosos destes adolescentes, sem que fosse reconhecido em suas narrativas.

Violência nos microssistemas família, escola e bairro

Identificou-se episódios de violência psicológica no microssistema familiar contra as(os) adolescentes desde a infância. A legitimação da violência no âmbito da família se concretiza, por exemplo, quando os pais, na presença de conflitos, respondem com pouca objetividade e utilizam métodos autoritários que não permitem abertura para a reflexão e o diálogo. De igual forma, verifica-se que o uso de atos violentos como xingamentos tem sido legitimado como condutas aceitas como forma natural de corrigir comportamentos, resolver conflitos e até interagir cotidianamente.21 As relações violentas indicam, segundo a TBDH, disfunção nos processos proximais pela dificuldade da manutenção de trocas recíprocas.11 Na adolescência, as interações no cotidiano da vida familiar, isto é, os processos proximais, são particularmente importantes, sobretudo no engajamento, na comunicação por meio de diálogos, negociações e trocas de argumentos e de opiniões.21,22

A repetição da violência que ocorre no âmbito da família estendida para as relações amorosas desperta interesse na comunidade científica. Pesquisa aponta para o entendimento da chamada transmissão intergeracional da violência4 que, por sua vez, apresenta consonância com o conceito da TBDH do cronossistema,8 que compreende o desenvolvimento por meio das mudanças e repetições nas relações intergeracionais.20

Percebe-se, nas narrativas, a manifestação da violência no microssistema privilegiado, que é o território escolar. O bullying - intimidação sistemática que utiliza poder e controle sobre o outro, especialmente nas relações interpessoais entre pares,23 foi identificado, em alguns casos, atenuado como apenas uma "brincadeira" entre colegas. Estudo revelou que adolescentes que cometem bullying continuaram a afirmar poder e controle sobre o outro em suas relações de namoro quando mais velhos, podendo um ser preditivo do outro.23
 
"Tenho um amigo que é gordo, eu brinco com ele, ele vê que não tem nenhum problema de xingar ele, xingar não, brincar. Chamo de nego burro [. . . ] é normal" (João Cabral, 18 anos).

"Sofri bullying do 6º ao 9º. Eu tentei denunciar, mas eu não tinha forças pra isso. Eu fiquei muito tempo sofrendo [. . . ]. Tudo que eu tinha era dado. As pessoas zombavam da minha cara" (Lia de Itamaracá, 18 anos).


O bairro onde as(os) participantes residiam também é atravessado por episódios de violência, como a violência conjugal, a briga entre vizinhos, além do tráfico de drogas. A imersão de crianças e adolescentes em uma comunidade violenta, como as(os) adolescentes que participaram desta pesquisa, pode funcionar como forte contexto de aprendizagem sobre o sistema de crenças normativas a respeito da violência, o que gera aceitação e naturalização das respostas violentas, sendo tais aspectos culturais arraigados na sociedade brasileira, podendo ser compreendida, a partir do macrossistema.8,22

A "legítima defesa", "a busca por justiça e igualdade" são crenças preocupantes que têm uma ampla presença na comunidade; em lugar de procurar formas para mitigar a ocorrência de comportamentos violentos, acabam por promover um apoio para fazer justiça com as próprias mãos.21 De igual modo, em estudo24 sobre VN entre adolescentes expostos a riscos sociais como violência intrafamiliar, violência na escola e na comunidade, pobreza, desemprego entre outros, designado como polivitimização,24,25 aponta que tais experiências adversas parecem resultar em estressores crônicos que geraram risco à violência.

Pela perspectiva da TBDH, ao pensar no contexto como estruturas concêntricas interdependentes e inter-relacionadas,8 intervenções direcionadas em múltiplos contextos podem diminuir as taxas de perpetração e vitimização da VN durante a adolescência, de modo a projetá-los em trajetórias mais positivas, reduzindo a probabilidade de que se tornem vítimas e perpetradores de violência por parceiro íntimo e, ainda, que sofram desdobramentos adversos à saúde ao longo da vida.

Atravessamentos de gênero

Como características macrossistêmicas foram identificadas algumas crenças sobre os estereótipos e papéis tradicionais de gênero que parecem sustentar e justificar comportamentos não saudáveis em suas relações amorosas, percebidos como "proteção", "forma de amor" e "cuidado".5 A reprodução de padrões sociais de gênero vulnerabiliza moças e rapazes de maneiras diferentes. Mesmo com algumas transformações ocorridas, parece ainda pesar sobre as mulheres a ideia do comportamento recatado e mais reservado como algo de relevância para a concretização do namoro ou escolha da parceria amorosa, aspecto observado nesta pesquisa.

Entendeu-se que alguns episódios de violência estiveram associados às crenças no amor romântico como: "metade da laranja" (ideia da necessidade de se completar apenas diante da companhia de outro); da "onipotência" (o amor verdadeiro tudo pode); dos "ciúmes" (comportamentos de controle da parceria são uma prova de amor).26 Esses crenças e comportamentos estão presentes nas relações íntimas de casais adolescentes e passam, na maioria das vezes, como despercebidos, pois são vistos como formas mais sutis de violência.
 
"Eu sentia que ele gostava de mim, que nunca seria capaz de me oprimir. Eu nunca achei que tava vivendo isso (controle das roupas, amigos e atividades de lazer). Eu achava que era proteção. (Adélia Prado, 18 anos).

"Acho que tem que ter ciúmes, porque quando não tem ciúmes, não se gosta. Minha ex-namorada, tinha muito ciúme de mim. Se ela tem muito ciúme, ela gosta muito de mim" (João Cabral, 18 anos).


Por outro lado, pesquisa realizada com adolescentes do gênero feminino na cidade de São Paulo5 identificou "uma postura feminina que busca quebrar com estereótipos socialmente construídos, embora seja por meio de formas violentas e por vezes não saudáveis"5:6. Tal fato também foi observado nas narrativas de algumas adolescentes que buscam romper o estereótipo de mulher frágil e submissa:
 
Nunca vivi violência física, porque como eu tenho força, se ele (ex-namorado) tentasse alguma coisa, eu ia revidar, ele ia levar um cacete, e ele sabe disso (Adélia Prado, 18 anos).

Já bati mais em meninos na escola. Porque menina você bate e faz assim: "ain, vou dizer a minha mãe" [. . . ] Já dei aquelas tapinhas e puxão de cabelo no meu namorado pra ele se ligar (Lia de Itamaracá, 18 anos).


A análise do núcleo "pessoa" da TBDH, que inclui aspectos como idade, gênero, escolaridade, autoestima, além de comportamentos que cada indivíduo traz para suas relações, indicou o uso da impulsividade como tentativa de resolução de conflitos entre as(os) adolescentes. Esta característica parece estar associada não só à adolescência, mas também à crescente digitalização e aceleração das relações no âmbito da nossa sociedade, aspectos que neste recorte estavam ligados ao envolvimento e à manutenção de relacionamentos amorosos perpassados pela violência. No entanto, uma vez que a TBDH concebe a pessoa como um ser ativo, em processo contínuo de transformação, produto e produtora do desenvolvimento, que recebe influências dos sistemas dos quais faz parte, bem como exerce influência sobre eles,8,11 a impulsividade pode ser compreendida como uma característica passível de ser transformada ao longo do ciclo vital.

Este estudo investigou a violência digital no namoro entre adolescentes. Observou-se que o microssistema digital, com o qual os adolescentes estão diretamente envolvidos, foi visto como mais um contexto de perpetração e vitimização da violência, seja por meio do monitoramento contínuo das atividades on line da parceria ou mesmo por ser mais um lócus de aprendizagem de comportamentos violentos.

Mesmo com a identificação da bidirecionalidade ou violência mútua, não é possível afirmar que a parceria amorosa seja igualmente violenta, marcada por uma simetria de gênero na relação de namoro. Para uma compreensão aprofundada e que considere especificidades sócio-históricas se faz necessário considerar o tipo de violência analisado, as motivações, as consequências e o reconhecimento ou não de comportamentos violentos para moças e rapazes. Verificou-se que as(os) adolescentes eram vítimas diretas ou indiretas da violência nos seus principais microssistemas de desenvolvimento - família, escola e bairro - expostos simultaneamente à violência em vários contextos, desde a infância, fenômeno descrito como polivitimização.

Como limitação da pesquisa, indica-se que a inserção ecológica, desenvolvida no cenário mais acentuado da Covid-19, não pôde ser explorada em todo o seu potencial, uma vez que as atividades com as(os) adolescentes estavam suspensas e os trabalhadores eram alternados em regime de escala.

Recomenda-se que ações preventivas considerem as várias expressões da violência (física, psicológica, sexual e digital) e seus desdobramentos à saúde física e mental. Sugere-se o desenvolvimento de programas como aplicativos ou mesmo intervenções on line que estimulem o uso mais responsável e positivo da internet pelos adolescentes nas relações de namoro.

Referências

1. Organização Mundial da Saúde (OMS). Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Prevenindo a violência juvenil: um panorama das evidências. São Paulo; 2016. [acesso em 2023 Jul 31]. Disponível em: https://nev.prp.usp.br/wp-content/uploads/2016/10/Prevenindo-a-viole%CC%82ncia-juvenil-Pt-Br-1.pdf

2. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). National Center for Injury Prevention and Control. Division of violence prevention. Preventing Teen Dating Violence. United States; 2022. [acesso em 2023 Jul 31]. Disponível em: https://www.cdc.gov/violenceprevention/pdf/ipv/tdv-factsheet_2022.pdf

3. Exner-Cortens D, Baker E, Craig W. Canadian Adolescents' Experiences of Dating Violence: Associations with Social Power Imbalances. J Interpers Violence. 2023 Jan; 38 (1-2): 1762-86.

4. Borges LJ, Heine JA, Dell'Aglio DD. Personal and contextual predictors for adolescent dating violence perpetration. Acta Colomb Psicol. 2020; 23 (2): 460-9.

5. Oliveira APF, Silva SMC, Campeiz AB, Oliveira WA, Silva MAI, Carlos DM. Dating violence among adolescents from a region of high social vulnerability. Rev Latino-Am Enferm. 2021; 29: e3499.

6. Andrade TA, Sampaio MA, Donard V. Applying digital technologies to tackle teen dating violence: A systematic review. Trends Psychol. 2022; 1-19.

7. Andrade TA, Sampaio MA, Donard V. Análise da produção científica sobre a violência digital no namoro entre adolescentes: uma revisão sistemática. Psico. 2020; 51 (4): e34318.

8. Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed; 2011.

9. Sanhueza T, Lessard G, Valdivia-Peralta M, Bustos-Ibarra C. Points of view of Chilean adolescents about asking for help and suggestions to prevent dating violence based on an ecological systems theory. Open J Social Sci. 2022; 10 (1): 458-77.

10. Bronfenbrenner U, Morris PA. The bioecological model of human development. In: Lerner RM, Damon W, editors. Handbook of child psychology: Theoretical models of human development. 5a ed. New York: John Wiley & Sons Inc; 2006. p. 793-828.

11. Paludo SS, Barbosa TP, Barum A. A violência contra a mulher na perspectiva Bioecológica. In: Zamora JC, Habigzang LF. Contribuições da psicologia para enfrentamento à violência contra mulheres: Aportes teóricos e práticos. São Paulo: Dialética; 2021. p. 51-73.

12. Navarro JL, Tudge JRH. Technologizing bronfenbrenner: Neo-ecological theory. Curr Psychol. 2022 Jan; 1-17.

13. Johnson GM, Puplampu KP. Internet use during childhood and the ecological techno-subsystem. Can J Learning Technol. 2008; 34 (1).

14. Johnson GM. Internet use and child development: the techno-microsystem. Austr J Educ Dev Psychol. 2010; 10: 32-43.

15. Couldry N, Mejias UA. Data Colonialism: Rethinking Big Data's Relation to the Contemporary Subject. Television & New Media. 2019; 20 (4): 336-49.

16. Rosa H. Aceleração: a transformação das estruturas temporais na modernidade. São Paulo: UNESP; 2019. 744 p.

17. Koller SH, Raffaelli M, Morais NA. From theory to methodology: Using ecological engagement to study development in context. Child Dev Persp. 2020; 14 (3): 157-63.

18. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014.

19. Lourenço RG, Danilow M, Machado GP. Perceptions and practices on coping in a network of violence between adolescent intimate partners. Rev Enferm UFPI. 2021; 10: e980.

20. Reed E, Wong A, Raj A. Cyber sexual harassment: A summary of current measures and implications for future research. Violence against Women. 2020 Oct; 26 (12-13): 1727-40.

21. Martínez-González M, Haydar CR, Utria LU, Amar JA. Legitimación de la violencia em la infância: un abordaje desde del enfoque ecológico de Bronfenbrenner. Psicol Caribe. 2014; 31 (1): 133-60.

22. Santos TM. Prevenção à violência no namoro: avaliação de necessidades e desenvolvimento de intervenções. [Dissertação]. Brasília (DF): Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília; 2019.

23. Humphrey T, Vaillancourt T. Longitudinal relations between bullying perpetration, sexual harassment, homophobic taunting, and dating violence: evidence of heterotypic continuity. J Youth Adolesc. 2020 Oct; 49 (10): 1976-86.

24. Reidy DE, Early MS, Holland, KM. Boys are victims too? Sexual dating violence and injury among high-risk youth. Prev Med. 2017 Aug; 101: 28-33.

25. Guerra C, Pinto CC, Hernández VA. Polivictimización y su relación con las conductas autoagresivas y con la depreción en adolescentes. Rev Chil Neuro-Psiquiatr. 2019; 52 (2): 100-6.

26. Oliveira RNG, Fonseca RMGS. Amor e violência em jogo: descortinando as relações afetivo-sexuais entre jovens à luz de gênero. Interface. 2019; 23: 1-16.

Recebido em 15 de Fevereiro de 2023
Versão final apresentada em 26 de Julho de 2023
Aprovado em 1 de Agosto de 2023

Editora Associada: Lygia Vanderlei

Contribuição dos autores: Andrade TA, Sampaio MA, Donard V e Moraes PM: concepção do projeto, análise do material, redação, crítica e revisão do manuscrito. Andrade TA: desenvolveu a pesquisa de campo. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.

Copyright © 2024 Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por: