Publicação Contínua
Qualis Capes Quadriênio 2017-2020 - B1 em medicina I, II e III, saúde coletiva
Versão on-line ISSN: 1806-9804
Versão impressa ISSN: 1519-3829

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ARTIGOS ORIGINAIS


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Desvelando em diferentes culturas a evolução da gestação em óbito fetal

Gisele Ferreira Paris1; Francine de Montigny2; Sandra Marisa Pelloso3

DOI: 10.1590/1806-9304202300000165 e20210165

RESUMO

OBJETIVOS: descrever a identificação do óbito fetal durante a gestação em brasileiras e canadenses.
MÉTODOS: estudo clínico-qualitativo com mulheres que vivenciaram o desfecho do óbito fetal nas suas gestações, residentes em Maringá (Brasil) e participantes do Centre d'Intervention Familiale (Canadá). A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista semidirigida com a pergunta: Como ficou sabendo da morte do seu bebê? Foram realizadas leituras e os aspectos relevantes foram categorizados em temas conforme os locais da confirmação do óbito.
RESULTADOS: nos dois países, as principais causas dos óbitos foram relacionadas às complicações na gravidez e parto, problemas de saúde da gestante ou do feto. As brasileiras com frequência maior dos óbitos no terceiro trimestre e as canadenses, no segundo trimestre. As categorias foram identificadas nos consultórios na rotina pré-natal, nos serviços de emergência, e nos serviços de imagem, ao detectar o óbito esperado nos casos de malformações congênitas de prognóstico ruim.
CONCLUSÃO: a determinação óbito fetal durante a gestação foi em razão das possíveis intercorrências intrínsecas do período gravídico. A partir das experiências das mulheres, foi possível mostrar a prática clínica da identificação do óbito fetal de acordo com o cenário cultural. Contínuos estudos, sobre a assistência pré-natal das mulheres que tiveram óbito fetal, são necessários para detecção precoce das condições patológicas e intervenções adequadas.

Palavras-chave: Morte fetal, Complicações na gravidez, Malformações congênitas, Brasil, Canadá

ABSTRACT

OBJECTIVES: to describe the identification of fetal death during pregnancy in Brazilian and Canadian women.
METHODS: clinical-qualitative study with women who experienced the outcome of fetal death in their pregnancies, living in Maringá (Brazil) and participating in the Center d'intervention familiale (Canada). Data collection was performed through a semi-structured interview with the question: How did you find out about your baby's death? Readings were performed and the relevant aspects were categorized into themes according to the places where the death was confirmed.
RESULTS: in both countries, the main causes of death were the same, related to complications in pregnancy and childbirth, and health problems of the pregnant woman or fetus. Brazilian women had a higher frequency of deaths in the third trimester and Canadian women experienceda majority of deaths in the second trimester. The stillbirthswere found in different places, times and moments categorized at prenatal routine consultation, emergency care, expected death from congenital malformations of poor prognosis and labor.
CONCLUSIONS: the determination of fetal death during pregnancy was due to possible intrinsic intercurrences of the pregnancy period. Based on the women's experiences, it was possible to demonstrate the clinical practice of identifying fetal death according to the cultural scenario. Continuous studies on prenatal care for women who had stillbirths are necessary for early detection of pathological conditions and appropriate interventions.

Keywords: Fetal death, Pregnancy complications, Congenital abnormalities, Brazil, Canada

Introdução

Estudos com óbitos fetais são imprescindíveis em todo o mundo, em decorrência da variação na taxa de mortalidade fetal que poderia ser evitada por corretas intervenções. As informações sobre as causas da natimortalidade quando disponíveis, são frequentemente relatadas nos países desenvolvidos por complicações da placenta.1 Já nos países em desenvolvimento, que representam 98% dos casos de óbitos fetais, são atribuídos à infecções, complicações durante o trabalho de parto e nascimento, malformações congênitas, síndromes hipertensivas, o diabetes pré-existente, as infecções durante a gestação, a consulta de pré-natal inadequada e a baixa qualidade da assistência ao parto e intraparto, destacando o acesso ao encaminhamento oportuno para o parto.2

No Brasil e no Canadá, o monitoramento dos óbitos fetais é realizado por meio de sistemas de informações de cada país, que consideram óbito fetal, a morte antes da expulsão completa ou extração a partir de um produto de concepção com 22 semanas ou peso fetal igual ou superior a 500 g, conforme critério estabelecido por várias organizações internacionais3 e pela 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID 10) devido à melhora nas taxas de sobrevivência.

A gravidez, mesmo quando não planejada, mas normalmente aceita, traz consigo no fenômeno do imaginário psíquico e social o destino de um nascimento, uma vida, uma mãe, um pai, uma família. Nessa representação cultural da gravidez, quando a gestação evolui para óbito fetal, manifesta-se o paradoxo entre a vida e a morte, com a tecnologia do mundo moderno e a contradição da denominada "ordem natural das coisas", tanto para o casal, família, quanto para a equipe de saúde.4

A experiência de ter um filho é normatizada pela cultura da mulher, e percebe-se que o período gestacional não é isolado, fechado em si mesmo, mas engloba uma série de fatores interligados. No atendimento da consulta de pré-natal é necessário visualizar o ambiente onde se desenvolveu a gestação, as preocupações desse período, que infelizmente mesmo sendo a principal a de perder o bebê,4 ainda muitas gestantes não têm referência garantida nos serviços de saúde para quando manifesta alguma alteração na gestação, tendo de procurar por dois ou mais serviços de urgência e emergência até conseguir assistência para a intercorrência.5

Embora a perda gestacional possa ser uma experiência universal, a sua representação e a influência sobre a vida de um indivíduo são modificadas por sua personalidade, cultura e sociedade.6-7 Estudos que abrangem a perda fetal apontam este evento como um dos indicadores de saúde para analisar as condições de vida de uma população, uma vez que reflete diretamente a saúde da mulher gestante, a qualidade da assistência obstétrica e a utilização dos serviços de saúde. Diante da literatura, o objetivo do presente estudo foi descrever a identificação do óbito fetal durante a gestação em brasileiras e canadenses.

Métodos

O presente estudo trata-se de uma sequência7 que completou uma pesquisa multicêntrica. Nesta apresentação adotou-se o método clínico-qualitativo, com 26 mulheres residentes no município de Maringá (Brasil), no ano de 2013, e de 18 mulheres participantes do Centre d'études et de Recherche en Intervention Familiale (CERIF), na Universidade do Quebec, em Outaouais no Gatineau (Canadá), que vivenciaram o óbito fetal no período de 2010 a 2013.

O método clínico-qualitativo tem por objetivo adequar os problemas originados na prática clínica, apoiado no empirismo e na teoria ligada à atuação clínica. O método clínico-qualitativo é a atitude clínica do pesquisador em acolher os significados atribuídos pelos indivíduos em relação aos fenômenos vividos no processo saúde-doença, e demonstra as experiências cotidianas dos sujeitos no seu grupo social, determinando um molde à vida individual que é partilhado culturalmente.8

A coleta de dados foi finalizada durante o ano de 2014, por meio de entrevista semidirigida, utilizando a questão aberta norteadora: Como ficou sabendo da morte do seu bebê? Também foram coletadas informações acerca da caracterização das mulheres: idade, religião, tipo de parto, duração da gestação e as causas do óbito fetal.

Para as mulheres brasileiras, foi considerado critério de inclusão todas as mulheres que tinham tido óbito fetal no ano de 2013 e residiam em Maringá-PR, e critério de exclusão todas as mulheres cujo endereço não foi localizado. Ressalta-se que todas as brasileiras aceitaram o convite e somente quatro mulheres não foram localizadas em razão do cadastro de endereço estar incorreto na declaração de óbito.

Para as canadenses, como tem grupo de apoio as famílias após perda fetal no CERIF foi considerado critério de inclusão todas as mulheres participantes do CERIF que tiveram óbito fetal no período de 2010 a 2013. O critério de exclusão foi todas as mulheres que participaram em período diferente do delimitado no estudo.

A entrevista semidirigida foi disponibilizada nas duas línguas oficiais da população de estudo (francês e português), realizada em local privativo de acordo com a sugestão da entrevistada e durou em média 80 min. As entrevistas foram gravadas em áudio e complementadas com as anotações em diário de campo ao final de cada entrevista, para registro das expressões não verbais, manifestações e reações das mulheres.

Posteriormente, as entrevistas foram transcritas e submetidas a leituras e releituras, a fim de identificar aspectos relevantes. Na sequência, foram categorizadas em tópicos de discussão que correspondiam ao objetivo da pesquisa e aplicadas às regras de exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência. Os tópicos de discussão foram debatidos com a equipe de pesquisadores pertencentes à pesquisa, e realizada análise qualitativa de conteúdo, amparada pelo referencial teórico psicodinâmico.8

A análise qualitativa de conteúdo, na intenção de garantir uma compreensão da perspectiva da mulher estudada dentre as várias interpretações aceitáveis, considera a discussão grupal dos resultados entre os pesquisadores, uma validade de um resultado correto e representativo da realidade empírica e aceitável pela comunidade científica. A utilização do referencial teórico psicodinâmico, no método clínico-qualitativo, envolveu os aspectos conceituais de compreensão das atitudes de estados mentais das pessoas em movimento e as influências de níveis inconscientes.8

Os resultados foram organizados em categorias temáticas de modo a sistematizar as ideias que contemplassem o objetivo do estudo, permitindo então a inferência aos resultados encontrados e discutidos com base na literatura. O anonimato das mulheres entrevistadas foi garantido e, para a apresentação dos resultados, estas foram identificadas com a letra "M", seguida da inicial de cada país Brasil (B), Canadá (C), e numeradas conforme a ordem de inclusão das participantes. Os nomes dos hospitais e serviços de saúde também não foram divulgados.

Para análise das informações coletadas com relação à caracterização das mulheres foi utilizada a análise descritiva pelo software Microsoft Excel®. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Maringá, sob o parecer 407.840/2013.

Resultados

Em relação às características sociodemográficas e reprodutivas das brasileiras, a média da idade foi de 29 anos; todas tinham religião (católica ou evangélica), a maior parte dos partos foram cesárea e a maioria dos óbitos no terceiro trimestre. Para as canadenses, a média da idade foi de 31 anos, apenas metade tinham religião (católica), a maior parte dos partos foram vaginais e a maioria dos óbitos no segundo trimestre.

As causas dos óbitos no Brasil estiveram relacionadas ao descolamento de placenta, transtornos maternos hipertensivos, malformações congênitas, hemorragia, hipóxia não especificada, incompetência istmo-cervical, circular de cordão, síndrome de mãe diabética, gravidez múltipla, ruptura uterina ou causa mal definida. No Canadá, os óbitos ocorreram por descolamento de placenta, hemorragia, interrupção por malformação congênita, circular de cordão, trabalho de parto, pré-eclâmpsia, citomegalovírus ou causa mal definida.

A evolução da gestação em óbito fetal foi identificada pelas intercorrências clínicas, complicações na gravidez e no parto e problemas de saúde da gestante e do feto. Para lidar com a angústia, a ansiedade e a vivência do sofrimento da perda, foi necessário compreender o significado destes fatos a partir das manifestações das mulheres.

No contexto das falas expressadas, foi possível perceber fenômenos comuns às mulheres que experienciaram a perda fetal, e organizado em três categorias temáticas conforme os locais em que foi diagnosticado a evolução da gestação em óbito fetal. As categorias temáticas identificadas do desfecho da gestação em óbito fetal foram: nos consultórios na rotina pré-natal, nos serviços de emergência, e nos serviços de imagem na realização da ultrassonografia, ao detectar o óbito esperado nos casos de malformações congênitas de prognóstico ruim.

Identificação da gestação em óbito fetal durante consulta de rotina pré-natal

A rotina do acompanhamento pré-natal e a percepção de que a gestação não estava evoluindo bem, levaram a mulher à busca de atendimento médico com o intuito de obter informações sobre o seu estado de saúde e do feto. Iniciou-se, assim, um longo processo, marcado quase sempre por ansiedade, medo e aflição frente ao desconhecido.

Foi desesperador o diagnóstico da gestação em óbito fetal na consulta de rotina do pré-natal. São notícias de óbitos imprevisíveis neste local, pois normalmente o esperado era um diagnóstico do desenvolvimento da gestação e não uma consulta de identificação do óbito fetal.
 
Observei uma demora para ouvir o coração, que na última consulta foi em segundos. O médico abaixou mais a minha calça e abriu mais minha blusa. Eu sabia que não era normal, não ouvir o coração. Vendo o rosto do médico, entendi que havia algo errado. Comecei a chorar antes mesmo do médico dizer alguma coisa. Até o nascimento, sentia esperança e desespero (MC7).
A médica não ouviu os batimentos dele (bebê 1), não disse nada e me encaminhou para confirmar no ultrassom. A gente ia marcar o parto, pois já estava com 38 semanas, mas não marcamos porque ela (bebê 2 com fenda palatina) estava com baixo peso, e estávamos segurando o máximo que podia por causa dela (MB3).

Identificação da gestação em óbito fetal nos serviços de emergência

Além da identificação da gestação em óbito fetal no consultório durante a rotina de pré-natal, alterações patológicas do organismo da mulher na gestação fizeram com que procurasse os serviços de emergência. Esse motivo de preocupação também foi despertado nos familiares que acompanharam esta mulher na busca de assistência e começaram a peregrinação em busca de atendimento. A categoria identificada nos casos da evolução da gestação em óbito fetal foi devido a procura por serviços de emergência em razão de algum incômodo do estado de saúde.
 
Fui ao médico, porque sentia muito mal-estar. O médico disse que estava tudo normal. Ao voltar para casa, comecei a ter dor no abdômen. Pensei que era problema de estômago, e sofri durante todo o fim de semana. Na segunda-feira, observei sangramento na boca e perdi a consciência. Os paramédicos disseram que não era urgente e recomendaram retorno ao médico (...) Para ir à consulta, precisei de ajuda do meu marido e do meu pai. O médico transferiu-me imediatamente para o hospital, pois estava com hemorragia interna e pré-eclâmpsia (...) O bebê morreu pouco antes do parto de emergência, pelos medicamentos que recebi (MC9).
Estava com minha pressão alta que não normalizava. Fui ao hospital que me atende, o médico plantonista pediu para localizar um obstetra, o meu estava viajando e não foi localizado outro. Em outro hospital, o ginecologista fez cardiotoco e medicação, e me deixou ir embora para procurar o meu médico. Fui ao cardiologista e no doutor quando retornou. Após tive outro sangramento muito forte. Minha placenta descolou inteira e tive de fazer uma cesárea de emergência (MB14).

Os casos clínicos da perda fetal nos dois países apontam ainda que o momento da decisão em procurar atendimento ocorreram em situações que implicaram à realização do parto, quando entrou em trabalho de parto, a bolsa rompeu, presença de contrações, o bebê "parou de mexer" ou na presença de alterações clínicas do organismo materno. Os relatos da evolução da gestação em óbito fetal no trabalho de parto envolveram:
 
Minha bolsa rompeu. Fui para o hospital fazer o parto. Como tinha poucas contrações, instalaram ocitocina. Quando fizeram epidural, o coração do bebê caiu, mas recuperou-se rapidamente. Cerca de 30 minutos após a epidural, os médicos deram-me mais ocitocina. Dez minutos depois, vi o sangue fluindo, foi um descolamento prematuro da placenta. Fui encaminhada para cesariana de emergência. Na sala de recuperação, ao ver meu marido, percebi que minha filha estava morta. Eu não precisava ouvir palavras para entender o que tinha acontecido (MC8).
Estava tudo bem na gestação e o médico disse que eu poderia realizar o meu desejo do parto normal. Comecei a ter contrações que perdiam o foco nos movimentos fetais. As contrações diminuíram na noite do outro dia. Comecei a me preocupar com o fato de que o trabalho de parto não havia progredido. Nesse momento, me veio a dúvida de que o bebê podia ter morrido (MC5).
Não gosto nem de lembrar (choro). Fui ao posto de saúde e pedi para médico me encaminhar para fazer cesariana, pois já estava com 38 semanas, pressão alta (210x170), e nas outras duas gestações o médico encaminhou para cesárea. O médico disse que não podia, porque seria o médico do hospital que iria fazer o parto (...) Na sexta-feira santa, ele mexeu de manhã e depois não mexeu mais. No dia seguinte, fui cedo ao hospital, o estudante e a médica não ouviram o coração, e me encaminharam para o ultrassom. No ultrassom não me falaram nada, e como já estava desconfiada, fiquei mais nervosa. Após a médica e estudante me disseram que ele estava em óbito. Tentaram parto normal, não tive dilatação e fizeram cesárea (MB5).

Identificação da gestação em óbito fetal nos serviços de imagens na realização da ultrassonografia nos casos das malformações congênitas de prognóstico ruim

Outra categoria identificada foi quando o diagnóstico do óbito fetal ocorreu na evolução esperada nos casos de malformação congênita identificado na ultrassonografia (USG). No Brasil, os óbitos fetais por malformação ocorreram no terceiro trimestre, tendo em vista que apenas nos casos de anencefalia são considerados incompatível à vida seria permitido induzir o parto terapêutico antes do trabalho de parto efetivo.

No Canadá, apesar da doutrina do cristianismo, a interrupção gestacional terapêutica é possível até 23 semanas nos casos de malformações congênitas de prognóstico ruim e/ou inviável à vida e quando a mulher fizer esta opção. A interrupção terapêutica, mesmo em países onde está legalizado, não é aceita pelo cristianismo. Assim, cabe aos membros religiosos que participam da equipe de saúde respeitar a decisão da mulher em sua autonomia de ser humano.
 
O radiologista que emitiu o diagnóstico (osteogênese imperfeita) e o prognóstico (letal) da malformação foi significativo na minha decisão. A clareza de suas observações e explicações, bem como a confiança emitida no prognóstico ajudou nós (pais) a tomar a melhor decisão para mim e para o feto de interrupção médica (MC16).
Quando fiz ultrassom morfológico descobri que ela tinha síndrome de Patau. O médico da USG deu entender que não estava nada bem. O médico do pré-natal disse que não ia sobreviver e que era incompatível com à vida. Eu entrei em desespero e pensei: -Vou ter que esperar até nascer ou no máximo 3 meses de vida? Meu médico não quis tirar e me aconselhou a esperar que seja feita a vontade de Deus. Com 8 meses de gestação tive sangramento fui no médico, ele falou que eu podia ir para casa que ia começar as contrações. Quando estavam fortes voltei para o hospital, após quase um dia não tive dilatação e fizeram cesárea (MB21).

Embora a ciclo gravídico seja igual em todas as regiões do mundo, a partir das necessidades que envolvem esse período nos diversos grupos culturais, vão sendo moldados e criados padrões e comportamentos que geram uma determinada estrutura e organização social, que podem apresentar semelhanças e/ou diferenças. A consulta de rotina pré-natal com a realização dos exames clínicos, laboratoriais e de imagem são suporte para avaliação da evolução da gestação. Conforme cultura de cada país, baseando nos resultados dos exames é possível organizar e direcionar condutas e redes de atenção e apoio.

Discussão

A principais causas dos óbitos fetais nos dois países envolveram problemas na saúde da gestante, do feto e da gravidez. A identificação da gestação em óbito fetal foi amparada nas complicações clínicas do organismo da mulher, no trabalho de parto, na realização da ultrassonografia e na percepção de que a gestação não estava evoluindo bem, demonstrando a trajetória percorrida nos serviços de saúde. Em alguns casos, a mulher já havia sido orientada da provável ocorrência do óbito e em outras situações foram surpreendidas pela fatalidade.

No Brasil e em todas as suas regiões, vem apresentando um quadro estacionário na taxa de mortalidade fetal a partir dos anos 2000, com taxa de mortalidade fetal do país de 9,3 por 1.000 nascimentos. No entanto, com relação as características dos fetos é crescente a tendência da causa dos óbitos fetais por malformações congênitas, deformidades e anomalias cromossômicas. As causas dos óbitos por afecções originadas no período perinatal têm tendência de aumento somente na região Nordeste, enquanto as outras causas básicas mostram tendência de aumento nas regiões Sudeste e Sul.9,10

Entre os óbitos fetais por causas evitáveis na realidade brasileira predominaram os reduzíveis por melhor atenção à mulher na gestação e no parto, sendo as principais causas de morte doenças hipertensivas, alterações placentárias, sífilis congênita precoce e hipóxia intrauterina antes e durante o trabalho de parto, e a maior magnitude de mortalidade de filhos de mãe com baixa escolaridade quando comparados aos de mãe com alta escolaridade.9 Considerando a frequência dos óbitos fetais por morbidade materna e situação socioeconômica desfavorável, pode ser amenizado com maior investimento na atenção pré-natal, especialmente em mães de maior vulnerabilidade social.

É relevante destacar que no Brasil, o atendimento pré-natal gratuito é disponível nas Unidades Básicas de Saúde, com remuneração pelo sistema público de saúde ou em consultórios privados, quando as consultas são pagas diretamente pela cliente ou indiretamente, por meio de convênios médicos ou sistema de seguro saúde. Apesar da universalidade, equidade e integralidade do serviço público, é no serviço privado que a mulher tem a maior assistência no quesito número de consultas, exames laboratoriais e obstétricos, vacinas e ultrassonografia.11

Com relação ao Canadá, estudos12,13 têm mostrado que as taxas mais elevadas de natimortos ocorrem com os habitantes em áreas rurais isoladas, denominados de indígena, aborígene, primeiras nações ou autóctones, que não utilizam os idiomas inglês ou francês,13 em mulheres com idades extremas, adolescentes ou com 35 ou mais anos,12 com baixa escolaridade, e fumantes, presentes em maior prevalência nessas regiões afastadas.14

Em análise detalhada das principais causas de morte, conforme regiões do Canadá, para a população Inuit foram encontrados a restrição do crescimento fetal, os distúrbios da placenta e anexos e anomalias congênitas. Para os moradores das Primeiras Nações, foram apontadas diabetes, hipertensão e anomalias congênitas. Nos poucos casos na população não aborígene foram detectados os distúrbios da placenta e anexos.12

A maior ocorrência dos óbitos fetais nos finais de semana, em realidades encontradas no Brasil e em países desenvolvidos, não foi encontrada no Canadá, quando realizados os ajustes estatísticos necessários, confirmando-se que a acessibilidade e qualidade da assistência são mantidas nos finais de semanas na realidade canadense. No entanto, a barreira linguística e a falta de instalações adaptadas às normas e culturas impedem que a população autóctone tenha acesso aos benefícios das melhorias de atendimento e serviços de saúde nos centros urbanos.12

A desigualdade em relação à maior prevalência da gestação tardia e a termo, nos óbitos fetais dos aborígenes do que dentre os não aborígenes, é motivo de preocupação, porque os casos de natimortalidade no terceiro trimestre são potencialmente evitáveis,12 o que demonstra a necessidade de melhorias na qualidade da assistência pré-natal para os aborígenes, principalmente pelas suas características comuns de excesso de peso e maior uso do tabaco.14

O governo canadense também oferece a assistência pré-natal gratuita para as mulheres legalmente residentes no país. Nos casos de baixo risco, a consulta é habitualmente realizada pelo médico de família ou por parteira profissional de nível universitário e, nos casos de alto risco, é acompanhada pelos obstetras. A atenção pré-natal também pode ser realizada por seguro de saúde pago pelas gestantes em clínicas específicas. Embora 98,6% dos nascidos vivos e 97,8% dos óbitos fetais tenham ocorrido no hospital no período de 2007 a 2011, foi crescente, nesse período, a variação do número de nascimentos não hospitalares, de mais de 40% para os nascidos vivos e de mais de 100% para os óbitos fetais.15

Nas regiões indígenas, normalmente, o acompanhamento pré-natal é realizado pelas parteiras locais (midwives), onde 97% dos partos são vaginais com 85% acompanhados por essas parteiras tradicionais e as principais causas de encaminhamento para assistência médica são os trabalhos de parto prematuro e os casos de pré-eclâmpsia. Na região Inuit, a menor taxa de mortalidade perinatal ocorre quando o acompanhamento é feito por médico, em relação às parteiras, porém sem significância estatística. Desse modo, esse resultado ainda não é conclusivo, tendo em vista que, nas taxas em que se excluíram os prematuros extremos, os resultados foram melhores quando os partos foram conduzidos pelas parteiras tradicionais.13

O sucesso do serviço de obstetrícia na região aborígena Inuit é amparado pelo conhecimento e habilidades das parteiras locais e por meio do apoio de uma equipe interprofissional, o que demonstra a possibilidade de cuidados locais culturalmente competentes e seguros, mesmo em comunidades distantes e sem capacidade de cesariana.13

Diante da ocorrência de complicações à saúde do feto relacionadas à gravidez, a detecção de risco implica no atendimento dos serviços de urgência. Em diversos países, tem-se o serviço pré-hospitalar, sendo representado no Brasil pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) para promover, nas situações de urgência, o transporte e atendimento adequado e seguro para população que sofreu algum agravo à sua saúde, de natureza clínica e/ou obstétrica. A realidade evidencia elevada demanda não pertinente ao serviço pré-hospitalar de urgência, de acordo com o protocolo de classificação de risco em obstetrícia, do Ministério da Saúde, principalmente na assistência às gestantes do terceiro trimestre, ao referir sinais e sintomas fisiológicos do trabalho de parto sem caráter expulsivo.16

Dentre os recursos necessários nas condições clínicas e/ou obstétricas desfavoráveis para saúde da gestante e/ou do feto que podem ocorrer, é realizado encaminhamento da gestante a um serviço de referência com atenção especializada na avaliação e seguimentos. A ultrassonografia é o recurso mais utilizado para diagnosticar as complicações da gravidez e o óbito fetal e contribuiu para a conduta na assistência obstétrica. A ultrassonografia obstétrica pode identificar placenta prévia, má posição fetal, gestação múltipla, gravidez ectópica, produtos placentários retidos após o parto, malformações fetais, restrição do crescimento fetal, poli e oligodrâmnio, miomas obstrutivos e a morte fetal.1

A realidade em países onde é permitida, aponta que a interrupção terapêutica de gravidez por malformação congênita é uma experiência emocionalmente intensa. A notícia do diagnóstico de uma malformação é recebida com choque e surpresa pela mulher. A tomada de decisão de prosseguir ou interromper a gravidez foi considerada a mais difícil da vida do casal pela ambivalência de sentimentos e dilemas morais que produziu.17

O diagnóstico de malformação fetal é capaz de desequilibrar a saúde mental dos genitores. Ao confirmar a existência de uma anormalidade fetal, o que antes era apenas um medo em nível de fantasia, torna-se realidade e a forma como cada mulher vivencia essa situação é única e singular, no entanto todas vivenciam o fim de um desejo, marcado por sentimento de culpa, revolta e frustração que merece atenção e acolhimento adequado por parte dos profissionais de saúde.18

Para melhorar a assistência e os indicadores na mortalidade fetal é preciso haver investimentos nos serviços de saúde, na formação profissional, na informação para as mulheres e na sociedade, sobre a existência de tecnologia e de direitos que favorecem um nascimento mais seguro e humanizado. A organização desse trabalho deve ser de forma integrada e contínua, incluindo planejamento e ações do setor saúde e intersetoriais.19

No presente estudo identificou-se que a evolução da gestação em óbito fetal foi em razão das possíveis intercorrências intrínsecas do período gravídico. Com o método clínico-qualitativo foi possível, a partir das experiências das mulheres, demonstrar a prática clínica da identificação do óbito fetal conforme contextos culturais diferentes. Para as mulheres dos dois países foram encontradas as mesmas principais causas dos óbitos fetais com diferença na duração da gestação em razão das questões culturais de possibilidade de interrupção terapêutica da gravidez.

Embora possam ser transferidos os dados desse estudo em populações com características e contextos semelhantes, alerta-se para a possível limitação do estudo quanto à transferibilidade dos achados pela coleta de dados limitar as mulheres de apenas um município do Brasil e de uma região do Canadá.

Pela possibilidade de malformação congênita incompatível à vida, observa-se a necessidade de inclusão nos currículos universitários e técnicos dos profissionais da área de saúde o tema, para que a prática profissional seja adequada nos casos de óbito fetal e a mulher e o casal recebam assistência coerente nesses casos.4

Infelizmente, os eventos dos óbitos fetais ainda ocorrem nos países desenvolvidos e em desenvolvimento e demonstram a qualidade e quantidade de bens e serviços disponíveis a uma pessoa ou a uma população inteira. Estudos sobre a assistência no pré-natal das mulheres que tiveram óbito fetal são necessários para a detecção precoce das condições patológicas e apoio à estruturação do atendimento adequado.

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Recebido em 23 de Abril de 2021
Versão final apresentada em 29 de Novembro de 2022
Aprovado em 8 de Fevereiro de 2023

Editor Associado: Sheila Morais

Agradecimentos: Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro.

Contribuições dos autores: Paris GF, Montigny F, Pelloso SM contribuíram na concepção e delineamento do estudo.
Paris GF realizou a revisão bibliográfica, coleta de dados e análise dos resultados.

Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.

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