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Qualis Capes Quadriênio 2017-2020 - B1 em medicina I, II e III, saúde coletiva
Versão on-line ISSN: 1806-9804
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EDITORIAL


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Qual papel da comunidade científica no combate à pandemia de COVID-19? Reflexões sobre fake news, revistas predatórias e políticas públicas

Mayara Ferreira Biasi 1 https://orcid.org/0000-0001-9490-952X Melania Maria Ramos Amorim 2 https://orcid.org/0000-0003-1047-2514 Leila Katz 3 https://orcid.org/0000-0001-9854-7917

DOI: 10.1590/1806-9304202200030001

O Brasil foi um dos países mais afetados pela pandemia de COVID-19, com cerca de 684.262 óbitos confirmados. 1 É o segundo país com mais casos de morte pela doença, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. 2 Estima-se que quatro quintos dessas mortes poderiam ter sido prevenidas. 3

Além do elevado número total de casos e óbitos pela COVID-19, chama atenção a mortalidade materna pela doença, que não foi verificada em outros países. Antes da pandemia a razão de mortalidade materna (RMM) no país já era inaceitavelmente alta, muito acima da meta acordada em tratados internacionais - como o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável que propõe a redução da taxa de mortalidade materna em 30% em 2030. Em 2019 foi identificada uma RMM de 57,9, e após a COVID-19 em dois anos a taxa de mortalidade subiu 77%, ultrapassando 107 mortes maternas por 100.000 nascidos vivos em 2021. 4 Enquanto isso, documentos internacionais divulgavam que, apesar do maior risco de desfecho materno desfavorável, gestantes com COVID-19 não tiveram maior chance de óbito. 5

A principal hipótese para justificar esse fenômeno é a desigualdade de acesso à serviços de saúde no Brasil. Mesmo contando com um sistema de saúde público, gratuito e universal, cerca de 22% das pacientes no ciclo gravídico-puerperal que foram a óbito por COVID-19 não tiveram acesso à Unidade de Terapia Intensiva e 14% não chegaram nem a ser intubadas. 5,6 O Brasil tem dimensões continentais, e serviços terciários e de alta complexidade em saúde ainda estão muito concentrados nas capitais, deixando pacientes que vivem nos interiores vulneráveis a atrasos e falta de acesso ao atendimento adequado devido a questões logísticas e transporte. Além disso, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido subfinanciado ao longo dos anos, recebendo aporte governamental de apenas 3,8% do Produto Interno Bruto em 2019 - valor limitado atualmente pela Emenda Constitucional n° 95 (Teto dos Gastos Públicos), aprovada em 2016. Com isso, pacientes de média e baixa renda, que não têm acesso à saúde suplementar, enfrentam as consequências da superlotação e recursos materiais e humanos insuficientes.

Outro fator que foi determinante para a mortalidade brasileira pela doença ser tão alta foi a falta de políticas públicas consistentes e em tempo hábil para garantir distanciamento social, vacinas, medicamentos e recursos de alta complexidade para toda a população. O governo investiu na promoção de uma suposta “imunidade de rebanho”, e com isto estimulou o povo nas ruas, não promoveu lockdown, recomendou medicamentos sem efetividade comprovada para a COVID-19 e adotou inicialmente uma atitude antivacinas. 8

Além disso, os investimentos em campanhas informativas foram mínimos, enquanto infelizmente estamos enfrentando a viralização de “fake news”, inclusive na comunidade científica. Diversos profissionais da área da saúde, sobretudo, ligados ao governo, defenderam a prescrição de medicações sem benefício comprovado, divulgando falsos efeitos adversos às vacinas e propagandeando condutas baseadas em artigos publicados em revistas predatórias e em pré-print.

Nesse contexto, estamos enfrentando uma baixa adesão à vacinação, que é uma das principais medidas para evitar mortalidade e complicações graves da COVID-19. Em abril, 14 meses após o início da vacinação no Brasil, o MS estimou mais de 18 milhões de pessoas com o esquema vacinal incompleto. 9 Dados do boletim do Observatório Obstétrico Brasileiro de 15 de setembro de 2022 mostram que apenas 37% das gestantes e puérperas vacinadas estão com o esquema completo (primeira e segunda dose ou dose única). 9

Por isso, deve ser compromisso de pesquisadores e de revistas científicas contribuir para a divulgação de informação científica de qualidade e combate às “fake news”. Acreditamos que é necessário gerar conhecimento para orientar políticas públicas e que possam ser apresentadas à população, de forma a colaborar para a superação da tragédia da pandemia de COVID-19 no nosso país.

Referências

1. Ministério da Saúde (BR). Coronavírus Brasil. [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2022. [acesso em 2022 Set 5]. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/

2. World Health Organization (WHO). WHO Coronavirus (COVID-19) Dashboard | WHO Coronavirus (COVID-19) Dashboard With Vaccination Data. Geneva: WHO. [acesso em 2022 Set 5]. Disponível em: https://covid19.who.int/

3. Senado Federal (BR). Pesquisas apontam que 400 mil mortes poderiam ser evitadas; governistas questionam [Internet]. Brasília (DF): Senado Notícias; 26/06/2021. [acesso em 2022 Set 19]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/06/24/pesquisas-apontam-que-400-mil-mortes- poderiam-ser-evitadas-governistas-questionam

4. Ministério da Saúde (BR). Plataforma Integrada de Vigilância em Saúde. Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2022. [acesso em 2022 Set 5]. Disponível em: http://plataforma.saude.gov.br/mortalidade/materna

5. Khoury R, Bernstein PS, Debolt C, Stone J, Sutton DM, Simpson LL, et al. Characteristics and outcomes of 241 births to women with severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2) infection at Five New York City Medical Centers. Obstet Gynecol. 2020 Aug; 136 (2): 273-82.

6. Takemoto MLS, Menezes MO, Andreucci CB, Nakamura-Pereira M, Amorim MMR, Katz L, et al. The tragedy of COVID-19 in Brazil: 124 maternal deaths and counting. Int J Gynaecol Obstet. 2020 Oct; 151 (1): 154-6.

7. Santos DS, Menezes MO, Andreucci CB, Nakamura-Pereira M, Knobel R, Katz L, et al. Disproportionate impact of COVID-19 among pregnant and postpartum Black Women in Brazil through structural racism lens. Clin Infect Dis. 2021 Jun; 72 (11): 2068-9.

8. Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA), Conectas. Direitos na Pandemia: Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à COVID-19 no Brasil. Boletim n.º 10; São Paulo (SP): CEPEDISA; 2021. [acesso em 2022 Set 21]. Disponível em: https://www.fsp.usp.br/site/ wp-content/uploads/2018/02/Boletim_Direitos-na-Pandemia_ed_10.pdf

9. Observatório Obstétrico (BR). [Internet]. Boletim Semanal OOBr. Instagram: @observatorioobr; 15 set 2022 [acesso em 2022 Set 21]. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CilQPB5g2ue/?igshid=NmY1MzVkODY=.

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