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Qualis Capes Quadriênio 2017-2020 - B1 em medicina I, II e III, saúde coletiva
Versão on-line ISSN: 1806-9804
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Causas de mortalidade materna e materna tardia: da pandemia de H1N1 a de COVID-19, estado do Rio de Janeiro, 2009 a 2021

Ana Lucia de Melo Bellizzi1; Pauline Lorena Kale2; Sandra Costa Fonseca3; Angela Maria Cascão4

DOI: 10.1590/1806-9304202520250118 e20250118

RESUMO

OBJETIVOS: analisar as causas de mortalidade materna e materna tardia, com ênfase nas pandemias de H1N1 e COVID-19.
MÉTODOS: estudo ecológico com dados dos sistemas nacionais de informações sobre mortalidade e nascidos vivos. As causas foram descritas segundo a Classificação de Causas Maternas da OMS (ICD-MM). As razões de mortalidade materna, tardia e ampliada foram calculadas por 100.000 nascidos vivos, com intervalos de confiança de 95% (IC).
RESULTADOS: durante as pandemias, a mortalidade ampliada foi mais elevada: 104,6 (IC95%= 95,3-114,5) em 2009-2010 (H1N1) e 143,9 (IC95%=132,2-156,2) em 2020-2021 (COVID-19). Entre 2020 e 2021, o indicador aumentou 33,5%. As causas diretas predominaram, exceto em 2020-2021. As principais causas diretas foram doenças hipertensivas (17,5; IC95%= 13,7–22,1), outras complicações obstétricas, aborto e hemorragia. Durante as pandemias, a mortalidade por doenças hipertensivas aumentou e, entre as causas indiretas, destacaram-se doenças respiratórias em 2009-2010 (14,5; IC95%= 11,3–18,5) e outras doenças virais, principalmente infecção por coronavírus (55,6; IC95%= 48,5–63,4), em 2020–2021.
CONCLUSÃO: o indicador ampliado quantifica de forma mais precisa o risco de morte. A atribuição de causas mais específicas às mortes maternas tardias e a aplicação da CID-MM podem orientar estratégias de prevenção.

Palavras-chave: Mortalidade materna, Causa de morte, Vírus da influenza A subtipo H1N1, COVID-19, Hipertensão

ABSTRACT

OBJECTIVES: to analyze the causes of maternal death (MD) and maternal late death (LMD), emphasizing the H1N1 and COVID-19 pandemics.
METHODS: ecological study using data from national mortality and live birth systems. Causes were described according to the WHO Maternal Causes Classification (ICD-MM). Maternal, late, and comprehensive mortality ratios were calculated per 100,000 live births with 95% confidence intervals (CI).
RESULTS: during pandemics, comprehensive mortality was higher: 104.6 (95%CI=95.3;114.5) in 2009-2010 (H1N1), 143.9 (95%CI=132.2;156.2) in 2020-2021 (COVID-19). Between 2020 and 2021, the indicator rose 33.5%. Direct causes predominated except in 2020-2021. The leading direct causes were hypertensive disorders, other obstetric complications, abortion, and hemorrhage. During pandemics, mortality due to hypertensive disorders increased, and among indirect causes, respiratory diseases in 2009-2010 (14.5; 95%CI=11.3-18.5) and other viral infections, mainly coronavirus (55.6; 95%CI=48.5-63.4), in 2020-2021 were prominent.
CONCLUSION: the comprehensive indicator more accurately quantifies the risk of death. Assigning specific causes to late maternal deaths and applying the ICD-MM classification can guide targeted prevention strategies.

Keywords: Maternal mortality, Cause of death, Influenza A virus, H1N1 subtype, COVID-19, Hypertension

Introdução

Morte materna é definida como a morte de uma mulher resultante de uma condição relacionada ou agravada pela gravidez, ocorrida no ciclo gravídico puerperal (gestação, parto, ou até 42 dias após o término da gravidez).1,2

Em 2020 e 2021, a razão de mortalidade materna (RMM) por 100.000 nascidos vivos (NV) no Brasil alcançou 74,7 e 117,4, respectivamente. As principais causas de morte apresentaram pouca variação, exceto por Covid-19, que aumentou de forma atípica nos anos recentes.3

As principais causas de morte materna são do grupo das causas obstétricas diretas: hemorragia e doenças hipertensivas são as causas predominantes, seguidas das infecções, outras causas obstétricas e aborto inseguro.4 Existem diferenças na distribuição de causas, e na América Latina e no Caribe, doenças hipertensivas são particularmente relevantes.4 No Brasil e especificamente no estado do Rio de Janeiro, a principal causa obstétrica direta foi doença hipertensiva da gravidez.5,6 Em 2012, a Organização Mundial da Saúde desenvolveu uma classificação de causas de morte materna que facilita a interpretação das estatísticas de mortalidade e direciona medidas de prevenção (OMS CID-MM).7

A gravidez pode desencadear doenças cardiovasculares, agravar doenças subjacentes ou causar doenças específicas que podem se manifestar de 1 a 3 meses após o parto.8 Embora a maioria das mortes maternas ocorra durante o ciclo gravídico-puerperal, a carga de doenças será subestimada quando apenas esse período for considerado, excluindo-se os óbitos ocorridos após 42 dias que não compõem o indicador da razão de mortalidade materna..2,8 Mortalidade materna tardia (MMT) inclui mortes maternas obstétricas de 43 dias até menos de um ano após o parto. As mortes maternas tardias também são, em sua maioria, evitáveis e apontam para a necessidade de ampliar o tempo de acompanhamento no período pós-parto, principalmente para mulheres de maior risco.8-13 No Brasil, observou-se uma tendência crescente na razão de MMT de 1999 a 2013, e uma variação percentual média anual de 9,8% de 2010 a 2019.12 Um novo indicador – óbitos maternos ampliados – combina óbitos maternos e óbitos maternos tardios.13,14

A atribuição do código O96 (Classificação Internacional de Doenças - CID-10) como causa básica da morte materna tardia não esclarece se as causas foram diretas ou indiretas, nem auxilia na definição de ações preventivas específicas.1 Nesse sentido, o estudo das causas associadas à morte materna tardia (O96) torna-se relevante.

Existem poucos estudos abordando as causas de morte associadas ao pós-parto tardio. No Brasil, em 2002, dos 239 casos de morte materna estudados, 13,8% foram óbitos tardios (n=33), principalmente por complicações pós-parto, com destaque para a cardiomiopatia, seguida por hipertensão complicando a gestação ou doenças hipertensivas da gestação e doenças circulatórias complicando a gestação.2 Em outros países, o estudo das causas de morte materna tardia mostra-se mais avançado.15-18

As pandemias de influenza (H1N1) em 2009 e 2010, e de COVID-19 (SARS-CoV-2), dez anos depois, impactaram a magnitude e a distribuição das causas da mortalidade materna no mundo e no Brasil.3,19-27 Nos EUA, 12% das mortes relacionadas à gravidez foram atribuídas à gripe A (H1N1 pdm09) durante a temporada pandêmica de 2009-2010 e, entre essas mortes, 13,7% ocorreram 42 ou mais dias após o parto.19 Em 2009, a incidência de influenza no Brasil foi de 28,0/100.000, com uma taxa de 97/100.000 entre gestantes e uma letalidade de 6,9%.20 Em um estudo multicêntrico brasileiro, aquelas que apresentaram doença respiratória grave e testaram positivo para H1N1 tiveram pior evolução, com 28,6% evoluindo para óbito.21 Quanto à COVID-19, muitos estudos mostraram um risco substancial de mortalidade materna.22-27

Este estudo analisou as causas de óbitos maternos e as causas associadas aos óbitos maternos tardios no estado do Rio de Janeiro no período de 2009 a 2021, com ênfase nos períodos de pandemia de H1N1 e COVID-19.

Métodos

Trata-se de um estudo ecológico descritivo da mortalidade materna, com ênfase na mortalidade materna tardia e nas causas de morte de mulheres residentes no estado do Rio de Janeiro de 2009 a 2021.

As fontes de dados foram os Sistemas de Informações sobre Mortalidade – SIM estadual e federal (Módulo de Investigação de Óbito Materno) e sobre Nascidos Vivos (Sinasc). Os dados foram acessados na Secretaria Estadual de Saúde do estado do Rio de Janeiro em junho de 2022.

As causas de morte materna (durante a gestação ou até o 42º dia após o seu término) correspondem aos códigos do capítulo XV da CID-10, acrescidos dos códigos A34, B20 a B24, D39.2, E23.0, F53 e M83.0 fora do capítulo XV, quando essas causas levaram à morte durante o ciclo gravídico-puerperal.1 Desde 2013, a Organização Mundial da Saúde atribui o código O98.7 às mortes maternas relacionadas ao HIV/aids. Consideramos isso para todo o período de análise. Os óbitos por causas obstétricas diretas correspondem aos códigos da CID-10 (O00.0 a O08.9, O11 a O23.9, O24.4, O26.0 a O92.7, D39.2, E23.0, F53 e M83.0), indiretos aos códigos O10.0 a O10.9, O24.0 a O24.3, O24.9, O25, O98.0 a O99.8, A34, B20 a B24) e não especificados ao código O95. A causa básica da morte materna tardia corresponde ao código O96 do capítulo XV da CID-10, sem especificação das causas obstétricas diretas ou indiretas.

Duas autoras deste estudo, funcionárias da Secretaria Estadual de Saúde, têm experiência na codificação de causas de morte e na revisão das conexões entre elas. O Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) foi acessado para identificação dos óbitos maternos tardios (de 42 a 364 dias após o parto). Para cada óbito materno tardio, todas as causas codificadas declaradas nas partes I e II da Declaração de Óbito foram analisadas, desconsiderando-se o código O96 e reconstruindo a sequência de eventos que levaram ao óbito. As regras de seleção automatizadas do SIM foram aplicadas, o que permitiu a atribuição de uma causa associada de óbito materno tardio como causa básica. Essas regras de seleção são usadas em análises de rotina pela Secretaria Estadual de Saúde por meio do SIM, ajudando a reduzir o risco de classificação incorreta dos óbitos em estudo. Os óbitos cuja causa associada foi uma causa externa (Capítulo XX) foram excluídos desta análise devido à impossibilidade de associá-los, direta ou indiretamente, ao ciclo gravídico-puerperal. Esses óbitos foram classificados como "óbitos por causas externas ocorridos no período pós-parto tardio".

As causas obstétricas (capítulo XV) dos óbitos maternos (causa básica) e tardios (causa associada a O96, que corresponde à causa básica na sua ausência) foram analisadas segundo uma classificação adaptada da CID-MM.6 A classificação CID-MM das causas de morte materna agrupa as causas obstétricas em diretas, indiretas e desconhecidas.7 As causas diretas são agrupadas em seis categorias: 1- Aborto (O00-O07), 2- Hipertensão (O11-O16), 3- Hemorragias (O20; O43-O46; O67; O71.0; O71.1, O71.3, O71.4, O71.7; O72), 4- Infecções (O23; O41.1; O75.3; O85-O86; O91), 5- Outras complicações obstétricas (O21.1, O21.2; O22; O24.4; O26.6, O26.9; O41.0, O41.8, O71.2, O71.5, O71.6, O71.8, O71.9; O73; O75.0-O75.2, O75.4-O75.9; O87.1, O87.3, O87.9; O88; O90); 6- Complicações não previstas, geralmente relacionadas a procedimentos anestésicos (O29; O74; O89). As causas indiretas são representadas pelo grupo 7, composto por todas as complicações não obstétricas (O10; O24.0, O24.2, O24.3, O24.9; O98 [incluindo B20-24, recodificado como O98.7], O99), e as causas não especificadas, grupo 8, pelo código CID O95. O grupo 9, correspondente às causas de óbito ocorridas durante a gestação, parto e puerpério por causas externas (causas coincidentes), não foi analisado. Mendonça et al.6 adaptaram a CID-MM original,7 incluindo os códigos O30-O36, O40, O41.9, O42; O60-061 e 063-066 no grupo 5.6 Desde 2012, a OMS sugere o uso do código O98.7 para classificar mortes maternas obstétricas indiretas por HIV/aids.7 No Brasil, o SIM passou a classificar o HIV/aids fora do Capítulo I (B20-B24) como código O98.7 (Capítulo XV) a partir de 2020. Adotamos o código O98.7 para óbitos maternos e maternos tardios para todo o período de análise.

Foram descritas as distribuições absolutas e percentuais de óbitos maternos, maternos tardios e maternos abrangentes (soma dos dois anteriores). Foram calculadas as razões de mortalidade materna (RMM) e de mortalidade materna tardia (RMMT) (quociente entre óbitos maternos e maternos tardios, respectivamente, e NV, multiplicado por 100.000), e a razão de mortalidade materna amplificada (RMMA) (quociente entre a soma do número de óbitos maternos e maternos tardios e o número de NV, multiplicado por 100.000), com seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). A mortalidade proporcional de acordo com o capítulo da CID-10 foi descrita para óbitos maternos (causa básica) e óbitos maternos tardios (causa associada/básica). A RMM, a RMMT e a RMMA foram calculadas de acordo com a classificação adaptada da CID-MM (causas obstétricas do Capítulo XV e principais agrupamentos e causas específicas de até 4 dígitos). Foram calculadas diferenças relativas na RMMA entre cada período pandêmico (H1N1 e COVID-19) e o período interpandêmico.

As análises foram realizadas anualmente e, de forma agregada, em períodos de dois anos durante os anos de pandemia de H1N1 e COVID-19 – 2009/10 e 2020/21 – e para caracterizar os períodos pandêmicos (H1N1 e COVID-19) e não pandêmico, os seguintes triênios entre as duas pandemias – 2011 a 2013; 2014 a 2016; e 2017 a 2019, bem como o período interpandêmico total, de 2011 a 2019.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense (CAAE: 71323023.0.0000.5243; nº 6.592.725). Os servidores e autores do estudo acessaram o SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade) da Secretaria de Estado da Saúde do Rio de Janeiro, utilizando dados não identificados nominalmente, preservando a privacidade e a confidencialidade.

Resultados

Ocorreram 2.778 mortes maternas da gestação até 364 dias após o parto (óbitos maternos ampliados), no estado do Rio de Janeiro, de 2009 a 2021. A RMM nos anos de pandemia de H1N1 (2009/2010) e COVID-19 (2020/2021) foi maior do que no período de 2011 a 2019. A RMMT foi alta em 2011, logo após a pandemia de H1N1, no período de 2017/2019 (contribuindo para 17,6% do total de mortes), e aumentou mais acentuadamente nos dois anos da pandemia de COVID-19. O comportamento da RMMA foi fortemente influenciado pelo da RMM (Tabela 1). De 2020 a 2021, a RMMA aumentou 33,5%, principalmente devido a mortes maternas, sem sobreposição entre os respectivos IC 95%. O mesmo comportamento é observado ao comparar a RMMA da pandemia de COVID-19 com todos os outros períodos, incluindo a pandemia de H1N1. Por outro lado, a RMMA nos triênios foi semelhante, com sobreposição dos IC95%, sugerindo estabilidade do indicador (Tabela 1).
 



A Figura 1 apresenta a distribuição dos óbitos maternos e maternos tardios por causa, segundo o capítulo da CID. O Capítulo XV predominou nos óbitos maternos e maternos tardios. As causas não obstétricas de óbito materno foram apenas uma no Capítulo II (Neoplasias) e uma no Capítulo V (Transtornos Mentais e Comportamentais; Transtornos Nutricionais e Metabólicos). Para os óbitos maternos tardios, fora do Capítulo XV, ocorreu um óbito por causas externas nos últimos dois anos.
 



Considerando apenas o Capítulo XV e aplicando a classificação CID-MM, todas as razões de mortalidade (RMM, RMMT, RMMA) são maiores para causas diretas do que para indiretas, exceto no último biênio (pandemia de COVID-19), quando essa relação se inverte para RMM, RMMT e RMMA (Figura 2). As causas não específicas (095) permaneceram relativamente estáveis, sendo maiores no componente materno de 2011 a 2013. Entre as RMMA por causas diretas, destacam-se as causas hipertensivas e outras complicações obstétricas, e somente de 2017 a 2019 as hemorragias ultrapassaram as outras complicações obstétricas, que ocuparam o terceiro lugar.
 



O perfil de distribuição das causas, os principais agrupamentos e causas específicas (até 4 dígitos) e as diferenças relativas da RMMA são apresentados para: A) o período H1N1 (2009/10) versus período interpandêmico (2011/19), e B) o período COVID-19 versus período interpandêmico (2011/19) (Tabelas 2 e 3).
 

 




Entre as causas obstétricas diretas, prevaleceram as causas hipertensivas, principalmente devido à hipertensão gestacional com proteinúria (O14), eclâmpsia (O15) e hipertensão materna não especificada (O16). Na pandemia de H1N1, a RMMA da categoria O16 foi maior (2,4 vezes) do que no período interpandêmico e, dentro do grupo de complicações obstétricas, a RMMA das anormalidades da contração uterina (O62) foi o dobro (Tabela 2). No período da COVID-19, a RMMA para pré-eclâmpsia grave (O14,1) quase dobrou (1,8 vezes) os valores do período interpandêmico (Tabela 2).

Entre as causas indiretas, a pandemia de H1N1 e as doenças do aparelho respiratório (O99,5) predominaram, e a respectiva RMMA foi 3,8 vezes maior que a do período de 2011 a 2019 (Tabela 3). Durante a pandemia de COVID-19, a RMMA para causas indiretas quase dobrou em comparação com o período interpandêmico. Notavelmente, essa diferença relativa foi de aproximadamente 160 para outras doenças virais (O98,5), incluindo a infecção por coronavírus. (Tabela 3).

Discussão

Este estudo, além de corroborar o impacto das pandemias de vírus respiratórios na magnitude e no perfil da mortalidade materna, destacou a mortalidade materna tardia, que vem aumentando no país12 e no estado do Rio de Janeiro, e é afetada por pandemias. A contribuição proporcional dos óbitos tardios atingiu 17,6% do total de óbitos no período de 2011 a 2019, e houve um aumento da RMMT, embora menos intenso do que a RMM, durante a pandemia de COVID-19.

A vigilância e o monitoramento estatístico dos óbitos maternos tardios são tarefas complexas.² No Brasil, a investigação sistemática dos óbitos maternos e de mulheres em idade reprodutiva, iniciada em 2008, revelou uma tendência ascendente da mortalidade materna tardia. Esse comportamento foi semelhante ao observado em países europeus com sistemas de vigilância estabelecidos, como França, Reino Unido e Holanda, onde os óbitos maternos tardios também têm demonstrado uma contribuição crescente para a mortalidade materna ampliada.¹⁵,¹⁷,²⁸ Particularmente no estado do Rio de Janeiro, esse padrão persistiu mesmo quando os anos de pandemia da COVID-19 foram excluídos.

Segundo Diguisto et al.,²⁸ entre os países europeus com vigilância da mortalidade materna robusta, apenas a França e o Reino Unido incluem rotineiramente as mortes maternas tardias em suas análises. No entanto, persistem diferenças metodológicas entre os países, em grande parte devido à especificidade limitada das diretrizes da CID-MM para a classificação dessas mortes, reforçando a necessidade de maior padronização nas comparações internacionais.²⁸

Um estudo de 2025 baseado em estimativas da Carga Global de Doenças para 204 países mostrou que, embora as mortes maternas em geral tenham diminuído acentuadamente desde 1990, a redução nas mortes maternas tardias foi muito menor, indicando uma carga proporcionalmente maior desse componente. A análise também demonstrou uma relação inversa entre mortes maternas tardias e o índice sociodemográfico (IDS): países com valores mais baixos de IDS tendem a apresentar taxas mais altas, mas, quando ocorrem melhorias, o declínio é proporcionalmente maior. No Brasil, o estudo identificou o estado do Rio de Janeiro como tendo uma das maiores taxas nacionais de mortes maternas tardias, consistentes com os achados do presente estudo.²⁹

Poucos países monitoram as mortes maternas tardias, de acordo com o estudo Global Burden of Disease (GBD).30 O grupo de especialistas em mortalidade materna por GBD analisou a morte materna tardia como uma categoria temporal e como uma causa distinta, pois as causas subjacentes das mortes maternas tardias não são especificadas na maioria das fontes de dados. Apenas alguns países utilizam a CID-10 de forma confiável para codificar mortes maternas tardias, apesar de compreenderem sua importância.

A atribuição de uma causa associada à morte materna tardia como causa básica ajudou a compreender esse fenômeno e a subsidiar intervenções em saúde. Causas diretas também prevaleceram entre essas mortes, exceto nos anos da COVID-19. Enquanto os distúrbios hipertensivos predominam nas mortes maternas, outras complicações obstétricas são mais frequentes nas mortes maternas tardias, com destaque para a cardiomiopatia, como no estudo pioneiro de Laurenti et al.2 Somente em 2020/2021, as doenças hipertensivas ocuparam o primeiro lugar em mortalidade materna tardia direta. Na Itália, suicídio e doenças malignas são as principais causas de mortalidade materna tardia, seguidas por doenças cardiovasculares.15,17 Na Holanda, predominaram as doenças cardíacas;16 e na França e no Reino Unido, as doenças cardiovasculares e o suicídio.27 Nesses países europeus, o suicídio é considerado uma causa direta de morte materna, sendo uma das causas mais frequentes de morte materna tardia. Em nosso estudo, excluímos causas externas associadas à morte tardia, o que pode limitar a comparabilidade dos resultados.

Como adotamos o código O98.7 para morte materna e materna tardia relacionada ao HIV/aids, praticamente todos os óbitos estavam dentro do Capítulo XV e classificados pela CID-MM. No estudo GBD, constatou-se que as mortes relacionadas à AIDS ocorriam comumente 42 dias ou mais após o término da gestação. Portanto, os esforços de cuidado para mães HIV positivas devem priorizar a garantia do tratamento antirretroviral ininterrupto.29

O uso da classificação CID-MM adaptada, ampliada para incluir óbitos maternos tardios, mostrou-se valioso para descrever as causas de mortalidade ao longo de um longo período de observação. Nos Estados Unidos, a aplicação dessa classificação esclareceu o impacto da pandemia de COVID-19, revelando um aumento notável na mortalidade materna por causas obstétricas diretas e indiretas — particularmente doenças virais, respiratórias e circulatórias —, bem como distúrbios hipertensivos.²² No geral, a mortalidade materna por causas obstétricas, incluindo mortes tardias, aumentou substancialmente durante a pandemia. Padrões semelhantes foram observados em nosso estudo, onde tanto a pandemia de H1N1 quanto a de COVID-19 afetaram a mortalidade materna e materna tardia de maneiras comparáveis, consistentes com os achados de Thoma et al.23

As mudanças do perfil dos óbitos maternos durante a pandemia da COVID-19 podem estar relacionadas diretamente à infecção viral ou respiratória pelo coronavírus ou indiretamente pela exacerbação de condições mórbidas, como diabetes e doenças cardiovasculares,23 além do agravamento de problemas assistenciais já existentes, como dificuldade de acesso aos serviços de saúde, mudança na organização dos serviços de pré-natal, atrasos no início do pré-natal e no atendimento às gestantes com sintomas respiratórios.21-24 O atraso na inclusão de gestantes e puérperas nos grupos prioritários para vacinação, bem como a suspensão da vacinação por dois meses nessas mulheres sem comorbidades, coincidiu com a segunda onda da COVID-19, na qual prevaleceu a variante Gama do SARS-CoV-2, com alta disseminação, contribuindo para o excesso de mortalidade materna.24-26 Em 2021, a RMM nacional dobrou em relação ao ano anterior da pandemia.3,25 A importância dos distúrbios hipertensivos como causa de mortes maternas e tardias é antiga, apesar das melhorias no pré-natal e na assistência ao parto.2,6,23 Neste estudo, a RMMA por distúrbios hipertensivos esteve entre o segundo e o terceiro maiores riscos de morte, sendo a pré-eclâmpsia e a eclâmpsia as principais causas. Além disso, as doenças hipertensivas foram responsáveis por metade das mortes tardias durante a pandemia de COVID-19 no estado do Rio de Janeiro.

Este estudo apresenta algumas limitações inerentes ao uso de dados secundários, como possíveis imprecisões na codificação e no preenchimento da declaração de óbito, que podem afetar a identificação de óbitos maternos tardios. No entanto, a aplicação consistente dos critérios nacionais de classificação e a reanálise dos casos codificados como O96 ajudaram a minimizar erros de classificação e a fortalecer a confiabilidade dos achados.

Uma contribuição importante deste estudo foi a reatribuição de causas específicas para mortes maternas tardias, qualificando as informações tradicionalmente limitadas pelo código O96. O desenvolvimento e o uso de um indicador abrangente de mortalidade materna, combinando mortes ocorridas durante a gravidez e até um ano após o parto, permitiram uma compreensão mais ampla do impacto na saúde materna e destacaram causas evitáveis que frequentemente são negligenciadas.

Em termos de saúde pública, duas ações são recomendadas. Primeiro, as mortes maternas tardias devem ser rotineiramente incorporadas aos sistemas de vigilância, expandindo o escopo das estruturas de monitoramento existentes. Segundo, os cuidados pós-parto devem se estender além do período convencional de 42 dias, garantindo o acompanhamento clínico por pelo menos os três primeiros meses após o parto, quando as complicações cardiovasculares, hipertensivas e respiratórias são mais frequentes. Tais medidas fortaleceriam a prevenção e contribuiriam para a redução da mortalidade materna no Brasil.

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Contribuição dos autores
Belizzi ALM: Conceitualização (Igual); Análise formal (Igual); Investigação (Igual); Metodologia (Igual); Administração do projeto (Igual); Redação do rascunho original (Igual); Redação - revisão e edição (Igual).
Kale PL: Conceitualização (Igual); Análise formal (Igual); Curadoria de dados (Liderança); Investigação (Igual); Metodologia (Igual); Supervisão (Igual); Validação (Igual); Redação do rascunho original (Igual); Redação - revisão e edição (Igual).
Fonseca SC: Conceitualização (Igual); Análise formal (Igual); Metodologia (Igual); Redação do rascunho original (Igual); Redação - revisão e edição (Igual).
Cascão AM: Conceitualização (Igual); Análise Formal (Igual); Curadoria de Dados (Igual); Investigação (Igual); Metodologia (Igual); Supervisão (Igual); Validação (Igual); Redação do rascunho original (Igual); Redação - revisão e edição (Igual).
Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesses.

Disponibilidade de dados
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Recebido em 14 de Abril de 2025
Versão final apresentada em 29 de Setembro de 2025
Aprovado em 8 de Outubro de 2025

Editor Associado: Melania Amorim

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