Angélica de Cássia Bitencourt1; Samanta Luzia de Oliveira2; Giseli Mendes Rennó3
RESUMO
OBJETIVOS: conhecer a percepção de violência obstétrica para os profissionais que atuam na assistência ao trabalho de parto e parto.
MÉTODOS:a pesquisa foi de abordagem qualitativa. Os participantes da pesquisa foram 22 profissionais que prestam ou prestaram assistência à mulher durante o trabalho de parto e parto. A amostra foi definida pela saturação de dados. A análise dos dados coletados foi realizada utilizando a proposta de análise de conteúdo de Bardin.
RESULTADOS: foram identificadas cinco categorias, os profissionais salientaram a existência de um processo de mudança na assistência ao parto e a importância de respeitar a fisiologia e intervir quando necessário. Ficou evidente que a violência verbal é uma das formas mais recorrentes de violência obstétrica. Os fatores apontados como determinantes para a existência da violência foram a interação parturiente e equipe, falta de preparo do profissional e os problemas institucionais. Mesmo com diversas falas sobre a violência obstétrica, alguns profissionais salientaram não vivenciar na prática.
CONCLUSÕES: percebe-se a necessidade de investir em estratégias para inibir a violência obstétrica e humanizar a assistência por meio de capacitação dos profissionais e orientação das mulheres sobre os seus direitos.
Palavras-chave: Parto humanizado, Violência contra a mulher, Violência obstétrica, Humanização da assistência
ABSTRACT
OBJECTIVES: to know the perception of obstetric violence for professionals who assist in labor and delivery.
METHODS: the research was qualitative. Research participants were 22 professionals providing or assisting women during labor and delivery. The sample was defined by data saturation. The analysis of the data collected was performed using the proposed content analysis of Bardin.
RESULTS: five categories were identified, professionals highlighted the existence of a process of change in childbirth care and the importance of respecting physiology and intervening when necessary. It was evident that verbal violence is one of the most recurrent forms of obstetric violence. The factors identified as determinants for the existence of violence were the interaction between the parturient and the team, the professional’s lack of preparation and institutional problems. Even with several statements about obstetric violence, some professionals stressed not experiencing it in practice.
CONCLUSIONS: the need to invest in strategies to inhibit obstetric violence and humanize care is perceived through training professionals and guiding women on their rights.
Keywords: Humanizing delivery, Violence against women, Obstetric violence, Humanization of assistance
Introdução“Eu nunca presenciei uma violência, mas soube a história da minha mãe, como eu disse, eles simplesmente fizeram com que minha mãe não quisesse ter mais filhos [...]” (P19)
A prática obstétrica tem sofrido mudanças expressivas nos últimos 20-30 anos, com destaque no incentivo do uso das propriedades naturais e fisiológicas do processo parturitivo. Passou a serem questionados vários procedimentos, devido a falta de evidências científicas e por ocasionarem desconforto à mulher. O ambiente também tem sofrido alterações, tornando-se mais acolhedor, permitindo que a mulher e sua família possam participar e expressar expectativas.14
Conforme a fala dos participantes, embora a violência obstétrica esteja presente na assistência há muitos anos, existe um esforço para promover a mudança e humanizar a assistência. O processo de humanização tem garantido benefícios à mulher devido a disseminação de informações, as pesquisas sobre a temática, o preparo profissional e conscientização das mulheres.
“Hoje se tem optado pelo parto humanizado e tem dado mais certo, a paciente tem entendido que só demora um pouco mais do que um parto com medicação e que o trabalho de parto é um pouco mais lento, mas a paciente tem entendido isso e sentido que é melhor ficar num local mais aconchegante, pode ter o acompanhante ali, isso tudo ajuda e deixa a paciente mais tranquila.” (P2)
“Hoje em dia a meu ver diminuiu muito devido aos noticiários e políticas que norteiam a segurança da mulher. Antigamente a violência obstétrica era comum em instituições de saúde.” (P9)
“Então, os profissionais de hoje em dia estão mais ligados nos recursos que a sociedade tem, como internet, uma rede imensa de pesquisas nesse ramo, então os profissionais estão entrando no ramo de obstetrícia, já tendo uma vivência de tudo isso, de como se deve fazer [...]” (P17)
Entretanto, alguns profissionais afirmaram que são necessárias melhorias, pois ainda há mulheres sofrendo violência obstétrica.
“O processo de humanização no trabalho de parto e parto já melhorou bastante, antigamente este era um problema mais grave. Contudo ainda precisa de cuidado, pois há mães ainda que sofrem com isso.” (P7)
“A violência obstétrica ainda ocorre de forma significativa nos ambientes hospitalares, causando constrangimento à mulher; porém isso pode mudar proporcionando a mulher um trabalho de parto e parto de forma harmoniosa.” (P10)
O modelo de assistência humanizada propicia às mulheres familiaridade com o processo de nascimento e tem como finalidade a diminuição dos percentuais de cesáreas e morbimortalidade materna e perinatal.15 Porém, atualmente ainda é possível verificar que as mulheres passam por várias práticas desrespeitosas na assistência ao parto e nascimento, associadas ao uso excessivo de tecnologias.15,16
Respeitar a fisiologia e intervir quando necessário
Narrativas de diversas partes do Brasil mencionam o emprego rotineiro de ocitocina, rompimento artificial da bolsa e a dilatação manual do colo para apressar a dilatação, acompanhada de comandos de puxos, episiotomia, manobra de Kristeller e fórceps para acelerar o período expulsivo. Quando essas manobras não resultam na saída do recém-nascido pela vagina ou caso haja suspeita de sofrimento fetal, utiliza-se a cesárea.17
Como consequência desse modelo de atenção, o processo de parir deixa de ser visto como um evento de caráter individual e fisiológico e torna a ser um momento de experiências muitas das vezes negativas. Nesse contexto, os profissionais visualizam o processo parturitivo como um fenômeno patológico e adequado para intervenções.18
Os profissionais afirmam a importância de respeitar a fisiologia e intervir quando necessário, abandonando práticas mecanizadas e rotineiras. De acordo com o participante P18, o mecanicismo na assistência possibilitou que a violência obstétrica se tornasse frequente e vista como algo natural.
“O mecanicismo na assistência ao paciente infelizmente permitiu com que violências como à obstétrica se tornasse frequente e algo visto como natural durante o processo. Mas com a humanização esse cenário vem mudando a cada dia permitindo mais segurança e qualidade para mãe e filho nesse período.” (P18)
Evidencia-se nos discursos a seguir que em situações específicas, durante o trabalho de parto, o médico deve tomar atitudes que preservem a vida da mãe e do bebê. Para eles, práticas consideradas intervencionistas, quando utilizadas de maneira adequada, garantem benefícios.
“E outra coisa o parto via vaginal apesar de ser o parto fisiológico, que dá menos risco do que um parto cirúrgico, mas tem situações que são perigosas, as vezes rompe um vaso, hemorragia, você tem que agir rapidamente, se você não ter conhecimento técnico para fazer isso como é que faz? [...]” (P5)
“[...] é uma situação que o principal de tudo é o bom senso e o respeito que você tem que ter com outra pessoa e mostrar para ela que aquilo que você está fazendo é necessário e se realmente é necessário, porque também não pode ser taxativo e ponto final isso não pode fazer.” (P5)
Existem evidências científicas de que várias práticas na assistência ao trabalho de parto causam melhores resultados obstétricos, e são satisfatórias para a diminuição de resultados perinatais negativos, quando utilizadas com indicação. Uma parte importante das complicações que podem acontecer ao longo do trabalho de parto e no momento do parto pode ser diminuída por atenção obstétrica apropriada, realizado com o emprego adequado de tecnologia. Todavia, o uso inadequado de tecnologias ou a realização de intervenções desnecessárias pode acarretar prejuízos para a mãe e seu filho.19 Sabe-se que um dos fatores relacionados com as taxas de prematuridade são a indução e realização de cesáreas desnecessárias.17
Efeito agressivo das palavras e Fruto da interação parturiente e equipe
Pesquisa realizada em maternidades da cidade de Natal observou que, comentários inadequados, realizados por alguns profissionais de saúde, traduzem uma assistência pouco humanizada. Foi relatado pelas parturientes a existência de crítica profissional sobre o ato de gritar ou gemer durante o trabalho de parto. Aquelas que confirmaram ter emitido gritos e gemidos, passaram por momentos de intimidação, ameaça de serem deixadas sozinhas, além de serem duramente questionadas.21
Corroborando com a literatura, ficou evidente que dentre as tantas formas de violência existentes contra as gestantes no momento do parto, uma das mais recorrentes é a violência verbal. Essa questão pode ser observada na fala dos profissionais P3 e P12, ao defender que a mulher deve ter a liberdade de expressar durante o parto, pois se há dor é normal que existam gritos.
“Acho que as palavras também têm um efeito agressivo em relação ao parto, na forma como elas são ditas, por exemplo, tem muito obstetra que fala assim “quando fez não doeu nada, agora vai sair vai doer”, tipo da sentença fulminante em cima da gestante.” (P3)
“Acho que a mulher não deve ser xingada durante o parto caso ela grite ou haja de outra forma expressando a dor que está sentindo, considero ignorância e falta de respeito o profissional que se comporta dessa maneira.” (P12)
Portanto, pode-se compreender que muitas vezes o uso de frases pejorativas e repressoras são usadas erroneamente por profissionais que entendem isso como uma forma de exercer autoridade. Durante o parto, a mulher necessita de atenção e empatia, e quando isso falta, o desfecho se torna desfavorável, tornando-se uma experiência negativa.21
Há dificuldade na implantação do modelo humanizado de assistência ao parto e nascimento porque além de serem necessárias modificações das práticas e protocolos, é importante rever as relações entre a equipe profissional, parturientes e familiares.22
As ocasiões de violência mais dificilmente notadas ocorrem na área das relações entre profissionais e pacientes, envolvem a discriminação e perda da autonomia. Essas formas de violência são geralmente concebidas em falas grosseiras, desrespeitosas para com as parturientes e em desatenção quanto às necessidades de analgesia e uso adequado de tecnologia.7
A interação parturiente e equipe é estabelecida como indispensável para a existência ou não de violência obstétrica. Percebe-se na fala que a violência obstétrica ocorre por meio da forma inadequada de abordar a mulher, desconsiderando a sua dor e receios de ser assistida.
“Eu acho que é o jeito de tratar a gestante, tem gente que é estúpido “veio com dor?” “Não podia esperar mais tempo em casa para dilatar e vir com dilatação boa?” “É um dedo só, por que você veio agora?” (P3)
Estudo realizado em maternidades da região de São Paulo identificou dificuldades na interação dos profissionais com as pacientes. Alguns profissionais apontaram uma concepção de usuárias do serviço público como ignorantes, com dificuldades de entendimento do que é dito e com uma sexualidade difícil de ser controlada.7
Percebeu-se um discurso marcado pela crença do profissional acerca do escasso conhecimento das pacientes e seus acompanhantes. Destaca-se ainda, a visão penosa da atuação do médico que fica de plantão na maternidade, pois entrará em contato com pessoas “ignorantes”.
“Agora o plantonista coitado, tenho muito dó de plantonista porque ele pega ali situações às vezes de pessoas ignorantes pessoas que ela nunca viu na frente já chega ali na confusão. Outro dia teve um marido de uma paciente que chutou a parede da maternidade, fez um furo na parede, depois ele teve que pagar a conta. Mas você vê como o médico de plantão às vezes sofre, porque o grau às vezes de ignorância é muito grande. Não valorizam o trabalho do médico de plantão [...]” (P4)
Para uma boa relação, é necessária confiança e igualdade entre os envolvidos. Nas falas evidencia-se que o ideal seria o profissional que acompanha a gestante durante o pré-natal, também assisti-la durante o trabalho de parto e parto.
“O futuro do Brasil seria quem faz o pré-natal faz o parto, ou se não uma harmonização grande da equipe toda.” (P3)
“A violência ocorre muitas vezes quando a paciente não conhece o médico e a relação não é muito boa e aí surgem então as violências obstétricas, acompanho minhas pacientes desde a primeira consulta de pré-natal.” (P4)
A relação entre os profissionais da equipe de saúde também é identificada por alguns participantes como fatores importantes para a experiência ou não de violência obstétrica.
“A violência ela não se dá quando uma equipe é sincronizada, faz o trabalho junto, bem coordenado não existe violência obstétrica, a violência obstétrica existe quando não tem esse acompanhamento bom, a paciente não é bem informada.” (P4)
Pesquisa feita em maternidades pertencentes à rede pública da região Centro-Oeste de Minas Gerais, tornou evidente os limites determinados pela hierarquia médico/enfermeiro na instituição hospitalar, limitando e controlando o seu espaço na assistência ao parto.23 No topo da hierarquia situa-se o médico, sendo visto como aquele que possui maior autoridade técnico-científica.7
É necessário o trabalho em equipe, pois, o cuidado ao ser humano é uma atividade complexa e, por isso, necessita da inclusão de saberes e práticas de diversas categorias profissionais, gerando novas maneiras de prestar a assistência. O trabalho interdisciplinar permite à equipe oferecer uma assistência integral.24
Falta de preparo dos profissionais e problemas institucionais
Trabalho de revisão integrativa sobre a violência obstétrica identificou que os temas mais discutidos nos estudos analisados foram o despreparo institucional e a formação profissional. O reduzido conhecimento sobre a prática baseada em evidências favorece a prática mecanizada e a visão da mulher como objeto.20
Os achados da pesquisa corroboram com os do estudo acima, visto que diante do contexto de violência obstétrica, os entrevistados perceberam como um fator determinante a falta de preparo do profissional para saber lidar com as várias situações encontradas na assistência.
“Eu acho que às vezes é falta de informação na faculdade, o jeito que é ensinado, porque muitas vezes o médico faz aquilo que é ensinado para ele, na vida acadêmica ele aprendeu que seria daquele jeito. É mudar lá na base de ensinar e é o que está mudando agora, os cursos de ginecologia e obstetrícia estão pegando bastante nessa área do cuidado, do parto humanizado, porque acaba ensinado a como tratar e como lidar, porque às vezes pode fazer sem ter a noção de que aquilo é uma violência porque ele foi ensinado a fazer aquilo, isso é multiprofissional, tanto a enfermagem, a pediatria também.” (P2)
“Por isso que eu falo que a violência maior é essa de você não ter preparo para aquilo que está fazendo [...]” (P5)
A assistência que viola os direitos das mulheres está atrelada ao modelo de parto em vigência no país, que é sustentado por falhas de um sistema de saúde que não busca realizar as fiscalizações necessárias nas instituições e pela formação deficiente de alguns profissionais.18 A violência contra a mulher pode ser influenciada pela falta de preparo institucional em diversos fatores, como: formação precária, falta de educação permanente em saúde, dificuldades estruturais, desordem dos serviços, práticas baseadas em evidências científicas e diretrizes assistenciais.16,25
Nessa categoria os participantes assinalaram que os problemas institucionais contribuem para a existência da violência obstétrica, destacando a falta de ambiente e recursos adequados, além da superlotação e presença de poucos profissionais. Os profissionais salientaram que para garantir a qualidade de atenção à mulher, a maternidade deve ter estrutura física adequada e recursos humanos suficientes e capacitados.
“Já aconteceu muitas vezes eu estar em cesárea e estar tendo um parto normal na maternidade e eu ter que me dividir no meio, eu acredito que o parto normal pode ser feito pela enfermeira obstétrica, ou pode ser feito pelo acadêmico, e a minha preocupação está ali, porque teve um que foi por cesárea e eu chego e vejo que o parto não ocorreu tão bem como esperava, porque o movimento é grande. Já aconteceu de nascerem treze partos numa noite, nem sempre você consegue dar assistência para todo mundo, você tem que designar cada pessoa.” (P3)
“Então eu acho que a violência maior é justamente você não ter condições mínimas para o paciente ser assistido, tem que começar tendo uma boa maternidade, profissionais formados e capacitados, isso vai se traduzir em segurança.” (P5)
Investigação executada em maternidades da região de São Paulo, evidenciou como dificuldades encaradas para a realização da assistência a lotação do serviço de saúde, a situação estrutural e a carência de recursos materiais e humanos. Essas dificuldades implicam na falta de anestesistas de plantão para execução de analgesias de parto, como também no impedimento da presença de acompanhantes masculinos na sala de pré-parto, sob a justificativa do pouco espaço físico que permita a privacidade das outras pacientes.7
Do não reconhecimento aos danos
Embora a violência seja um fenômeno em ascensão, tendo espaço na sociedade e na mídia, ela ainda é velada, de modo especial nos serviços de saúde, nos quais profissionais convivem com situações de poder e gênero e protegem o agressor ou escondem os fatos, por temer criar conflitos e inimizades.22
Observou-se que embora haja diversas falas sobre a violência obstétrica, alguns profissionais salientaram não vivenciar na instituição onde trabalham. O entrevistado P5 salienta perceber violência como um termo forte para definir condutas, pois, acredita que o uso dessa palavra é uma tentativa de rotular.
“Eu não tenho muita experiência com violência obstétrica porque não ocorre comigo [...]” (P4)
“Eu sinceramente acho violência uma palavra muito forte, violência obstétrica, as pessoas têm essa mania de tentar rotular, eu não vejo isso [...]” (P5)
A violência obstétrica é compreendida como um termo forte e depreciativo e tem ocasionado indignação na classe médica obstétrica, por ter a crença de que o termo sinaliza certa hostilidade com essa categoria profissional e pode colaborar para anular todos os progressos técnicos incorporados pela assistência médica.26
Comprova-se a existência de uma violência velada e encoberta pela naturalização ideológica do exercício do poder profissional sobre o paciente.20 Os comportamentos autoritários, emprego de palavras pejorativas, ameaças e censuras contra a mulher são corriqueiras no cotidiano de assistência nas maternidades, porém são encobertas.23
O profissional P5 afirma que a violência obstétrica depende do contexto, mostrando que existe uma busca de justificativas para a violência. Ainda há a existência de atitudes de violência que não são examinadas e reconhecidas pelos profissionais.
“Às vezes o que para um pode ter um significado de uma coisa mais forte, para outro pode não ter. Mas é isso que estou te falando, muitas vezes certas atitudes, certas condutas para alguns pode ter sido excessiva, para outros não, depende da situação. É uma forma de falar, uma forma de tocar, é a explicação, é fazer realmente o que tem de ser feito.” (P5)
“Eu vejo que muitas vezes ela é realizada e se quer é considerada assim pelos profissionais que a cometem, eles não percebem que aquele riso quando vê a genitália da paciente é algo constrangedor pra ela, eles não entendem que você dizer não para alguma necessidade dela é ruim, ou achar nojo quando ela faz necessidades, fezes, na hora do parto, tem profissional que não entende [...]” (P18)
O profissional de saúde possui dificuldade para se reconhecer como o causador de violência obstétrica, transformando a prática em ações naturais, justificáveis e necessárias, que seriam feitas para o suposto bem das pacientes e recém-nascidos.27
Estudos realizados no Brasil corroboraram com os achados dessa pesquisa ao evidenciarem a existência de uma violência velada. Foi identificado uma violência consentida por parte das mulheres, sendo as intervenções realizadas durante o trabalho de parto compreendidas como integrantes de uma boa assistência. Entre os profissionais, foi averiguado uma violência presenciada pelos enfermeiros e silenciada. Já o médico apresenta um discurso que negligencia a violência por garantir que essa não acontece na mesma extensão nem tem a repercussão que é concebida pela mídia e por outras organizações.23,28,29
Existe também uma banalização do sofrimento da parturiente, o que consequentemente, acarreta a banalização da violência institucional, presente em frases utilizadas sob o pretexto de brincadeiras. A dificuldade para os profissionais identificarem a violência na cena de assistência é perceptível também na idealização de alguns que a violência implicaria a maior gravidade do ato, ocasionador de agravo físico ou emocional intencionalmente. Todavia, frases irônicas, moralistas e preconceituosa usualmente faladas em tom de “brincadeira” são entendidas somente como humor.7
A banalização da violência obstétrica é consequência da falta de escuta dos profissionais, da desvalorização da fala da mulher e ausência de utilização de tecnologias apropriadas. Para reverter essa situação é imprescindível que os profissionais resgatem o reconhecimento de que o parto é um período significativo na vida de cada mulher.25
O estudo demonstrou que a violência obstétrica ocorre devido a uma visão mecanicista do processo reprodutivo, onde condutas padronizadas são incorporadas para acelerar o período expulsivo. Contudo, há também a existência de um processo de mudança decorrente do movimento de humanização do parto e nascimento. Embora tenham ocorrido modificações importantes na assistência, ainda são necessárias melhorias.
Destaca-se a importância de respeitar a fisiologia e intervir quando necessário, abandonando práticas mecanizadas e rotineiras. A interação parturiente e equipe foi descrita como indispensável para a existência ou não de violência obstétrica. Ficou evidente também que dentre as tantas formas de violência, uma das mais recorrentes é a violência verbal.
Os entrevistados percebem como fator determinante, a falta de preparo do profissional, para saber lidar com as várias situações encontradas na assistência. Os profissionais assinalam que os problemas institucionais contribuem para a existência da violência obstétrica, como a falta de ambiente e recursos adequados, além da superlotação e presença de poucos profissionais. E por último, evidenciou-se que embora haja diversas falas sobre a violência obstétrica, alguns profissionais salientaram não vivenciar na prática.
Para mudar esta realidade de violência na assistência obstétrica os profissionais apontam como caminho o preparo dos profissionais, com o emprego desta discussão da violência obstétrica nos cursos de graduação, especialização e educação continuada. É importante fazer com que este tema passe de velado a discutido e reconhecido, para assim diminuir a sua ocorrência.
Outro ponto de destaque nas falas dos profissionais foi a necessidade de oferecer condições de trabalho que contribuam para um ambiente mais acolhedor e livre de violência. Para isso é necessário a adequação física, disponibilização de recursos materiais e humanos, além de capacitação para os envolvidos.
Não só os profissionais precisam ser preparados, é preciso também orientar as mulheres sobre os seus direitos, para que elas possam chegar empoderadas e possam compreender o momento do parto. O conhecimento é um dos principais combates a violência obstétrica. É ponto de destaque para capacitação a assistência pré-natal, momento adequado para educação em saúde.
Portanto, é interessante que gestores e profissionais do município do estudo invistam principalmente nas estratégias de capacitação das equipes e na educação em saúde para as mulheres.
Sugere-se que haja uma maior fiscalização do setor público sobre a situação de assistência aos partos institucionalizados, atentando-se ao uso de práticas rotineiras e desnecessárias, contribuindo para o combate a violência. Espera-se que o Brasil continue a evoluir no combate e criando leis para punir os responsáveis.
Contribuição dos autores
Bitencourt AC contribuiu com a concepção e/ou desenho do projeto, coleta dos dados, análise e interpretação dos dados e redação do artigo. Oliveira SL contribuiu com a coleta dos dados, análise e interpretação dos dados. Rennó GM contribuiu com a concepção e/ou desenho do projeto, análise e interpretação dos dados e revisão crítica do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.
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Recebido em 11 de Fevereiro de 2021
Versão final apresentada em 18 de Maio de 2022
Aprovado em 8 de Julho de 2022