RESUMO
OBJETIVOS: avaliar a relação entre a insegurança alimentar e nutricional (IAN) da família e a rede social de crianças desnutridas.
MÉTODOS: estudo transversal com 92 crianças, inseridas na classe econômica D-E. Para a análise da rede social das crianças, as mães responderam quatro perguntas simples. Para investigar a IAN foi utilizada a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar. A associação entre as variáveis foi analisada por regressão de Poisson com análise robusta das variâncias.
RESULTADOS: 56,5% das crianças apresentaram rede social fraca (<10 indivíduos), e a prevalência de IAN foi de 72,8%. Foi observada uma associação inversa entre rede social diária das crianças e IAN da família (RP=0,94, [IC95%=0,89-0,99]; p=0,03). O número de indivíduos na rede social diária das crianças se associou negativamente com a probabilidade de IAN. O nível de escolaridade materno também estava relacionado com a IAN (RP=2,20 [IC95%=1,11-4,34]; p=0,02), tendo a criança até 2,2 vezes mais probabilidade de estar em IAN quando a mãe apresenta menos de quatro anos de estudo.
CONCLUSÃO: esses resultados sugerem que a rede social está associada à IAN de crianças desnutridas. Intervenções destinadas a fortalecer maneiras instrumentais e outras formas de apoio entre pequenas redes sociais podem melhorar a saúde/nutrição de crianças desnutridas com IAN.
Palavras-chave:
Desnutrição, Criança, Insegurança alimentar, Vulnerabilidade, Baixa estatura
ABSTRACT
OBJECTIVES: evaluate the relationship between family’s food and nutrition insecurity (FNI) and the social network of malnourished children.
METHODS: cross-sectional study with 92 children, included in the economic class D-E. For the analysis of the children’s social network, the mothers answered four simple questions. To investigate the FNI, the Brazilian Scale of Food Insecurity was used. The association between variables was analyzed by Poisson regression with robust analysis of variances.
RESULTS: 56.5% of the children had a weak social network (<10 individuals), and the prevalence of FNI was 72.8%. An inverse association was observed between children of the daily social network and FNI family (OR=0.94; CI95%=0.89-0.99], p=0.03). The number of individuals in the children’s daily social network was negatively associated with the likelihood of FNI. The mother’s educational level was also related to FNI (OR=2.20 [CI95%=1.11-4.34]; p=0.02), being the child up to 2.2 times more likely to be in FNI when the mother has less than four years of study.
CONCLUSION: these results suggest that social network is associated with the FNI of malnourished children. Interventions designed to strengthen instrumental and other forms of support among small social networks can improve the health/nutrition of malnourished children with FNI.
Keywords:
Malnutrition, Child, Food insecurity, Vulnerability, Stunting
IntroduçãoAs redes sociais, rede de contatos interpessoais, são responsáveis por manter a identidade social de cada indivíduo e podem ser um determinante importante da saúde e dos comportamentos de saúde das crianças.
1 A rede social da criança inicialmente é formada pela rede social da mãe, porém, com o passar do tempo, essa se estabelece e tece conexões sociais com pessoas semelhantes, outras crianças e com os contatos recorrentes e mais próximos geograficamente.
2Fatores individuais, como o divórcio dos pais, abuso sexual/físico contra a criança/adolescente, pobreza e empobrecimento, guerras e outras formas de trauma, e menor disponibilidade de apoio (na família ou grupos), podem contribuir para que a criança/adolescente não desenvolva as suas habilidades sociais de maneira adequada.
3 Adicionalmente, outro fator que pode influenciar consideravelmente no desenvolvimento das habilidades sociais de crianças e adolescentes, impactando também na sua saúde, é a insegurança alimentar, fazendo com que os mesmos acabem se tornando mais retraídos, diminuindo as suas conexões.
4A insegurança alimentar é definida como o acesso físico e econômico limitado ou incerto para garantir quantidades suficientes de alimentos nutricionalmente adequados e seguros de maneiras socialmente aceitáveis para permitir que os membros da família mantenham uma vida ativa e saudável.
5 No Brasil, foi observada uma prevalência de insegurança alimentar moderada e grave de 4,3% e 3,3%, respectivamente, sendo mais elevada nas regiões Norte e Nordeste, onde é de 14,7%.
6 Estudo com a população de Alagoas encontrou uma prevalência de insegurança alimentar grave em 8,2 % nos domicílios com menores de 18 anos.
7A insegurança alimentar também se encontra inserida entre os múltiplos e inter-relacionados determinantes da desnutrição,
5 que debilita o estado nutricional tornando as pessoas mais vulneráveis ao desenvolvimento de doenças e morte prematura, sendo um problema devastador, particularmente para os mais pobres.
8 Sendo assim, intervenções visando o apoio social na aquisição de alimentos são um fator na melhora do estado nutricional, principalmente das crianças.
9O tipo de desnutrição mais prevalente no Brasil e no mundo é a baixa estatura e é frequentemente resultado de subnutrição e infecções recorrentes, associados fortemente a condições insalubres de vida.
8 A baixa estatura é um indicador sensível para medir o bem-estar infantil, bem como o progresso de um país, a acumulação de capital humano e a pobreza. Crianças com retardo de crescimento normalmente vivem em casas com grande insegurança alimentar e estão mais predispostas a morrerem durante os primeiros cinco anos de vida, a adoecerem mais e a terem um desempenho escolar insatisfatório.
10,11Desta forma, observa-se que independentemente das características das crianças, de sua mãe e de sua família, o contexto em que elas vivem afeta sua saúde. Neste sentido, a comunidade compartilha atributos físicos, sociais e econômicos que podem determinar a condição de saúde de todos os indivíduos. Esses atributos que vão formar as redes sociais podem influenciar a saúde, disseminando informações, dando apoio e suporte e orientando os indivíduos a adotarem determinados comportamentos de saúde e bem-estar social.
10Neste contexto, percebe-se que as redes sociais na primeira infância impactam em uma variedade de resultados posteriores, incluindo saúde, nutrição, cognição e desempenho futuro.
12 Ficando evidente, a necessidade de uma maior qualidade na atenção à criança nessa fase, em que os estímulos influenciam no seu desenvolvimento e repercute a longo prazo no sucesso escolar, na formação das relações e na autoproteção requerida para independência econômica, assim como no preparo do indivíduo para a vida e para convivência familiar e comunitária.
2Neste cenário, questiona-se se as redes sociais de apoio podem melhorar a promoção da segurança alimentar em nível familiar, uma vez que o indivíduo necessita dessas relações para o enfrentamento e a resolução de situações diversas na sua vida.
1 Este estudo tem o objetivo de avaliar a relação entre a insegurança alimentar e nutricional (IAN) da família e a rede social de crianças desnutridas.
MétodosTrata-se de um estudo transversal, desenvolvido entre janeiro a outubro de 2019, do qual fizeram parte as crianças matriculadas no Centro de Recuperação e Educação Nutricional de Alagoas (CREN-AL), que está localizado em uma das áreas de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município de Maceió, vicinal à Universidade Federal de Alagoas, sendo um de seus projetos de extensão. O CREN-AL oferece assistência em saúde, alimentação, educação e qualificação de recursos humanos para atendimento de crianças menores de seis anos. São admitidas crianças com risco de déficit estatural (-1,5 escore Z para altura/idade (A/I)) e com
déficit estatural (-2 escore Z para A/I), de acordo com o padrão proposto pela Organização Mundial da Saúde.
13 São atendidas, em média, 100 crianças/dia, as quais frequentam o centro durante a semana das 8h às 17h e contam com atenção pediátrica, nutricional, odontológica, psicológica e pedagógica diárias, além de atendimento social e psicológico às famílias. A instituição tem como missão recuperar o estado nutricional de crianças diagnosticadas com desnutrição de forma interdisciplinar, contribuindo para o empoderamento e desenvolvimento integral dessas e de suas famílias.
Foram incluídas no estudo todas as crianças, cujos responsáveis fossem as mães (biológicas/adotivas) e que se encontrassem na classificação econômica D-E, de acordo com o Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB).
14 Identificadas a partir da análise dos prontuários das crianças do CREN. Foi realizada uma entrevista domiciliar, com aplicação de questionários próprios previamente testados.
A variável dependente foi a segurança alimentar e nutricional. A Insegurança alimentar foi avaliada utilizando-se a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA).
15 Esse instrumento consta de 14 perguntas centrais fechadas, com opção de respostas sim/não, sobre a experiência nos últimos três meses de insuficiência alimentar em diferentes níveis de intensidade. Inclui desde a preocupação de que a comida possa acabar até a vivência de passar um dia todo sem comer. Cada resposta positiva do questionário representa 1 ponto, sendo a classificação da escala baseada em sua soma, variando em uma amplitude de 0 a 15 pontos. A classificação foi realizada da seguinte maneira: 0: segurança, 1-5: insegurança leve, 6-10: insegurança moderada, e 11-14: insegurança grave. Para estimativas de prevalências, utilizou-se esta variável em seus quatro níveis. Para os modelos bi e multivariado utilizou-se a variável dicotomizada, sendo considerados sem risco quando estes domicílios estavam em “Segurança alimentar + Insegurança leve” ou em risco os domicílios em “Insegurança moderada + Insegurança grave”, sendo a junção destas duas últimas formas utilizada para caracterizar a população em situação de privação alimentar.
A variável independe foi a rede social da criança. Para avaliar o tamanho da rede social e a quantidade de contato com a rede das crianças, as mães responderam a quatro perguntas simples, adaptadas do questionário proposto por Mitchinson
et al.
16:
1. Quantas pessoas ou parentes seu filho tem contato, incluindo seu pai e irmãos?
2. Quantas pessoas próximas ou familiares a criança vê pelo menos uma vez por mês?
E para avaliar o apoio social das crianças, as mães foram questionadas:
3. Seu filho(a) frequenta igreja, sinagoga, templo, mesquita ou outros locais de culto pelo menos uma vez por semana? (sim ou não)
4. Seu filho(a) participa de outra instituição social (posto de saúde, ou outros locais), exceto o CREN, pelo menos uma vez por semana? (sim ou não)
Considerou-se como rede social pequena aquela que tinha até dez pessoas no convívio diário da criança.
Como variáveis de ajuste foram utilizados os dados socioeconômicos e de moradia, e o estado nutricional das crianças. As variáveis socioeconômicas consideradas foram as características dos domicílios, saneamento básico, escolaridade materna em anos de estudo (0 a < 4 anos; 4 a 8 anos e > 8 anos), estado civil das mães (casadas, separadas ou viúvas), atendidas pelo Bolsa Família (não/sim) e renda
per capita das famílias, incluindo o valor do Bolsa Família, adotando os seguintes pontos de corte para avaliação: ≤ R$ 124,75; > R$ 124,75 a ≥ R$ 249,51; > R$ 249,51).
Para a avaliação do estado nutricional das crianças foram coletados os dados antropométricos a partir da análise dos prontuários de atendimento nutricional do CREN. Para verificar o comprimento de crianças com menos de 24 meses e > 24 meses, utilizou-se, respectivamente, um infantômetro padrão com 105 cm de comprimento e precisão de 0,1 cm e um estadiômetro vertical (faixa de medição de 0 a 200 cm; precisão de 1 mm; Wiso, Paraná, Brasil). Para aferição do peso foram utilizadas as balanças Filizola, BP Baby e Filizola, Personal, Campo Grande, Brasil.
Para classificar o estado nutricional foram considerados os índices IMC/idade, comprimento/idade (estatura/idade), analisados a partir do
software Anthro e Anthro plus, versão 3.2.2, utilizando os seguintes pontos de corte para o índice E/I: E/I adequada (escore Z > -1), risco para baixa E/I (escore Z ≤ -1 e > -2), e baixa E/I (escore Z ≤ -2).
13Em relação as análises estatísticas, as variáveis contínuas são apresentadas como média e desvio-padrão e as variáveis categóricas, como frequências relativas e absolutas. Realizou-se uma regressão linear para observar se existe relação entre as variáveis rede social diária e o índice E/I das crianças. Foi realizado teste de Welch para a comparação das médias da rede social diária entre as duas categorias da EBIA. Para avaliar a associação entre a rede social diária e insegurança alimentar foi realizada regressão de Poisson com estimativa robusta das variâncias, e o ajuste para as possíveis variáveis de confundimento (idade da criança, sexo da criança, renda
per capita, idade da mãe, bolsa família, anos de escolaridade da mãe). Foi adotado um valor de alfa igual a 5%. Todas as análises estatísticas foram conduzidas com auxílio do programa estatístico R (
R Foundation for Statistical Computing, Vienna, Austria), utilizando o pacote “Rcmdr”.
O presente estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas sob número: 09801818.3.0000.5013.
ResultadosDas 100 crianças consideradas elegíveis para o estudo, oito foram excluídas (cinco mudaram de endereço, uma estava na classe econômica C e duas tinham como responsável o pai), resultando numa amostra final de 92 crianças. As características antropométricas, socioeconômicas e da rede social das crianças e suas famílias podem ser vistas na Tabela 1. Quanto às crianças, observa-se uma média de idade de três anos e a baixa estatura para idade com média de -2,17 (±95 de E/I) foi mais prevalente nos meninos (98,3%) do que nas meninas (90,6%). A rede social diária com menos de dez pessoas foi observada em 52 crianças (56,5%), sendo 33 (63,5%) do sexo masculino, e um total de 62 crianças (67,4%) apresentaram uma rede social mensal de apenas quatro pessoas, sendo 47 (75,8%) do sexo masculino (dados não tabelados). No tocante, mais da metade das crianças não tem contato com nenhuma religião (51,1%) e somente 18,5 % dessas crianças frequentam outra instituição além do CREN.
No que se refere ao estado civil das mães, 77,2 % são separadas, ou divorciadas do pai do filho eleito para o estudo, solteiras ou viúvas. Com relação à escolaridade materna, 72,8% não haviam completado o Ensino Fundamental (menos de oito anos de estudo). A renda
per capita de 41 famílias (44,6%) é de menos de R$ 125,00 e provém, na maioria do auxílio do Bolsa Família (77,2%) (Tabela 1). A insegurança alimentar (leve, moderada e grave), mostrou-se prevalente em 72,8% das famílias, considerando a insegurança alimentar moderada e grave, registra-se que 37 domicílios (40,2%) se encontravam em situação de privação alimentar (Tabela 1).
Não foi observada relação entre a variável A/I e rede social diária (β=-0,007; [IC95%=-0,03-0,02];
p=0,66) (dados não tabelados). Contudo, houve diferença das médias da rede social diária das crianças entre as duas categorias da EBIA, isto é, as crianças que apresentaram insegurança alimentar moderada e grave tinham uma menor rede social diária (Tabela 2).
Ao associar o tamanho da rede social diária da criança com a presença de insegurança alimentar foi observado que para cada aumento de uma unidade na rede social diária, houve redução de 7% na probabilidade de insegurança alimentar (RP=0,93; [IC95%=0,88-0,99]:
p=0,02), mesmo após ajuste para idade e sexo da criança, renda
per capita, idade e anos de escolaridade da mãe, e auxilio do bolsa família. Quando o nível de escolaridade da mãe era inferior a quatro anos de estudo, a criança apresenta 2,99 vezes mais probabilidade de estar em insegurança alimentar do que aqueles que a mãe possuía escolaridade maior do que quatro anos (Tabela 3).
DiscussãoO presente estudo constatou que a maior parte das crianças desnutridas que vivem em situação de vulnerabilidade social (56,5%) apresentam rede social pequena, com menos de dez pessoas, também sendo identificado que essa população apresenta elevada prevalência de insegurança alimentar (77,2%). Por meio da análise multivariável foi possível observar um impacto positivo no que se refere ao tamanho da rede social diária, sendo percebida uma redução de 7% na insegurança alimentar a cada aumento de uma pessoa na rede social da criança.
Neste estudo demonstrou-se que a rede social diária da criança e os anos de escolaridade das mães estiveram associados à insegurança alimentar, onde à medida que a rede social diária da criança aumenta, a probabilidade de apresentar insegurança alimentar diminui. No Brasil, apesar de ter havido uma redução da prevalência de insegurança alimentar nos últimos anos, essa redução foi menor no Nordeste e nos estados mais pobres como Alagoas.
6,17 Os determinantes da insegurança alimentar são variáveis e interrelacionados, sendo a rede social um dos principais fatores a nível domiciliar.
5Este fato pode ser observado no estudo numa comunidade no Quênia, com 111 mulheres chefes de família, onde um menor apoio social esteve significativamente associado ao aumento da insegurança alimentar.
18 Um outro exemplo, pode também ser visto num estudo com uma amostra de 1056 domicílios em Burquina na África Ocidental, onde a rede social do chefe da família teve um papel positivo na segurança alimentar.
19 Esses dados mostram que a população deste trabalho, assemelha-se a países africanos, que apresentam baixa renda e índices elevados de insegurança alimentar.
Neste estudo, a insegurança alimentar apresentou prevalência de 72,8% entre as famílias, muito mais elevada do que estimativa nacional de 36,7% em 2017-2018.
17 Entretanto, chama a atenção que a magnitude da prevalência de insegurança alimentar moderada e grave (40,2%), que supera aquelas verificada em domicílios com crianças menores de cinco anos (14,7%) em 2017-2018
17 e do que a observada numa zona rural em população Quilombola da Bahia (27%).
20 Esses achados são alarmantes e evidenciam que ainda é grande o contingente de pessoas que vivem em situação de insegurança alimentar, com desigualdades como cor/raça, faixa de renda e localização urbano
vs. rural, que implicam em importantes desafios para a efetivação de políticas públicas de combate à fome e à miséria.
A educação materna é um dos preditores significativos de práticas alimentares saudáveis de crianças,
21 além disso, níveis mais adequados de educação podem estabelecer oportunidades melhores de inserção das mães no mercado de trabalho, podendo promover aumento da renda familiar
22 e, consequentemente, o acesso à alimentação. Na parte central da Etiópia, um estudo com 635 mães lactantes entre 15 e 49 anos observou que aquelas que não tinham educação formal foram 1,82 vezes mais propensas a ter insegurança alimentar.
23 Esses dados corroboram com o nosso estudo, onde houve associação da baixa escolaridade materna (menos que quatro anos de estudo) com a insegurança alimentar moderada e grave. Esse resultado assemelha-se também a um estudo feito em Bangladesh, país que registra altos índices de pobreza e desnutrição, realizado com 365 crianças menores de cinco anos que apresentavam diarreia, no qual encontrou-se uma probabilidade 2,14 vezes maior de uma criança sofrer insegurança alimentar quando suas mães eram analfabetas.
24 Desta forma, fica evidente a complexidade contextual que marca a ocorrência de desigualdades e iniquidades na insegurança alimentar.
A rede social faz parte dos fatores contextuais nas causas da desnutrição, onde o envolvimento de outros membros na rede social da mãe influencia na alimentação complementar da criança.
25 Contudo, nosso estudo não encontrou relação direta entre a rede social diária das crianças com o déficit estatural. No entanto, é sabido que a insegurança alimentar moderada e grave podem levar à desnutrição, o que pode resultar em morte principalmente quando associadas a infecções recorrentes.
5,11,15 Os indicadores sociais, como menor renda e escolaridade, ausência de vínculo empregatício e saneamento básico, representam, também, as principais condições relacionadas com problemas de crescimento linear entre as crianças brasileiras menores de cinco anos, numa conjuntura na qual esses dois eventos, apesar de distintos, apresentam-se associados a uma determinação social.
26Um estudo com 2.222 crianças no distrito de Gicumbi, em Ruanda na África, onde a maioria das casas não tem banheiros, encontrou uma probabilidade 2,47 vezes maior de uma criança, de seis a 59 meses, em situação de insegurança alimentar moderada apresentar baixa estatura, em comparação com crianças de famílias com segurança alimentar.
27 Em nosso estudo, a probabilidade de uma criança apresentar insegurança alimentar esteve inversamente relacionada ao tamanho da rede social diária dela. Desta forma, o fato da rede social se associar com a insegurança alimentar nos leva a acreditar que intervenções nessas redes podem influenciar positivamente na nutrição entre essas populações vulneráveis. Todavia, não só as redes sociais se associam aos fatores que influenciam a insegurança alimentar, os quais são múltiplos, como também, a escolaridade, que tem influência importante dentre os fatores individuais,
5 como demonstrado também no presente estudo.
Nessa direção, dados de um estudo realizado com famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família em 2011, em assentamentos subnormais também de Maceió (AL), revelou que 92% das famílias se encontravam com insegurança alimentar.
28 Esses dados mostram que, passados oito anos, nada ou quase nada foi feito, haja vista os valores de insegurança alimentar no presente estudo. A segurança alimentar é diretamente afetada por fatores econômicos como a baixa renda,
11 entretanto, neste estudo, a renda
per capita da família não esteve associada à insegurança alimentar, o que pode ser explicado pelo fato de todas as famílias estarem na mesma classe social (D-E) e de que a grande maioria, recebe o Bolsa Família. Destaca-se que mesmo o Programa Bolsa Família melhorando as condições de vida das famílias, por si só, não consegue garantir a segurança alimentar, conforme já demonstrado em outros estudos.
7,29O presente estudo apresenta algumas limitações. Primeiro, a natureza transversal impede quaisquer inferências causais; segundo, o tamanho da amostra, o que pode explicar a falta de significância em algumas variáveis investigadas. No entanto, destacamos como ponto forte a utilização da rede social das crianças, visto que esta pode diferir da rede social da sua mãe, como por exemplo filhos de pais separados, pois esses podem incorporar a rede social das novas famílias.
Os resultados aqui apresentados fornecem evidências que sugerem associação inversa entre rede social diária da criança, a escolaridade materna e níveis de insegurança alimentar. Dada a difusão da insegurança alimentar nesta população, é essencial compreender sua etiologia e identificar modos de intervenção para melhorar a nutrição e a saúde, e consequentemente, a desnutrição. Intervenções destinadas a fortalecer formas instrumentais e outras formas de apoio entre pequenas redes sociais podem melhorar a saúde e a nutrição de crianças desnutridas com insegurança alimentar.
AgradecimentosAgradecemos a todas as crianças e as mães que integraram este estudo e à instituição que aceitou participar da pesquisa, o Centro de Recuperação e Educação Nutricional de Alagoas.
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Recebido em 21 de Abril de 2021
Versão final apresentada em 2 de Maio de 2022
Aprovado em 10 de Junho de 2022
Contribuição dos autoresBarros LKN: coleta de dados, análise estatística, interpretação dos resultados e é responsável pela pesquisa. Clemente APG e Britto RPA: revisão crítica do conteúdo intelectual, aprovação da versão final do manuscrito e são corresponsáveis pela pesquisa. Bueno NB, Pureza IROM e Silva-Neto LGR: análise estatística, interpretação dos resultados, aprovação da versão final do manuscrito e são corresponsáveis pela pesquisa. Santos MRC: coleta de dados e análise estatística. Florêncio TMMT: análise estatística, interpretação dos resultados, revisão crítica do conteúdo intelectual, e é responsável pela pesquisa.
Os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.